×

DOIS ANOS DAS JORNADAS DE JUNHO | 17 de Junho no Rio: uma noite inesquecível

Leandro LanfrediRio de Janeiro | @leandrolanfrdi

quarta-feira 17 de junho de 2015 | 15:38

Éramos mais de cem mil pessoas que descíamos a avenida Rio Branco, da Candelária à Cinelândia. Era a maior manifestação da história do Rio desde as diretas e tal como a manifestação de outros cem mil jovens em 1968, dirigia-se, ainda que com menor consciência do que aquela, contra todo regime político.

Uma das imagens mais famosas daquelas "jornadas de junho" foi tirada justamente naquela noite quando a multidão de jovens chegava na Cinelândia.

Era tanta gente, tão espremida entre si, que só faltava entrelaçar os braços tal como a manifestação de décadas antes. A avenida ficou estreita, apertada, a marcha evoluía vagarosa, pesada. Cada faixa com palavras de ordem espremia ainda mais a multidão. As pessoas escalavam obras, subiam em prédios, montavam em bancas de jornal para tirar fotos e contemplar aquele mar de gente que éramos. Ninguém esperava tanta gente.

Das janelas dos escritórios caia uma interminável chuva de papel picado, as luzes piscavam em apoio. A juventude havia ganho a disputa com a mídia e os governos que buscavam a criminalizar e reprimir em todos os dias anteriores.

Com este ímpeto de um exército que está marchando para a vitória os cantos ecoavam alto e forte. Uma ala mais “antiga” da militância, os milhares de rostos conhecidos da esquerda e das universidades públicas se misturavam a uma nova multidão de jovens, muitos deles também de origem mais abastada, mas também um novo e expressivo contingente mais trabalhador e de negros. Neste novo alcance mostrava-se todo o potencial e todas as novas contradições que junho foi marcando.

Alguns cantos que entoavam nas manifestações em dias e semanas anteriores, quando eram manifestações de uma vanguarda de cinco ou dez mil, rapidamente se transformavam ao encontrar este novo terreno. “Acabou o amor isto aqui vai virar a Grécia”, ou outros gritos que remetiam à juventude turca na praça Taksim se tornavam menos ideologicamente potentes, mas mais sociologicamente precisos: “não é a Turquia, não é a Grécia, é o Brasil saindo da inércia”. Os cantos contra o governador Sérgio Cabral (PMDB) agora eram preenchidos de intermináveis palavrões.

Ainda enquanto a manifestação seguia seu trajeto habitual corriam intermináveis notícias e boatos. Os smartphones corriam de mãos em mãos com imagens da imensa multidão em São Paulo e como rastilho de pólvora espalhava-se um boato de que haveria um manifestante morto em Belo Horizonte. Este boato, tragicamente, concretizou-se cerca de uma semana depois na morte do manifestante Douglas Henrique. Esta notícia espalhava impaciência, raiva.

Um tempo depois corria aos gritos na manifestação a notícia da tomada do Congresso Nacional em Brasília. Claro que as estórias às vezes chegavam com um aumento típico dos boatos, mas também do otimismo que marchava a juventude naquela noite. Havia “notícias” de senadores sendo espancados, do prédio em chamas, e outras fantasias e desejos de realidade daquela atmosfera impaciente, ansiosa para trazer abaixo “os de cima”, ainda que sem muita clareza de como e para que.

Com a notícia de Brasília o chamado a “tomar a ALERJ” que corria as fileiras da manifestação ganhava força e ímpeto. Essa nova juventude das manifestações, muitos que ali experimentavam sua primeira manifestação, gritavam sem nenhuma paciência com os outros que hesitavam, xingavam sua “covardia” e que o “Rio também tinha que fazer sua parte”, e coisas do estilo.

Milhares, talvez ao menos uns 10 mil fomos para lá. Antes disso a juventude havia se enfrentado com a polícia e derrotado sua tentativa de impedir a chegada dos manifestantes na ALERJ. Não havia ainda “black blocs” organizados enquanto tal, ou se havia ninguém naquela multidão se dava conta ou se importava, e ao mesmo tempo era difícil encontrar alguém que não estivesse com máscara ou pano na cara.
Foram horas de confronto com a polícia que se refugiou dentro do prédio histórico e que cercou todas as ruas em volta desta multidão. Barricadas como nunca antes as manifestações tinham montado foram erguidas. Eram ao menos 6, uma em cada canto do quadrilátero da ALERJ: móveis, um carro, e até uma tubulação de gás ardiam. Nas barricadas estavam poucos, mas na multidão na praça havia momentos que ela parecia se converter em uma pequena mina de quebrar piso e arrancar pedras portuguesas para fornecer a aqueles que estavam à frente.

Muitos “socorristas”, jovens estudantes de medicina e enfermagem, sobretudo de universidades privadas, perambulavam de um lado para outro com seus aventais e máscaras brancas. Um sentido de irmandade percorria aquela juventude. Militantes das mais diversas organizações políticas perguntavam para as outras como estavam os militantes das outras, se havia alguém ferido, desaparecido. Horas mais tarde já sob repressão, milhares se encontravam na vizinha Lapa e perguntavam um do outro, cuidava-se dos feridos, cuidava-se de quem alguém nunca tinha visto.

Uma irmandade prenhe do futuro que, no entanto, volta e meia era interrompida pelos primeiros gritos que se ouvia nas manifestações contra os partidos e exigindo que as bandeiras fossem baixadas. Não havia debate do que fazer. Uma juventude que parecia estar preparada para “derrubar” algo mas não para “erguer” algo novo.

Os mais ativos “antipartido” eram muitas vezes os mais aguerridos jovens que iam para linha de frente dos enfrentamentos, e em muitos casos aqueles de extração mais pobre. Sua raiva e atraso de consciência que igualava partidos de esquerda com partidos da ordem já marcavam alguns aspectos de hoje que tentaram ser explorados pela direita em manifestações este ano.

Mas também se mostrava ali todo o potencial de uma geração, como aquela energia contagiaria seus irmãos e irmãs mais velhos nas fábricas e locais de trabalho, um frescor cheio de futuro, mas também cheio de contradições que a greve dos garis em 2014, que claramente bebeu de “junho”, pode mostrar novamente em todo esplendor.

Foram dados muitos tiros de fuzil esta noite. Manifestantes foram feridos. Até a TV Globo teve que noticiar este fato no dia seguinte.

Veja a seguir um vídeo que ilustra esta denuncia que foi muito importante na época, que mostrou a milhões, mais uma vez, que o verdadeiro ator "violento" era o Estado (ou "violento é o Estado" como diziam adesivos e pichações no Rio daqueles dias).

A repressão policial daquela noite e de São Paulo em dias anteriores já não era sustentável. A elite e os governos brasileiros precisavam se decidir, queriam vários jovens manifestantes mortos não em uma favela (como fizeram dias depois na Maré com a desculpa de reprimir um suposto saque depois de uma manifestação) ou teriam que ceder.

As cenas do Rio, São Paulo, Brasília eram claros alertas. A juventude não iria recuar. “Não tem arrego” era um grito que começava a se expressar nas manifestações e que depois encontrou eco nos garis, nos metroviários de São Paulo, nos trabalhadores da USP. Aquela noite com seus potenciais, mas também suas contradições, era um aviso de novos tempos na luta de classes no país.

Veja a seguir algumas fotos de Juan Pablo Diaz Vio daquela noite:




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias