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SEMANÁRIO

50 Anos do Hip Hop: a juventude contra o racismo e a polícia

Antonio Neves

Dossiê

50 Anos do Hip Hop: a juventude contra o racismo e a polícia

Antonio Neves

ORIGENS E CAMINHOS

O Hip Hop, movimento que nasce nos anos 1970 a partir das manifestações culturais da população negra de Nova Iorque, mais especificamente do bairro do Bronx, vem mostrando, desde seu surgimento, a potência e o alcance da cultura negra.

O movimento surge no contexto após as manifestações pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, que ocorreram na década de 1960, os quais irão conquistar a lei pelos Direitos Civis, mas não irão trazer uma solução para a questão negra, com o subemprego e desemprego ainda latente e a brutalidade policial a todo vapor, ou seja, com a violência vinda do braço armado do Estado desempenhando o papel que antes era feito pelos grupos racistas como a ku klux klan, a partir dos linchamentos.

A música “Fuck Tha Police”, do NWA, um dos grupos mais influentes da história do Rap, é um retrato dessa violência posto em melodia. Uma denúncia explícita do racismo policial, que acusa, constrange, agride e assassina as minorias sociais, caracterizadas pela juventude dos bairros abandonados pelo Estado. É por isso, também, que na música “Capítulo 4, Versículo 3”, Mano Brown diz “Permaneço vivo, prossigo a mística! 27 Ano contrariando a estatística”, já que a expectativa de vida digna no ambiente em que vivem é nenhuma, e as chances de sobrevivência terminam na juventude.

Frente a uma questão não resolvida pelo Estado, a população criará suas próprias respostas através da cultura, nos ambientes de comunidade onde a música se torna parte da identidade, do modo de ser daqueles que sobrevivem sob o mesmo jugo. Onde negros e brancos se unem contra a opressão do mesmo sistema, mas também que extrapola qualquer limite físico e acolhe os mais diversos setores oprimidos, que se unem a fim de fortalecer o movimento.

A disseminação do Hip Hop pelo mundo permitiu que essa manifestação de protesto, realizada a partir de seus quatro pilares (Rap, Break Dance, Grafite e os DJ’s) fosse recebida em todos os países onde os herdeiros dos postos de maior precarização também se revoltam contra o sistema que mantém sua exploração. Longe de ser passiva, essa recepção permitiu que seus expoentes mundo afora fossem continuadores do movimento a partir de suas realidades. Por isso, a influência de importantes grupos pioneiros, como a Zulu Nation nos Estados Unidos, muitas vezes é maior até que seu próprio nome.

A partir da chegada no Brasil, o movimento irá criar raízes na cultura de periferia, assim como o Funk, e daí em diante sua importância apenas cresce, levando o discurso potente que carrega para os espaços em que antes não era bem vindo. O Rap trouxe os holofotes da mídia para os MCs que passaram a ser os porta-vozes da periferia, muitas vezes difamados, mas tendo que ter sua influência reconhecida, mesmo que a contragosto da mídia burguesa. Chegará aos ouvidos de milhões de pessoas sendo a correspondência do sentimento de um grupo e uma via de radicalização até da juventude que não é negra e nem periférica, que não está inserida nessa vivência. Esse é o seu potencial artístico, como mostra o verso da música “Negro Drama”: “Inacreditável, mas seu filho me imita/ No meio de vocês ele é o mais esperto/ Ginga e fala gíria; gíria não, dialeto/ Esse não é mais seu, oh, subiu/ Entrei pelo seu rádio, tomei, cê nem viu”.

Thaíde, Racionais MC’s, RZO, 509-E, Facção Central, Sabotage, MV Bill, Negra Li, Rappin’ Hood, Black Alien, MC Marechal, Kamau, Emicida, Rashid, Criolo, BK’ e Djonga são apenas alguns dos nomes que ligam, das origens ao atual, parte importante dessa história no Brasil.

“80 TIROS QUE SEPARAM UM MILITAR DE UM MILITANTE, A FAVELA CHORA O QUE? SANGUE”

A expansão do Hip Hop passa também por elementos como as batalhas de rima, que foram os locais de origem de muitos expoentes de importância incontestável, como Emicida, e nos últimos anos passaram a atingir os mais variados nichos, e vêm se tornando uma possibilidade de dar voz aos mais diversos grupos que, juntos daqueles que já estavam inseridos nessa cultura, também se revoltam contra a miséria do sistema capitalista. Os eventos têm se tornado cada vez maiores, com maior visibilidade e com públicos cada vez mais diversos, e o último Duelo Nacional de MCs ter tido como vencedora Kaemy, primeira mulher campeã do evento, é exemplo de que essa expansão traz à tona os debates que devem ser feitos dentro da cultura, e que ela absorve aquilo que a fortalece, como a luta contra a opressão de gênero. As mulheres nos duelos sempre gritaram contra o patriarcado, es LGBTQIAP+ gritam contra a constante violência que sofrem, e, para desviar essa brutalidade de si, levam sua indignação para as rodas de freestyle, nas praças do Brasil inteiro, onde a plateia agita a noite em gritos antirracistas contra os assassinatos da polícia, como o de Evaldo Rosa dos Santos, músico assassinado por militares do Exército, que dispararam 80 tiros contra o carro em que estavam ele e sua família, na zona oeste do Rio de Janeiro. As batalhas de rima mantém viva a memória das vítimas da violência estatal, o público democraticamente vota no campeão da noite, mas todos reconhecem que quem se fortalece é o Hip Hop e a união entre aqueles que têm a capacidade de arrancar suas demandas através de sua própria força. Essa é a potencialidade do Hip Hop, que é também a fortaleza da cultura negra e da classe trabalhadora do mundo inteiro, a de se auto-organizar contra a opressão do racismo, do patriarcado, da LGBTfobia e de destruir todos eles junto com o capitalismo.

DESAFIOS

No entanto, a indústria cultural e a mídia burguesa, como ferramentas de propagação da ideologia dominante, também atuaram todos esses anos a fim de conter a força de uma manifestação tão potente. O grafite, por exemplo, um dos pilares do movimento e uma manifestação artística de protesto contra a aparência mórbida dos centros urbanos, é recorrentemente demonizado através da acusação de vandalismo. Muitas vezes essa difamação é feita a partir de delimitar o que seria uma manifestação “legítima” e “artística”, do dito vandalismo, mas, na realidade, desde seu surgimento foi uma prática combatida, seja pela prefeitura de Nova Iorque na década de 70, até o mandato do higienista João Dória como prefeito de São Paulo, que em 2017 pôs em prática um projeto responsável por cobrir, dentre outros, o maior mural de grafite da américa latina. Ou seja, a cultura é um feixe de insubordinação contra as cidades de arquitetura hostil, lotadas porém vazias, sem cores e com cada vez menos espaços públicos de convivência, que são a marca do brutal capitalismo neoliberal.

O hip hop, assim como outros elementos culturais que surgem da classe trabalhadora e dos setores marginalizados da sociedade (e no Brasil, a população negra é, além de um setor marginalizado, a maioria da classe trabalhadora) é constantemente atravessado por pressões mercadológicas, que tenta levar à uma diluição dos aspectos mais latentes de protesto, anti-sistema, e de canalização da revolta, para poder assumir o formato de mercadoria, como se pudesse se enquadrar apenas em uma estética musical, de moda, visual, esvaziada de conteúdo, é claro, para que possa atrair a maior quantidade de lucros possível.

Como as letras do rap brasileiro sempre denunciaram, neste sistema em que vivemos, os trabalhadores são deixados ao relento, e a população negra herdou do legado da escravidão o lugar de maior precarização na sociedade. Vivemos em uma sociedade em que os cidadãos não decidem democraticamente o destino dos recursos, e a política institucional não é uma alternativa concreta para o combate à miséria ou para tomar medidas eficazes na preservação da cultura negra. Justamente por que o Estado é o balcão de negócios da burguesia, que não tem nenhum interesse em acabar com qualquer miséria, mas sim em preservar, e sempre que possível potencializar, os seus lucros exorbitantes. A partir disso, atualmente, os setores da política institucional que se dizem aliados e defensores da população pobre, na verdade, alimentam esperanças em saídas por sua própria via eleitoral, enquanto o que acontece na realidade, a partir da conciliação de classes e as negociações com a burguesia, é a manutenção das reformas mais prejudiciais (como o Novo Ensino Médio), a implementação de novas medidas de ataque à classe trabalhadora (como o Arcabouço Fiscal) e o avanço da privatização (como do metrô de Belo Horizonte pelo governo Lula-Alckmin e as tentativas de privatização da Sabesp pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas no estado de São Paulo).

TEIMA

Essencialmente, Hip Hop é resistência e expressa a luta contra o racismo e a polícia! Hoje já assume formas diversas, é sim heterogêneo e provoca os mais variados debates interna e externamente ao movimento. É um terreno em disputa, onde competem as mais variadas concepções de mundo, que devem sim ser debatidas, e exatamente por essa necessidade de serem discutidas suas contradições e aquelas vindas da sociedade, que o conteúdo de denúncia da origem nunca deixou de existir. Muito pelo contrário, segue vivo, latente, e tomando forma a partir de novas estéticas que vem de “baixo pra cima”, dos artistas das periferias do mundo inteiro, que são os maestros que ditam os ritmos e criam novos gêneros como Trap, Grime, Drill, Detroit e etc, isso quando não estão fundindo esses elementos com outros em uma infinidade de possibilidades, como rappers como FBC vêm fazendo nos últimos anos, a partir de juntar o Rap com os elementos dos Bailes Funk e do House. A cultura segue viva como nunca, como parte da identidade de toda uma população, e irredutível em resistir. Uma fagulha revolucionária no mundo de migalhas que está posto.


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Antonio Neves

Estudante de história da UFMG e militante da Faísca Revolucionária
Estudante de história da UFMG e militante da Faísca Revolucionária
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