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A Revolução Traída: prefácio à edição brasileira

Iuri Tonelo

A Revolução Traída: prefácio à edição brasileira

Iuri Tonelo

Publicamos aqui o “Prefácio à edição brasileira” do livro A Revolução Traída, escrito especialmente por Iuri Tonelo, sociólogo e professor universitário, e editor do Ideias de Esquerda. No mês em que completam 83 anos do assassinado de Leon Trótski, esta obra é um importante resgate do processo de burocratização stalinista da União Soviética.

[...] os doutrinários não ficarão satisfeitos com uma definição tão vaga. Desejariam fórmulas categóricas; sim-sim, não-não. As questões sociológicas seriam muito mais simples se os fenômenos sociais tivessem sempre contornos precisos. Mas nada é mais perigoso do que eliminar, em nome da integridade lógica, os elementos da realidade que hoje contrariam nossos esquemas, e que amanhã podem refutá-los por completo [...]. A tarefa científica, tanto quanto a política, não é dar uma definição acabada de um processo inacabado, mas seguir todas as suas fases, extrair dele suas tendências progressivas e reacionárias, expor suas relações mútuas, prever as múltiplas variantes do desenvolvimento futuro, e encontrar nesta previsão um ponto de apoio para a ação.

Leon Trótski, A Revolução Traída

Dos fenômenos internacionais, é possível dizer que as guerras, as crises e as revoluções são alguns dos temas de mais difícil compreensão. Trata-se de objetos que se movimentam de forma intensa, em transformação acelerada e conectados com inúmeras determinações, temas de alta complexidade. Eis a dificuldade de criar uma teoria geral sobre esses fenômenos.

A Revolução Traída de Leon Trótski é, desse ponto de vista, um livro singular: uma das mais monumentais análises da ascensão, desenvolvimento, reação interna e degeneração de uma revolução. E mais, da mais importante revolução dos trabalhadores em seus 200 anos de lutas, a Revolução Russa.

A riqueza do livro está, entre outras coisas, na reflexão sobre os fundamentos históricos, econômicos, sociais e políticos da formação, no interior da revolução, de um processo de reação que foi consumindo sua energia revolucionária e conformando uma casta privilegiada, que o autor chamou de burocratização. Essa ideia, embora seja relativamente conhecida, tem sido muito simplificada, e as críticas ao autor do livro, realizadas de forma mecânica e esquemática.

Ao contrário disso, o livro que estamos tratando traz uma análise profundamente enraizada nas questões vitais da revolução do ponto de vista objetivo (que incluem o problema do atraso econômico, a questão agrária, o isolamento internacional), mas também das questões subjetivas. A dialética de Trótski consegue incorporar na sua análise desde o desgaste subjetivo com as batalhas, até os temas da cultura, das artes, do modo de vida, da constituição da juventude, da questão da mulher, em suma, um conjunto de determinações que estão na realidade fortemente integradas e podem definir os rumos da revolução, se de ascensão ou de retrocesso.

Assim, o leitor que se debruçar sobre essa obra perceberá muito rapidamente que o autor não compreendeu o fenômeno de reação no interior da Rússia, que se conformou como stalinismo, como um problema de um indivíduo (ainda que as ações individuais terão enorme relevância): nosso autor foi muito além disso e compreendeu teórica e estrategicamente as entranhas do fenômeno stalinista, descrevendo amplamente suas determinações, e com uma riqueza que não poderia ser alcançada em uma visão meramente analítica, pois não se tratava de compreender os acontecimentos da revolução e sua reação (termidor), mas de pensar as possibilidades de reorganizar a classe trabalhadora, no interior da Rússia e internacionalmente, para reconduzir o Estado operário e sua política para a mão das grandes massas trabalhadoras, uma batalha verdadeira pelo socialismo.

A relevância e atualidade dessa reflexão se dá por estarmos em um momento de crise e estancamento internacional na economia, com tensões geopolíticas e a guerra da Ucrânia, mas também com processos de revoltas e rebeliões internacionais, e greves gerais que recolocam a classe trabalhadora em cena, como a ocorrida na França no momento em que estamos escrevendo essas linhas. Assim, precisamente em um momento que se recoloca o debate de estratégia e a disputa em torno do comunismo, aqui no Brasil vimos um fortalecimento do stalinismo, ainda embrionário, expresso em algumas pequenas organizações e youtubers, retomando autores como Domenico Losurdo ou incentivando a ideia de que a China atual seria o “socialismo no século XXI”, na contramão dos escritos de Marx e dos bolcheviques. Nesse sentido, retomar as conclusões dessa obra para o debate na vanguarda nos parece de vital importância, como parte de esclarecer e retomar os ideias de emancipação dos trabalhadores e a construção de uma sociedade sem oprimidos e explorados, que estão na base do marxismo desde suas primeiras elaborações.

As conquistas da revolução

Um dos debates que dividiu águas no período que antecedeu a Revolução Russa foi sobre a natureza da transformação que se avizinhava com a queda do tsarismo. A posição menchevique argumentava que se tratava de uma revolução dirigida pela ainda débil burguesia russa, que levaria a construção de um capitalismo russo mais fortalecido e, por conseguinte, de um longo período antes que estivessem dadas as condições para o socialismo. De outro lado, a teoria de Trótski argumentava que a industrialização acelerada na Rússia, acompanhada de uma burguesia débil (uma vez que o processo de industrialização tinha dinâmica transnacional), poderia levar a que a classe operária, muito concentrada e fortalecida em alguns centros, tivesse potencial de ser um sujeito hegemônico, e, em aliança com os milhões de camponeses do país, dirigisse as transformações e as exigências colocadas diante da derrubada do tsarismo, sem esperar por uma etapa capitalista, intermediária. Dessa forma, diretamente combinando desafios como a reforma agrária e demandas democráticas da sociedade com a socialização dos meios de produção, desenvolvendo as forças produtivas no caminho ao socialismo, um aspecto do que ficou conhecida como “teoria da revolução permanente”.

A polêmica foi resolvida pela história, pois, ao contrário da visão evolucionista e etapista do processo histórico, defendida na época pelos mencheviques, a Revolução de 1917 se desenvolveu como uma revolução proletária, encabeçada pelos trabalhadores em aliança com os camponeses, confirmando um dos aspectos centrais da visão permanentista.
O fato é que a compreensão da Revolução Russa implica justamente que as bases econômicas atrasadas na qual se inseriram a revolução exigiam, por um lado, uma busca acelerada de transformações internas, a “revolução dentro da revolução” e, por outro lado, a conexão com a revolução internacional, na qual a perspectiva internacionalista era parte crucial da política bolchevique. As dificuldades objetivas que nasceram disso estarão na base dos obstáculos que a revolução vai enfrentar e são pontos centrais na análise de Trótski.

E as bases para avanços acelerados estavam colocadas desde a insurreição de 1917. Em A Revolução Traída, o primeiro aspecto que o autor destaca é que o salto econômico promovido por meio da revolução, mesmo se tratando de primeiros anos e com todas as contradições que serão abordadas em seguida, demonstrou cabalmente a superioridade da economia planificada em relação às “economias de mercado” dos países capitalistas. O autor analisa na abertura do livro os saltos industriais que a URSS conquistou. Para dar um exemplo: pós-crise de 1929 até 1935, Trótski aponta que a Inglaterra aumentou sua produção industrial entre 3 e 4%, que nos Estados Unidos caiu 25%, na França, cerca de 30%. O que mais aumentou foi o Japão, que teve saldo positivo de 30%. Nada disso é comparável com o crescimento da URSS, que no período de 6 anos aumentou sua produção em 3,5 vezes, o que significa um crescimento de 250%.

Esse é apenas um dos exemplos, entre vários elencados, das possibilidades de crescimento a partir da economia planificada. Isso significa que, a partir da revolução, se colocaram possibilidades de desenvolvimento econômico na URSS, com avanços significativos que vão desde uma política educacional na qual "mais de 50 milhões de analfabetos e cerca de 40 milhões de semianalfabetos” [1] fossem alfabetizados entre 1923 a 1939, incluiu aspectos de combate às opressões (como a garantia do direito ao divórcio e aborto para as mulheres no início da revolução), até em ganhos estruturais econômicos, como atingir tecnologias industriais. Um crescimento acelerado que não esteve ao alcance de nenhum dos países da periferia do capitalismo – nem próximo disso. Diz o autor:

Os imensos resultados obtidos pela indústria, o início promissor de um florescimento da agricultura, o extraordinário crescimento das velhas cidades industriais, a criação de outras novas, o rápido aumento do número de operários, a elevação do nível cultural e das demandas culturais são os resultados indiscutíveis da Revolução de Outubro, na qual os profetas do velho mundo acreditaram ver o túmulo da civilização. Já não temos mais nada a discutir com os senhores economistas burgueses: o socialismo demonstrou seu direito à vitória, não nas páginas do O Capital, mas em uma arena industrial que constitui a sexta parte da superfície do globo; não na linguagem da dialética, mas na do aço, do cimento e da eletricidade. Mesmo no caso da URSS sucumbir como resultado das dificuldades internas, dos golpes do exterior e dos erros de direção – coisa que esperamos firmemente não ver – seria, como prova do porvir, o fato indiscutível de que a revolução proletária foi a única coisa que permitiu a um país atrasado obter em menos de vinte anos resultados sem precedentes na história.

De fato, a URSS vai se tornar uma das maiores forças econômicas internacionais, e Trótski já aponta esse caminho com a experiência do início da tomada do poder pelo proletariado, ao contrário de toda campanha ideológica do grande capital, e demonstrava as potencialidades da revolução socialista. Nesse sentido, o livro abre com uma significativa crítica anticapitalista.

As bases materiais da reação

A obra de Trótski é bastante conhecida na sua ênfase na necessidade da revolução em escala internacional. O internacionalismo é uma marca de sua obra, a percepção de que os fenômenos da luta de classes internacional influenciam decisivamente a própria revolução no país. Desse ponto de vista, o revolucionário foi o grande opositor de uma visão que marcou uma das grandes rupturas com toda a trajetória da teoria e da prática política desde Marx e Engels, a ideia de que seria possível um “socialismo em um só país”.

De fato, desde a Revolução de 1917, toda a orientação de Lênin, Trótski e do Partido Bolchevique foi no sentido de pensar o desenvolvimento da revolução em outros países e de como essa era uma necessidade vital da Revolução Russa, que irrompeu em um país economicamente atrasado. O debate sobre os processos de luta em distintos países era uma marca do período pós-revolução, com os célebres congressos da Internacional Comunista como uma escola de estratégia e tática, debatendo desde as hesitações das direções vacilantes nos países até as expressões de ultraesquerdismo, mas tudo orientado no sentido da revolução internacional.

O clima de efervescência do começo dos anos 1920 contrastava com a difícil situação interna. Pierre Broué narra como as lideranças alemãs ao chegar à Rússia nas vésperas da revolução viram cartazes espalhados por toda a cidade incentivando o estudo do idioma para acompanhar os acontecimentos da insurreição, e os operários aceitavam não ter aumento ou até corte nos próprios salários para enviar para os camaradas alemães [2]. Esse era o clima naquele país diante das possibilidades da revolução no país vizinho. Por suposto, sua derrota em meio a vacilações da direção afetaram o ânimo das massas. O mesmo se pode dizer de outros processos, como o comitê anglo-russo em 1926 ou a revolução chinesa de 1925-1927, em que os erros de estratégia levaram a sérias derrotas do movimento operário internacional. De fato, os erros internacionais foram decisivos para isolar a revolução, impactar negativamente na subjetividade das massas e fortalecer as tendências conservadoras e burocráticas.

A Revolução Traída também apresenta ao leitor a riqueza da análise de Trótski sobre as contradições internas do país (e essa conexão com o plano externo). Sem dúvida uma das questões vitais da Revolução Russa estava na relação cidade e campo, e nosso autor não só tinha, como Lênin, o problema em mente desde o início, como teve uma das mais bem elaboradas compreensões sobre as contradições, a necessidade das respostas e como os erros estratégicos de direção foram fundamentais para a conformação da base da reação no interior da Rússia.

A análise é feita em toda a sua complexidade nas páginas que seguem na obra, mas é possível apontar que outro dos aspectos que Trótski observou como centrais estava na contradição econômica que ficou conhecida como “tesouras” (entre os preços do campo e da cidade): após forte destruição no período da guerra civil, em que muito dos recursos obtidos eram empregados na própria defesa da revolução na medida em que as forças imperialistas se juntaram para atacar a Rússia bolchevique, a indústria na URSS permaneceu muito estagnada e os preços de produtos industriais seguiram muito caros; isso levava ao desestímulo para a produção dos camponeses, porque sua entrega ao trabalho nas terras não levava a contrapartida de uma melhoria de vida com produtos industriais (ao contrário, no período da guerra civil, devido à dinâmica extrema do processo, a produção era quase toda voltada para a própria defesa da revolução). A Nova Política Econômica (NEP), do começo dos anos 1920, que inseriu provisoriamente e de forma bem demarcada novas relações de mercado no campo para estimular a produção, resultou em um barateamento dos preços agrícolas (o que era fundamental para atacar o problema da fome), mas sem contrapartida de avanços na indústria, resultando no aprofundamento das tesouras, isto é, a antítese que se ampliava entre os preços agrícolas e industriais.

Lênin e Trótski sabiam dos perigos internos da NEP e a encaravam como uma tática localizada, que deveria ser combinada com uma melhora significativa da indústria e uma transformação cultural interna, de forma a debilitar progressivamente a contradição e as fissuras entre o campo e a cidade. O fato é que, já no final da vida de Lênin, e sobretudo após sua morte, essa contradição, atrelada ao isolamento da revolução, provocou o fortalecimento das forças de reação no interior da URSS.

O desgaste da vanguarda que passou pela Guerra Mundial, por anos de guerra civil e pela experiência de derrotas expressivas dos trabalhadores internacionalmente no começo dos anos 20, com a necessidade de reconstruir o país e desenvolvê-lo em uma situação de isolamento, ao mesmo tempo em que vai surgindo uma classe de camponeses enriquecidos pela NEP, que começa a ganhar influência nos sovietes e conformar uma base material da reação no interior da URSS, tudo isso está no centro nevrálgico do fenômeno da burocratização da revolução. Após a morte de Lênin, a direção de Stálin e Bukhárin foi catastrófica em nível internacional, mas também internamente, e a síntese desse processo está na consigna levantada em meados dos anos 1920, que dizia “Cúlaques, enriquecei-vos” [3], precisamente no momento em que começa a se consolidar essa classe de camponeses ricos, parte das bases materiais da reação. Essa política burocrática no campo, como em outras esferas, será permeada de ziguezagues, começando por incentivar os cúlaques a se enriquecer, e terminando na coletivização forçada das terras no campo no final da década, quando as hostilidades dos camponeses ricos levavam a crises de desabastecimento e fome, um processo tortuoso e mal preparado que implicará em novas crises de produtividade e fortes custos para as massas no interior da revolução.

Ao contrário do que apontam críticos superficiais de sua obra, Trótski oferece uma explicação materialista e profunda sobre o início do fenômeno de burocratização stalinista, a ponto de argumentar que:

Seria ingênuo acreditar que Stálin, desconhecido das massas, de repente emergiu dos bastidores armado com um plano estratégico totalmente elaborado. Não. Antes que ele tivesse previsto seu caminho, a burocracia o havia adivinhado. Stálin apresentava-lhe todas as garantias desejáveis: o prestígio de um velho bolchevique, um caráter firme, uma visão estreita, vínculos indissolúveis com a máquina política como única fonte de sua influência pessoal. A princípio, Stálin ficou surpreso com seu próprio sucesso. Era a recepção calorosa de uma nova camada dirigente tentando libertar-se dos velhos princípios, bem como do controle das massas, e que precisava de um árbitro confiável em seus assuntos internos. Figura de segundo plano perante as massas e a Revolução, Stálin se revelou o líder indiscutível da burocracia termidoriana, o primeiro entre os termidorianos.

Trótski analisa o conjunto das forças materiais que levam à conformação da burocratização da revolução, um processo de reação interna, e que esse processo encontra em Stálin a pessoa ideal para estabilizar a reação e iniciar o processo de perseguição e repressão contra a vanguarda bolchevique. O processo histórico social elegeu seu líder da reação, e Stálin por conseguinte foi muito influente nesse processo (de forma contrarrevolucionária) – uma dialética que Trótski vai chamar de Termidor soviético, em analogia à Revolução Francesa.

O termidor soviético

Em analogia ao que se desenvolve depois do período jacobino, Trótski argumenta que se vivenciou um período de reação no interior da revolução. O autor define o termidor soviético como “a vitória da burocracia sobre as massas”. As raízes histórico-sociais desse processo, conforme descrevemos, têm bases materiais, descritas no livro de maneira consistente, dotadas de uma decisão subjetiva de uma casta dirigente em assegurar seus privilégios em detrimento da revolução, posição na qual Stálin foi uma personalidade de destaque.

Retomando a teoria da revolução permanente de Trótski, era parte constitutiva de seus fundamentos a visão de que a insurreição operária de Outubro de 1917 não resolveria a questão do socialismo, ao contrário, era apenas um pontapé inicial, decisivo, porém, por definição, insuficiente. Se Marx falava desse momento como “a etapa inferior do comunismo”, no caso da Rússia, com suas dificuldades internas e atrasos econômicos, a questão se tornava ainda mais complexa. Nesse sentido, em A Revolução Traída o autor argumenta que “seria mais correto, então, chamar o atual regime soviético, com todas as suas contradições, não de regime socialista, mas de regime ´preparatório ou de transição do capitalismo ao socialismo”. A definição não tem implicação de preciosismo teórico, mas de relevância política vital, dada a compreensão dos enormes desafios que a revolução na Rússia colocava, que tratava justamente de pensar o desenvolvimento industrial, urbano, a relação harmônica com o campo (aliança de operários e camponeses) como parte de um processo indissolúvel da revolução internacional. Afinal, a revolução na Alemanha, por exemplo, tal como se colocou na ordem do dia, em 1923, seria um alento decisivo, material e subjetivo para o proletariado russo.

É nesse sentido que a luta de classes continua no período posterior à insurreição, em novos embates para a conformação de um regime socialista e que possa, com a expansão da revolução internacional, colocar-se a perspectiva do comunismo. Trótski observa essa tensão no interior da revolução como um fenômeno recorrente, motorizado pela profunda transformação social que significa uma mudança de poder político entre as classes (e seus efeitos nas frações de classe) e na psicologia das massas. Em uma notável passagem sobre esse processo, o autor argumenta que:

É suficientemente sabido que, até hoje, todas as revoluções provocaram reações, e mesmo contrarrevoluções que, aliás, nunca conseguiram fazer a nação voltar ao seu ponto de partida, embora sempre tenham usurpado a parte de leão na distribuição das conquistas. Via de regra, as vítimas da primeira onda da reação foram os pioneiros, os iniciadores, os instigadores, aqueles que estavam à frente das massas durante o período da ofensiva revolucionária, enquanto emergem ao primeiro plano homens da segunda linha, aliados aos velhos inimigos da Revolução. Sob este dramático duelo de “corifeus” na cena política aberta, ocultam-se as mudanças que ocorreram nas relações entre as classes e, não menos importante, profundas mudanças na psicologia das massas até ontem revolucionárias.

Trótski consegue, na sua reflexão sobre o termidor, compreender também em perspectiva histórica, em um estudo denso sobre o processo em curso, o conjunto dos embates que estavam colocados e a disputa pelo socialismo. Por isso que as respostas que o dirigente revolucionário ofereceu nos distintos momentos a partir da Oposição de Esquerda na URSS estiveram sempre ancoradas em propostas políticas e programáticas para reverter, também materialmente, as bases que levaram a esse curso de burocratização, incluindo a atenção que deu para o necessário processo de industrialização, evitando a expansão das tesouras, a desigualdade e pobreza nas massas, entre outros pontos de sua plataforma política e, depois, o programa da revolução política. Não por um acaso, em sua fundamentação, Trótski se utiliza dos recém-descobertos manuscritos de 1845, escritos por Marx e Engels, editados por Riazanov (antes de ser perseguido pelo stalinismo) com o título A Ideologia Alemã.

Uma das chaves do processo em curso, como já apontava Marx no livro citado, era o desenvolvimento das forças produtivas, porque, sem isso, se socializaria a miséria e voltaria a “velha porcaria anterior”, nos termos de Marx. Sobre essa passagem, o dirigente revolucionário argumenta que “nos oferece uma chave teórica única para enfrentar as dificuldades absolutamente concretas e os males do regime soviético”.

Os efeitos políticos e sociais nas massas

Do ponto de vista político, Trótski argumenta que o regime político conformado usurpou o poder das massas e o concentrou em torno de um setor privilegiado. Esse setor não se baseia na característica de ser proprietário privado e articular seu poder a partir de forças econômicas, mas sim está atrelado às funções de administração estatal e, portanto, se define como uma burocracia. Isso é importante para não se confundir com uma “nova classe dominante”, ancorada em bases materiais, como a privatização dos meios de produção.

Isso não significa que as medidas adotadas para manter essa forma de poder sejam mais moderadas; ao contrário, a reação termidoriana implicou em uma perseguição e violência marcantes, tanto da vanguarda política, como da vanguarda artística, e à juventude que se rebelava. A análise de Trótski no período do termidor parte da repressão burocrática, avança para reconhecer feições de bonapartismo no stalinismo e termina por usar o termo “totalitarismo”, levando em conta que o livro foi escrito às vésperas dos Processos de Moscou, um dos momentos mais agudos da repressão. De fato, os crimes de Stálin e a burocracia soviética deixaram marcas profundas e isso tem servido a décadas nas democracias capitalistas para manchar a imagem do “comunismo”, ainda que tais métodos não tenham nada a ver com as ideias de Marx e Engels.

O autor não se detém, no entanto, nos aspectos políticos, mas traz um conjunto de expressões sociais desse processo de burocratização. De um lado, do ponto de vista dos meios para o avanço das forças produtivas no país, analisa criticamente a campanha stakhanovista, que se baseava em premiar operários que trabalhavam em extensas e intensas jornadas de trabalho. Aumentam a produtividade com condecorações e requintes “soviéticos” para obter resultados com meios não muito distintos do frenesi capitalista ocidental.

E, nos polos desse processo, a desigualdade social. O livro narra de maneira aberta as contradições desse processo, uma vez que, com a socialização dos meios de produção, as possibilidades de uma sociedade mais igualitária já seriam muito maiores que qualquer país capitalista. Efetivamente os avanços eram enormes, mas nas altas cúpulas se mantinham os velhos vícios, que levavam a que existissem trabalhadores em condições de moradia e vivência muito precárias em um país com funcionários com inúmeras regalias. Em uma passagem forte nesse sentido, Trótski argumenta que uma parte da população nas fazendas coletivas vivia em cabanas, enquanto funcionários “soviéticos notáveis lamentam-se na imprensa por não haver, nas habitações construídas para seu proveito, um ‘quarto de criados’, isto é, para o serviço doméstico”. Qualquer socialista sério que tenha senso crítico percebe facilmente que essa burocracia stalinista no poder soviético não tinha nada de socialista.

Também do ponto de vista das mulheres e da juventude os retrocessos não foram menores. A íntima poesia da revolução colocava em curso uma transformação interna para atacar os pilares do patriarcado e, nesse sentido, o “lar familiar”, substituindo a lógica de “pequena empresa” por vastos recursos públicos, entre eles serviços ligados a maternidades, orfanatos, jardins de infância, restaurantes, lavanderias coletivas, creches, hospitais, postos de saúde, parques esportivos, cinemas, teatros, em suma, um conjunto de possibilidades para liberar as mulheres da “dupla jornada” no trabalho doméstico e permitir sua plena realização na esfera pública, mas essa batalha foi atacada em cheio pela reação termidoriana. A burocracia retomou o culto à família, a ênfase na “alegria da maternidade”, e retrocedeu nas conquistas, incluindo o direito ao aborto, com a justificativa que “a vida é feliz” na URSS [4]. O mesmo se pode dizer da juventude, que teve seu direito à rebeldia podado em nome da formação de jovens carreiristas, seguidores fanáticos da disciplina e ordenamentos da burocracia. É o que sintetiza poeticamente o autor nas linhas seguintes quando diz: “Os jovens e saudáveis pulmões acham insuportável respirar na atmosfera de hipocrisia, inseparável do Termidor, isto é, da reação que ainda se vê obrigada a vestir-se com as roupas da revolução”.

Daqui que a reação não poderia deixar de ser cultural e se expressar nos distintos polos da produção artística, educacional, psicológica. Uma revolução que, em meio à guerra civil, em seus inícios produzia intensos debates de vanguarda, que incluía escolas como o suprematismo, construtivismo, futurismo russo, cubo-futurismo, imaginismo, entre outras, sendo uma referência internacional, e tornou-se uma engessada produtora do “realismo socialista”, com a burocracia ordenando o que é melhor ou pior em arte e perseguindo os dissensos, uma tragédia para a criação humana, que Trótski defendia desde 1922 em Literatura e Revolução que, sob o crivo de todos os que residiam e se consideravam defensores da revolução, deveriam exigir a mais completa liberdade.

Estado operário, revolução política e comunismo

Toda a densa análise realizada em A Revolução Traída tem por objetivo refletir o encadeamento dialético e as batalhas necessárias do início ao desenvolvimento de uma revolução tendo como guia a estratégia do comunismo [5]. Nesse sentido, o problema da caracterização do Estado na URSS e a reflexão sobre as condições de construção do socialismo e seu definhamento eram centrais.

Antes de tudo, a definição da natureza do Estado para Trótski tinha uma importância chave, pois tinha implicações políticas para o posicionamento dos trabalhadores internacionalmente. Tanto nesse texto como em debates futuros, com destaque para o que ocorre entre o dirigente da IV Internacional e uma fração do SWP norte-americano [6], Trótski parte de que, ainda que em meio a uma forte reação termidoriana, a natureza de classe do Estado não teria se modificado, ou seja, partindo de uma revolução de trabalhadores, não se conformou uma hegemonia do capital no controle do Estado que modificasse sua natureza de classe. Assim escreve:

As classes são definidas pelo lugar que ocupam no sistema social da economia e, sobretudo, pela sua relação com os meios de produção. Nas sociedades civilizadas, as relações sociais são validadas por leis. A nacionalização da terra, dos meios de produção, do transporte e do câmbio, bem como o monopólio do comércio exterior formam as bases da estrutura social soviética. Para nós, essas relações estabelecidas pela revolução proletária definem basicamente a URSS como um Estado proletário.

O autor aborda aspectos fundamentais para traçar essa análise, partindo de que os meios de produção (incluindo terras, fábricas, transporte, bancos) continuavam socializados e nacionalizados, e o país detinha o monopólio do comércio exterior.
Nesse sentido, Trótski polemiza com as noções como de “capitalismo de Estado” (que são bastante genéricas) ou estatismo, ou ainda as de que a burocracia se tornara uma classe dominante. Aqui o critério materialista de compreensão das formas de propriedade no interior da URSS é decisivo, a despeito da política nefasta que a burocracia tinha. Ou seja, se trata de separar as intenções políticas da burocracia que administra o Estado, que são contrarrevolucionárias e têm objetivo de defender seus privilégios, da caracterização da natureza do Estado, que estava assentado em uma revolução social dos trabalhadores. Isso era decisivo especialmente pensando que Trótski já previa, naquele momento, o desenrolar de uma nova conflagração internacional, o que se deu com a Segunda Guerra Mundial, e isso colocava que a defesa do Estado operário, a URSS, diante de ataques do imperialismo era uma posição a se tomar sem hesitação.

Essas características colocavam particularidades da dinâmica de uma nova revolução no interior da URSS, que não seria propriamente da passagem de uma classe para o poder e a hegemonia da sociedade, mas o restabelecimento do controle dos trabalhadores de sua própria revolução, usurpado pela burocracia. Esse processo Trótski definiu como uma revolução política, o que se tornou o grande programa dos revolucionários trotskistas na conformação da IV Internacional e é decisivo para pensar as revoluções no pós-guerra, como o processo da insurreição de metalúrgicos em Berlim em 1953 ou a revolução húngara em 1956, Primavera de praga (Tchecoslováquia) em 1968 ou na Polônia em 1980-1981.

O que estaria em jogo em uma revolução política seria, em primeiro lugar, a derrubada da burocracia por um partido revolucionário com as características do Partido Bolchevique, e implicaria no restabelecimento da democracia dos sovietes e nos sindicatos, além de restaurar a liberdade de partidos soviéticos, os partidos que defendem a revolução. Além disso, era necessária uma profunda mudança no Estado, abolindo cargos, condecorações, restringindo os privilégios no aparato estatal, gastando o vital para as necessidades da economia e do Estado. Como diz Trótski, ela daria à juventude a condição de aprender, pensar, criticar livremente, bem como aos artistas. Restabeleceria os aspectos da revolução dentro da revolução, incluindo o tema da liberação das mulheres da opressão patriarcal. Implicaria uma forte redistribuição da renda nacional, conforme o interesse das massas operárias e camponesas. Mas é importante definir o caráter “político” pela definição do caráter da revolução, uma vez que:

no que concerne às relações de propriedade, o novo poder não teria que recorrer a medidas revolucionárias. Continuaria e aprofundaria a experiência da economia planificada. Após a revolução política, isto é, da queda da burocracia, o proletariado realizaria na economia importantíssimas reformas, mas não uma nova revolução social. [7]

A importância dessa reflexão é decisiva para se pensar o socialismo no século XXI. Isso porque em A Revolução Traída se estabelecem as bases para que os comunistas no século XX e no século XXI pudessem compreender com profundidade o significado histórico da Revolução de 1917 como a mais importante experiência já realizada pelo movimento social do proletariado, e ao mesmo tempo realizar uma profunda crítica dos retrocessos que ocorreram no interior da revolução e, nesse sentido, fornecer todas as armas para que as novas gerações enfrentem tanto a campanha interessada dos meios de comunicação do grande capital, que querem colocar um sinal de igual entre os retrocessos do período stalinista e o comunismo, como extrair todas as lições para que as novas gerações estejam preparadas para o grande desafio do nosso tempo. Esse desafio passa por ser parte ativa de novos processos revolucionários, construir uma sociedade que supere a exploração capitalista e as mais variadas formas de opressão oriundas desse sistema (como racismo, machismo, opressão sexual), restabelecer novas formas de produção harmônicas com a natureza (a preocupação ecológica) e avançar para uma sociedade que supere a divisão em classes, o Estado, a moeda, o valor e suas formas de mercantilização da vida, em suma, construir efetivamente o comunismo. Esses são os grandes fins que todos nós, comunistas no século XXI, buscamos resgatar, e a obra A Revolução Traída é uma arma para nossas lutas, e uma escola de estratégia para pensar a revolução ontem e em nossos dias.


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FOOTNOTES

[1Marisa Bittar, Amarílio Ferreira Jr., A educação na Rússia de Lênin. Revista HISTEDBR Online, Campinas, número especial, p. 377-396, abr. 2011. Disponível em: http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/41e/doc01_41e_2.pdf.

[2Pierre Broué, La Revolución Alemana, Tomo II. Buenos Aires, Ediciones IPS, 2020. No Brasil, o livro de Isabel Loureiro, A revolução alemã (São Paulo, Editora Unesp, 2020) também descreve esses episódios.

[3Cúlaque era a classe de camponeses ricos, uma espécie incipiente de burguesia rural que começou a se esboçar e ganhar certo relevo na Rússia nos primeiros anos após a Nova Política Econômica.

[4Esse debate foi bem apresentado pela historiadora norte-americana Wendy Goldman. Ver o livro Mulher, Estado e Revolução. São Paulo: Boitempo; Iskra, 2014.

[5Leon Trótski utilizou essa expressão 7 anos antes em seu clássico A Internacional Comunista depois de Lênin, conhecido como Stálin, o grande organizador de derrotas (São Paulo: Iskra, 2020).

[6Esse debate foi compilado e está publicado em livro intitulado Em defesa do marxismo, de Leon Trótski.

[7Alguns autores, com destaque para István Mészáros, argumentam que, ao existir relações de capital na URSS, do que se tratava era da necessidade de uma nova revolução social, em oposição à “revolução política”. Trótski conhecia muito bem as formas de manifestação do capital, não só em termos genéricos, mas as formas concretas, como os cúlaques, e pensou em uma série de iniciativas de combate nesse sentido. Não se tratava de não compreender os aspectos sociais evidentes da mudança necessária a ser realizada. Mas compreender a natureza do combate em um país que tem os meios de produção socializados e um Estado proveniente de uma revolução social ou em um país estritamente capitalista o levava a definir, corretamente, o programa da revolução política – e é importante levar em conta que derrubar essa burocracia do poder, e o conjunto das transformações apontadas, não é um detalhe, de modo que não é menor o termo “revolução” empregado.
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Iuri Tonelo

Recife
Sociólogo e professor. Um dos editores do semanário teórico do Ideias de Esquerda, do portal Esquerda Diário. Autor dos livros "No entanto, ela se move: a crise de 2008 e a nova dinâmica do capitalismo" e "A crise capitalista e suas formas". Atualmente é pesquisador na PPGS-UFPE
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