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TEATRO OFICINA | A crueldade deve tomar de assalto o teatro brasileiro

terça-feira 24 de março de 2015 | 16:29

Num momento em que a classe média, devoradora de engenhocas eletrônicas, recorre ao velho símbolo positivista da bandeira brasileira em protestos contra a corrupção, qual seria a relevância política de um “teatro progressista”? Diante da necessidade da classe operária lutar pelos seus direitos, que encontram-se ameaçados por um governo burguês, como o teatro pode encampar uma luta contra o sistema estabelecido? Uma possível resposta passa pelo teatro da crueldade. Esta sugestão vem bem a calhar com o novo trabalho do pessoal do Teatro Oficina: o grupo encena o texto “Pra dar um fim no juízo de deus”, redigido pelo poeta e teatrólogo francês Antonin Artaud. O espetáculo, que entra em cartaz no dia 21 de março na cidade de São Paulo, coloca em cena uma concepção teatral que há décadas influencia o teatro de José Celso Martinez Corrêa. Certos de que o teatro da crueldade, geralmente incompreendido e até mesmo negligenciado pela crítica marxista, pode contribuir com as marteladas contra a cultura dominante, precisamos situar a contribuição revolucionária de Artaud hoje.

Concebida originalmente como peça radiofônica em 1947, “Pra dar um fim no juízo de deus” pode ser entendida enquanto um ataque violento às certezas religiosas e morais da burguesia. Com toda certeza a força política do teatro não pode limitar-se aos aspectos políticos mais circunstanciais: é preciso cavar fundo na pele da ideologia burguesa para arrancar do corpo reprimido os fundamentos da civilização capitalista cristã. Certo, o caráter político do teatro também pode envolver o esclarecimento e a instrução: Brecht, por exemplo, foi preciso na estruturação de uma forma revolucionária que existe em função de um conteúdo específico, objetivo. Mas tão urgente quanto o teatro dialético, é o teatro da crueldade de Artaud. Uma estratégia cênica para que a peça não fique na bem comportada polarização entre “o teatro crítico racional” e “O teatro comercial” está numa comunicação violenta com a platéia. Nada pode ser mais politicamente pertinente do que um teatro que agrida as convicções da pequena burguesia: com a mesma predisposição de quem sai para comer fast food, ir ao playground ou fazer protestos bonitinhos, a classe média vai ao teatro. É sua própria miséria espiritual que a pequena burguesia deseja assistir. Sob estas circunstâncias históricas, o teatrólogo de esquerda não deve ser apenas aquele que esclarece e instrui. O teatrólogo revolucionário é aquele que assume a crueldade enquanto instrumento que interrompe, na base da violência poética, uma cultura feita cada vez mais de plástico e cada vez menos de carne.

A energia erótica que pontua historicamente o trabalho do Teatro Oficina, não se separa do surrealismo de Artaud. No espetáculo “Pra Dar um fim no juízo de deus” observa-se, por exemplo, a sacralização dos excrementos. A subversão vai além do assunto ou tema político racionalista quando reordena o significado cultural daquilo que existe e é nomeado segundo os valores burgueses: o ato de defecar, por exemplo, torna-se um fato religioso. É o corpo que experimenta em sua verdade carnal, nos seus desejos e na redefinição poética do organismo, um enfrentamento contra os julgamentos burgueses que oprimem homens e mulheres na sociedade contemporânea.

A incompreensão que Artaud recebeu de marxistas presos ao racionalismo da mensagem política no teatro, propiciou interpretações reacionárias do teatro da crueldade. Deleuzianos e amantes do relativismo político fazem a festa com as lições cênicas artaudianas, quando na realidade o teatro de Artaud pode ser entendido enquanto uma arma que aciona dimensões fundamentais da Revolução social: a luta econômica e política do proletariado complementa-se com a violação das regras e das normas sociais através do teatro da crueldade. É verdade que Artaud não cheirava o marxismo: quando o movimento surrealista adere na segunda metade da década de vinte ao materialismo dialético, ocorre uma ruptura entre Artaud e seus companheiros surrealistas. Porém, o trabalho de Artaud está longe de ser conservador. Ao mesmo tempo em que podemos apresentar sérias reservas quanto aos aspectos metafísicos da tese de Artaud, devemos considerar que o seu mergulho no inconsciente não é fuga, mas parte de uma ação revolucionária que faz explodir no palco as estruturas mentais do homem burguês.

Artaud não responde certamente a todas as necessidades revolucionárias do teatro. Além de Brecht, as ideias de autores como Meyerhold podem contribuir e muito para as trincheiras nos palcos. Mas tratando-se de um momento em que precisamos combater as características econômicas e psicológicas da classe média, simplesmente não dá pra ficar na superfície do “tema politizante”. Não importa se o conteúdo de uma peça é progressista, caso a forma do espetáculo não explore os recursos que podem, ao vivo, dinamitar a visão e o gosto de um público alienado. Para que o teatro se comunique de maneira profunda, deve-se considerar o espetáculo enquanto chave para a liberação do inconsciente recalcado. Sem proteção e despida de suas convicções estéticas, políticas e religiosas, a platéia tem os seus nervos postos em um liquidificador cênico.

Se como afirma Karl Marx nos “Manuscritos econômicos filosóficos” (1844), a História da humanidade não se separa do desenvolvimento dos sentidos humanos, como estes são estruturados na realidade da pequena burguesia? Esta classe que recusa todas as aventuras do espírito para economizar e depois alienar-se na compra de comidas, bebidas e viagens, não pode consumir sem maiores consequências sensoriais uma peça revolucionária: esta última não deve trazer conforto ou ser um deleite da sexta feira à noite. Deve-se chegar ao inconsciente da plateia não para adaptá-la ao real, mas para fazê-la questionar a cultura estabelecida. Para Artaud isto é claríssimo.


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