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SEMANÁRIO

Argentina: O que significa enfrentar a direita?

Matías Maiello

Argentina: O que significa enfrentar a direita?

Matías Maiello

A vitória eleitoral de Javier Milei [candidato ultraconservador e liberal de extrema-direita] nas eleições primárias na Argentina (PASO) seguida pela desvalorização da moeda implementada por Sergio Massa [candidato do peronismo e atual Ministro da Economia] que derreteu de uma só vez os rendimentos das grandes maiorias populares contradiz a lógica política do “mal menor”. No entanto, como disse Gramsci, o conceito de mal menor é um dos mais relativos. Todo mal maior parece menor em relação a outro ainda maior, e assim por diante, até o infinito. Na verdade, se trata de uma espécie de rendição em parcelas. A história recente da Argentina – e não só dela – continua a demonstrá-lo. Daí a importância da questão: o que significa “confrontar a direita”?

DIvisões e consensos

As prévias eleitorais [1] da semana passada reafirmaram o esgotamento da divisão entre o macrismo e o kirchenrismo que dividiu a política do país nos últimos anos. O peronismo perdeu 6,5 milhões de votos em relação às prévias eleitorais de 2019 e o Juntos por el Cambio (de Macri) caiu quase 1,5 milhão, somando as candidaturas de Bullrich e Larreta.

Em vez disso, outras duas divisões se expressaram fortemente. Os autores do estudo “Encruzilhada da política no pós-pandemia” descrevem como “o novo fosso” aquele que marca o distanciamento crescente entre as direções políticas, os seus discursos e os setores populares. Uma ruptura entre “representantes” e “representados” que nas prévias eleitorais se expressou em uma elevada abstenção, com menos 1,4 milhões de eleitores do que em 2019, e no surgimento de um outsider político como Milei, um candidato que busca representar diretamente os interesses econômicos do grande capital.

Este fenómeno de separação de setores da sociedade dos seus partidos tradicionais é característico dos períodos que Gramsci chamou de “crise orgânica” [2]. Uma crise do Estado como um todo – social, econômica e política – como a que a Argentina atravessa hoje. Seu pano de fundo é o fracasso do “grande empreendimento” que implicou a recomposição do Estado depois de 2001 em chave progressista, mantendo as bases fundamentais da estrutura neoliberal iniciada pela ditadura e consolidada sob o Menemismo. É previsível que este fosso veio para ficar, para além do fenômeno específico de Milei.

A outra divisão que marcou a eleição foi uma divisão social. Sob os governos kirchneristas e macrista, aprofundou-se a fragmentação da classe trabalhadora que emergiu na década de 1990. Como analisa o Observatório dos Trabalhadores do jornal La Izquierda Diario , mais de 42% dos assalariados estão hoje na informalidade, seja como “não registrados, seja como falsos “trabalhadores por conta própria”. É um fenômeno profundo do capitalismo contemporâneo. Durante os primeiros governos kirchneristas, isso se perpetuou, embora mitigado pelo boom econômico. No entanto, com o desenvolvimento da crise e da inflação, as suas consequências tornaram-se extremas. O discurso de “não perder direitos” não tem eco na grande maioria deste segmento de trabalhadores que vivem sem contribuições para aposentadoria, sem indenizações, gratificações, férias, com a saúde e a educação condenadas à degradação infinita.

Geralmente associam os eleitores de Milei a estes setores e, de fato, este é um componente do seu voto, o que explicaria o crescimento das suas porcentagens nas zonas menos abastadas dos grandes centros urbanos que os mapas eleitorais mostram. No entanto, o nível massivo de votação que Milei teve e a sua extensão territorial por todo o país também sugere uma votação transversal: um conjunto heterogêneo que inclui outros setores populares, segmentos significativos das classes médias, trabalhadores autônomos propriamente ditos, etc. Territorialmente, adquiriu especial peso nas províncias do norte, sul e centro do país, incluindo boa parte do cinturão amarelo que havia votado majoritariamente no Juntos por el Cambio nas eleições de 2019.

Esta clivagem social se sobrepôs à existente entre capitalistas e trabalhadores, amplificada nos últimos anos onde os primeiros aumentaram a sua participação no bolo da riqueza produzida de 40,2% em 2016 para 45,3% em 2022 e os segundos caíram de 51,8% para 43,8%. Esta divisão de classes conseguiu ser escondida atrás de um grande consenso entre os programas dos principais candidatos, como o pagamento da dívida com o FMI e a expansão do extrativismo. Isto contribuiu para que Milei conseguisse evidenciar a sua “diferença específica” ao apresentar-se como um suposto defensor contra a casta política sem ter que se preocupar em ser um fiel representante da casta capitalista.

Frente a isso, uma minoria muito mais considerável do que uma análise superficial sugere foi às urnas para dizer “não” a esses consensos. Por um lado, numa complexa eleição executiva claramente inclinada para a direita, a Frente de Esquerda Unidade (FITU) – na qual venceu a candidatura de Bregman-Del Caño – conseguiu manter o espaço das eleições presidenciais anteriores com 630.000 votos (2,65%) e localizar uma força operária e socialista entre as 5 candidaturas que permaneceram de pé para as eleições presidenciais em outubro; com resultados de 6,86% em Jujuy, 4,71% em Neuquén, 4,63% na capital e 3,3% na província de Buenos Aires, onde apenas 4 candidaturas ultrapassaram o mínimo nas prévias. Mas a análise ficaria incompleta sem ter em conta que a eleição incluiu outras forças políticas que disputaram o espaço daqueles que se opõem às políticas de ajustamento e ao pacto com o FMI. Em grande medida, foi assim que foi concebida a lista de Juan Grabois dentro do União pela Pátria peronista, que obteve 1.390.000 votos. Pela primeira vez, habilitaram uma divisão nas prévias eleitorais dentro do peronismo e isso se deu para evitar a perda de votos para a esquerda diante da possibilidade de avanço da FITU. Num nível muito inferior, Libres del Sur obteve outros 154.000. A isso se somam os votos de outros setores da esquerda como o Nuevo Mas com 85 mil votos e Política Obrera com 62 mil.

No total, são cerca de 2.300.000 votos que expressaram, de uma forma ou de outra, como oposição a esses consensos das classes dominantes. A sua fragmentação – efeito da candidatura de Grabois no Unión por la Patria – diluiu este setor no mapa das eleições primárias, impedindo-o de se expressar como algum tipo de polarização nos extremos, ainda que altamente assimétrica.

As urnas e as ruas

As eleições, como diria Engels, são uma “recontagem globular de forças”; as relações de força são algo muito mais amplo e complexo. Isto é válido para a avaliação tanto das eleições como um todo mais à direita, quanto da emergência de um Milei. O espaço eleitoral que ele ocupou já estava aí. Era produto tanto da divisão política entre representantes/representados como da divisão social dentro da classe trabalhadora no contexto da crise econômica. A questão é por que foi ele quem o ocupou. Muitos elementos foram apontados nas análises da última semana que contribuem para uma resposta: a construção midiática do personagem é um deles, a circulação de certos sensos comuns (individualistas e meritocráticos), uma reação a discursos com muitos significantes vazios (da parte do Kirchnerismo), a resignificação de uma das razões da hegemonia de Menem [3] com a ideia de “dolarização”. Por sua vez, Milei dificilmente teria conseguido emergir como surgiu fora de um cenário marcado pelo consenso do FMI. Mas quero deter-me num elemento que se refere de forma mais global à relação de forças e que Fernando Rosso, num artigo recente, descreve como a transformação da classe trabalhadora numa “maioria silenciosa”.

Há muito tempo, a democracia liberal propriamente dita é uma quimera. Desde o surgimento da política de massas, uma soberania popular não atenuada sempre foi potencialmente perigosa para a burguesia. O que aconteceria se em vez de derreter os salários dos trabalhadores com a desvalorização da moeda e mergulhá-los ainda mais na miséria, uma maioria optasse pelo não reconhecimento soberano da dívida externa e por atacar a minoria de banqueiros e grandes empresas de cereais que controlam o comércio exterior? É deste perigo que figuras emblemáticas do liberalismo como Friedrich Hayek levantam a necessidade de uma “democracia limitada” e, juntamente com Milton Friedman – que dá nome a um dos cachorros de Milei -, apoiaram “ditaduras liberais” como a de Pinochet no Chile.

Outra resposta foi a “ampliação” do Estado – que Gramsci tematiza, e Trotsky também à sua maneira – onde a burguesia não espera mais passivamente pelo consenso das maiorias, mas desenvolve toda uma série de mecanismos para “organizar” este consenso. A estatização das organizações de massas e a expansão das burocracias dentro delas é um dos elementos fundamentais, com a sua dupla função de “integração” ao Estado e de fragmentação da classe trabalhadora. Na Argentina, tradicionalmente vemos isso na organização dos sindicatos e, depois da rebelião popular de 2001, também nos movimentos de trabalhadores informais e desempregados em torno do Ministério do Desenvolvimento Social.

Em 2017, frente ao agravamento crescente das condições de vida das massas, este mesmo esquema resultou, como analisou à época Juan Carlos Torre , na divisão da base eleitoral do peronismo entre Massa e Cristina Kirchner. Nas jornadas de dezembro desse mesmo ano contra o governo Macri – que até hoje continua a ocupar as propagandas eleitorais de Patricia Bullrich – milhares mobilizaram-se nas colunas de diferentes sindicatos. Muitos outros se mobilizaram apesar deles. Houve uma presença importante da esquerda e dos movimentos dos “trabalhadores informais” e dos desempregados. Foi uma perigosa demonstração de unidade que ameaçou o governo Macrista num país que tem a tradição de 2001. O peronismo pretendia garantir a governabilidade e tirar a unidade das ruas por trás do “existe 2019” que levou à candidatura de Alberto Fernández para as eleições presidenciais, reunindo a ala Massa e a ala Kirchner.

Desde então, as centrais sindicais se mantiveram no mais absoluto alinhamento com o governo durante anos de altíssima inflação, ajuste fiscal e aumento da precarização. Sem aparecer nas importantes mobilizações da Praça de Maio contra o acordo firmado com o FMI em 2021, convocado por mais de 100 organizações, incluindo a FITU; Deixando isolados todas as lutas que se deram durante esses anos, desde as ocupações de terra que tiveram seu epicentro em Guernica (incluindo a repressão de Kicillof) até a luta da saúde em Neuquén, passando por muitas lutas parciais em diversas províncias. O exemplo mais recente foi Jujuy. Outro tanto poderíamos falar a respeito dos movimentos sociais alinhados com o governo, limitados (no melhor dos casos) a mobilizações pontuais ao Ministério do Desenvolvimento Social.

É lógico que diante da absoluta passividade dos sindicatos, imposta pela burocracia peronista, e dos próprios movimentos sociais oficiais, diante de 4 anos de degradação das condições de vida da maioria (que custou ao peronismo 6,5 milhões votos), um setor de trabalhadores precários e informais se viram interpelados pela demagogia “antipolítica” de uma personagem como Milei. A ausência de uma luta coletiva das massas contra os ataques de todos estes anos é o que verdadeiramente fortalece a aposta individual pelo “salve-se quem puder” imposto pelo capitalismo.

Uma análise especial merece a província de Jujuy, onde recentemente se desenvolveu um importante processo de luta. Por um lado, a vitória de Milei, no quadro de um panorama ideologicamente confuso, não pode ser separada do resultado dessa luta. A recusa das centrais sindicais, nas mãos do peronismo, em desenvolver a luta foi fundamental para que a reforma de Morales não caísse, o que minou a confiança de amplos setores populares no poder das suas próprias forças nas ruas. Mas, por outro lado, também mostrou outra dinâmica possível de uma minoria importante que avançou na sua consciência como resultado da experiência na luta. Foi assim que em Jujuy a Frente de Esquerda obteve os seus melhores resultados com cerca de 10% para a candidatura de Alejandro Vilca a Senador e votos mais elevados nas áreas que foram epicentros do conflito.

A batalha contra o ajuste e a direita

A desvalorização da moeda feita por Massa com o respectivo salto da inflação e a passividade dos sindicatos e movimentos oficialistas é a mais recente contribuição do peronismo à campanha de Milei. O poder de compra dos salários, das aposentadorias e dos planos sociais são sacrificados uma vez mais em nome do FMI. A ideia de que Massa, apoiado por Cristina Kirchner, representa uma alternativa frente ao ascenso de Milei se choca com as verdadeiras causas do fenômeno por trás do mapa eleitoral deixado pelas primárias. Poucas vezes na história recente, o cenário eleitoral e o da luta de classes estiveram tão imbricados. Se trata de batalhas que estão colocadas agora e também da preparação para o que vem.

Para enfrentar a direita é necessário travar uma batalha contra as políticas de ajuste deste governo, do que virá, e das grandes patronais que se preparam para redobrar as condições de exploração e de saque, aliados ao FMI. É necessária uma grande coligação que reúna nas ruas as forças de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, se manifestaram contra o ajuste e a subordinação ao FMI, dos quais o próprio Milei, entre outros, se nutre. Que contribua para forjar, acima de qualquer “corporativismo”, a unidade dos diferentes setores em que hoje se divide a classe trabalhadora – como aliás foi parcialmente delineado em dezembro de 2017 –, e entre cujas brechas a direita se liga. Também com o movimento de mulheres, o movimento estudantil, o movimento socioambiental. Que quebre a paralisia dos sindicatos imposta pela burocracia da CGT e da CTA. São lutas que começam pela organização em cada local de trabalho, de estudo, em cada bairro.

Ao mesmo tempo, é fundamental recuperar os sindicatos das mãos da burocracia e a luta pela independência total dos diferentes movimentos em relação ao Estado. Isso é inseparável da luta pela democracia no seio dos sindicatos e movimentos, onde todos tenham a possibilidade de disputar livremente a influência sobre os seus membros. Estas são duas condições essenciais para que as organizações de massas não sejam instrumentos de “controle” da mobilização, mas verdadeiras ferramentas de luta que expandam suas fronteiras para os trabalhadores contratados, os precários, buscando a unidade com os informais e desempregados. Junto com isso, buscar criar organismos para a unificação e coordenação das lutas sempre que a situação o permitir. Longe das ilusões sobre o “mal menor”, o que está colocado é uma “guerra de posições” onde está em jogo a autonomia da classe trabalhadora e do movimento de massas. E, com isso, a possibilidade de parar a mão dos ajustadores, começando pelo próprio Massa, e desenvolver uma verdadeira alternativa ao “salve-se quem puder” do qual se nutre a direita.

As voltas do "Fora todos”

Não deixa de ser uma ironia da história que aquela palavra de ordem de 2001, que emergiu da eclosão do governo Alianza como uma sequela do menemismo, seja cantada em atos de um setor político que se afirma como menemista. Os anos de passividade do movimento de massas garantidos pelo peronismo encorajam uma pessoa de fora como Milei a surfar na onda, aparentemente sem medo. O sociólogo peruano Meléndez Guerrero disse que:

"O outsider é um amortecedor, pois funciona apenas como referente identitário e não como proposta política que atenda às exigências que aos poucos se tornam mobilizáveis. O êxito dos outsiders adverte um maior descontentamento social, que está represado e pode transbordar a qualquer momento, e urge de forma orgânica que evite que o protesto se transforme em violência e não em política institucionalizada”. [4]

De fato, poderíamos dizer que o outsider é um amortecedor contra um fenômeno mais amplo que ele não controla. As suas possibilidades de “êxito”, de não desencadear confrontos que o ultrapassem, dependem da sua capacidade de institucionalização. Seguindo o exemplo próximo de Bolsonaro, em seu momento ele conseguiu reunir atrás de si as poderosas igrejas evangélicas do Brasil, o agronegócio – junto com outros setores da grande burguesia – e os militares. O apoio direto destes últimos, que povoavam os seus ministérios, era fundamental. As forças armadas do Brasil contavam com um prestígio social significativo. Dificilmente se pode imaginar um cenário semelhante na Argentina, muito menos ligado às fracas e desacreditadas forças armadas argentinas. André Malamud disse em referência a Milei que “se não é Bolsonaro, talvez seja um Collor de Mello: um presidente carismático e liberal que, em minoria, não acabou em autoritarismo, mas num impeachment”.

No entanto, ao contrário de grande parte da América Latina, onde o impeachment tem sido um instrumento característico para destituir presidentes [5] , na Argentina esta tradição não existe. Em seu lugar há outra, deixada precisamente de 2001: um presidente eleito que cai como resultado da mobilização popular. O principal problema que temos na Argentina, tanto agora como então, é se a classe trabalhadora conquista a independência política suficiente para encontrar a sua própria saída da situação, e este é o jogo que já está jogando hoje.


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FOOTNOTES

[1Desde 2011 na Argentina, ocorrem eleições primárias, prévias às eleições presidenciais de fato. Elas definem os candidatos de cada coligação partidária, além de eliminar siglas que obtiverem menos de 1,5% dos votos.

[2Ver Dal Maso, Juan, El marxismo de Gramsci, Buenos Aires, Ediciones IPS-CEIP León Trotsky, 2016.

[3Ver Bonnet, Alberto, La hegemonía menemista, Bs. As., Prometeo, 2008

[4Meléndez Guerrero, Carlos, “El fenómeno del outsider en América Latina”, Revista Quehacer, enero-febrero 2006.

[5Ver Pérez-Liñán, Aníbal, Juicio Político al presidente y nueva inestabilidad en América Latina, Bs. As., FCE, 2009.
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Matías Maiello

Buenos Aires
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