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Arrocho salarial e o "milagre econômico" da Ditadura

Pedro Oliveira

Arrocho salarial e o "milagre econômico" da Ditadura

Pedro Oliveira

A política salarial dos primeiros anos da ditadura, ao concentrar renda e auxiliar a garantir a lucratividade da indústria, em especial, é uma base importante do crescimento que se dará durante o período do milagre econômico, onde esse processo irá seguir, com a fórmula de reajuste salarial sendo mantida inalterada até 1974.

O golpe de estado de 1964 no Brasil, que inaugurou a ditadura militar, acontece em resposta a efervescência que ocorria no movimento operário e camponês nos primeiros anos da década, atuando para perseguir sua vanguarda e desmantelar suas organizações. No campo econômico, a ditadura promove uma modernização, com o desenvolvimento de um mercado financeiro nacional, acompanhado de aumento enorme da dívida pública a partir dos empréstimos internacionais, o avanço da industrialização e outras medidas, porém com um caráter profundamente regressivo sobre as condições de vida da classe trabalhadora.

O governo Jango é marcado por um avanço inflacionário que já vinha de governos anteriores e chega a 80% em 1963. Logo após o golpe, o ministro do Planejamento Roberto Campos, avô do atual presidente do Banco Central, escreve relatório onde identifica duas causas principais para a inflação: os déficits públicos e a pressão salarial. Este relatório será a base para o Plano de Atuação Econômica do Governo (PAEG), que será marcado por um profundo arrocho salarial. O PAEG previa três diretrizes para a política salarial:

a) Manter a participação dos assalariados no produto nacional;
b) impedir que reajustamentos salariais desordenados realimentem irreversivelmente o processo inflacionário; e
c) corrigir as distorções salariais, particularmente no Serviço Público Federal, nas Autarquias e nas Sociedades de Economia Mista”
[Citação do documento “Programa de Ação Econômica do Governo: 1964-1966” publicado pelo então Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica, em novembro de 1964, consultado no artigo “A política brasileira de estabilização: 1963/68”, publicado por André Lara Resende.]

Em 1965, é implementada a nova fórmula de reajustes salariais dos servidores públicos, que no ano seguinte passaria a valer também para o setor privado. Por essa fórmula, os reajustes anuais iriam recompor os salários de modo que fossem iguais, em níveis reais, à média dos 24 meses anteriores, acrescidos de parte do aumento da produtividade e de metade da inflação prevista pelo governo para o ano seguinte. O resultado disso é uma grande queda nos salários reais, seja por serem equiparados à média e não ao pico dos anos anteriores, seja pelas previsões de inflação extremamente menores do que o verificado na realidade, seja sendo corroídos pela inflação entre um reajuste e outro. O salário real médio, em 1967, era 10,8% menor do que em 1963, enquanto o salário mínimo era quase 20% menor, segundo dados do DIEESE.

Junto a essa política salarial, o governo aboliu a estabilidade no emprego para os funcionários do setor privado, colocando em seu lugar o FGTS, e promoveu uma reforma tributária de caráter regressivo, aumentando a participação dos impostos indiretos sobre o consumo, que penalizam os setores mais pobres, enquanto promovia isenções e abatimentos no imposto de renda para pessoas jurídicas e para setores das classes mais ricas.

É contra essa situação que se levantam os operários de Contagem (MG), em abril de 1968, que conseguiram um aumento salarial de 10%, em todo o país. Em junho do mesmo ano, sem dúvida ainda por influência desse movimento, o governo federal altera a fórmula de reajuste de maneira que, caso a previsão oficial tivesse subestimado a inflação real, essa seria usada para os cálculos do reajuste, uma mudança que na prática não promoveu grandes alterações no cenário em que os salários reais seguiram comprimidos.

A política salarial dos primeiros anos da ditadura, ao concentrar renda e auxiliar a garantir a lucratividade da indústria, em especial, é uma base importante do crescimento que se dará durante o período do milagre econômico, onde esse processo irá seguir, com a fórmula de reajuste salarial sendo mantida inalterada até 1974.

Segundo dados do Censo de 1970, em meio ao período do milagre, o decil mais rico do país havia aumentado sua renda em 67% ao longo da década anterior, e passava a representar 48% da renda total do país, em uma demonstração da ação da ditadura no sentido de concentrar a renda.

A partir do primeiro choque do petróleo, em 1973, a inflação voltará a apresentar uma trajetória de aceleração, concomitante a um crescimento econômico ainda forte, porém menor do que no período do milagre. Em 1975, a participação dos rendimentos do trabalho no PIB atingiu o menor nível da série histórica, representando apenas 41%. [Os dados sobre a participação dos salários no PIB foram retirados de “A distribuição funcional da renda no Brasil: 1947-2019” de Alessandro Miebach e Adalmir Marquetti.]

A segunda metade dos anos 70 serão um período de crise para o capitalismo a nível global, com recessões nos países ricos. No Brasil, é quando começam a vir à tona parte das contradições acumuladas durante o período do milagre, onde o crescente déficit em conta corrente, causado pelo aumento dos pagamentos de juros e as remessas de lucros para o exterior, foi coberto com a captação de empréstimos externos, o que possibilitou o aumento das reservas cambiais, mas também gerou uma trajetória de forte aumento da dívida externa, e uma maior fragilidade da economia frente ao cenário internacional.

Tal política irá se intensificar com o aumento dos preços do petróleo e a deterioração das contas externas. O segundo choque do petróleo, o aumento dos juros nos Estados Unidos e a diminuição da liquidez internacional, a partir de 1979, vão gerar a crise desse modelo, com o serviço da dívida externa sendo um peso cada vez maior sobre o orçamento público, as desvalorizações cambiais gerando um aumento da inflação e a recessão que irá atingir o país a partir de 1981.

Se o crescimento econômico, auxiliado inclusive pelas condições financeiras internacionais, e a ampliação do crédito de modo a permitir uma expansão do consumo da classe média foram as bases que permitiram um período de maior estabilidade política, calcada na repressão e perseguição durante o governo Médici, a deterioração crescente das condições de vida e da situação econômica serão as bases para o ressurgimento das fortes contestações ao regime, a começar pelas manifestações estudantis de 1976, em São Paulo.

A inflação, que chegará a uma média anual de 90% em 1979 e 1980, e o achatamento dos salários reais levarão as greves que começam no ABC Paulista mas se espalham por todo o país, e que, partindo de demandas salariais, irão assumir um caráter de contestação aberta da ditadura, sendo a políticas de arrocho. Uma primeira vitória com abrangência nacional desse movimento será a mudança da política de reajustes salariais, que se tornam semestrais, em 1979.
A experiência das greves, tanto as dos anos 1970, mas também as de 1968, mostram que a ditadura foi central para o desempenho da economia brasileira no período, não sendo possível fazer uma separação entre a política e a economia.

O arrocho salarial, gerador do aumento das taxas de lucro na indústria, que foi o motor do crescimento brasileiro na época, e a reforma tributária regressiva só foram possíveis de implementação por causa da repressão, que manteve os sindicatos controlados, com direções favoráveis ao regime militar, e que calava qualquer tentativa de organização operária na base da prisão, tortura e assassinato. A greve de Osasco, em 1968, foi um exemplo disso pois, frente a luta dos operários por reajustes salariais, a cidade toda foi ocupada por tanques e tropas do Exército, impondo uma derrota aos trabalhadores. Na greve de Contagem, se bem conseguiram um reajuste de efeito nacional, sua reivindicação inicial era de aumento de 25%. A prisão dos dirigentes e a ocupação das áreas industriais da cidade pela PM foram os elementos capazes de garantir o reajuste menor.

Nos anos 1970, no marco de um regime mais fragilizado política e economicamente, greves mais massivas e mais disseminadas do que as da década anterior não só foram capazes de fazer aumentar a parcela do trabalho no PIB, que chegaria a 52,5% em 1981, como aceleraram a reabertura política para além do pretendido pelos militares, e colocaram a possibilidade da derrubada revolucionária da ditadura, que foi impedida, em grande medida, pela políticas de suas direções, do chamado Sindicalismo Autêntico capitaneado por Lula, que buscou ao máximo manter as greves apenas dentro do campo salarial, e colocaria suas forças no apoio a articulação com setores da burguesia na campanha das Diretas Já!

Várias das consequências das políticas econômicas da ditadura seguiram tendo efeitos décadas depois. As mudanças na estrutura tributária são um exemplo, mas também o alto nível de endividamento externo seguiu como um gargalo importante da economia nacional até meados dos anos 2000. Lula, em seu governo, trocou a dívida externa por dívida interna, a um custo bastante alto. No entanto, a dependência do Brasil da entrada de investimentos externos voláteis, atraídos pelas altas taxas de juros internas, se aprofundou durante o governo petista.

E agora, quando se completam 60 anos do golpe, Lula veta, para preservar sua relação com os militares, atos que buscavam lembrar os horrores da repressão e as heranças da ditadura que persistem não só na economia, mas em diversos campos da vida brasileira. enquanto enfrenta greves contra sua própria política de arrocho salarial do funcionalismo. Nessa situação, as greves que feriram de morte o regime militar se mostram como uma incômoda lembrança para o atual presidente.


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Pedro Oliveira

Estudante de Economia na USP.
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