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DENÚNCIA | “As plataformas estão piorando todo o processo educacional”, relata professora estadual de SP

Comecei a dar aula no Estado de SP recentemente e, dentre as imensas dificuldades que a educação pública enfrenta, notei uma novidade extremamente perigosa: o excesso do uso obrigatório de plataformas digitais nas nossas práticas de ensino. Aponto para o perigo deste problema pois ele vem mascarado de palavrinhas adoradas pela mídia hegemônica, como “solução”, “inovação”, “tecnologia”. No site da Secretaria de Educação do Estado de SP, há um texto celebrando o uso destas plataformas que diz o seguinte: “com foco na melhoria contínua da qualidade de ensino e do desempenho escolar dos alunos e no preparo desses jovens na era digital e do conhecimento, a Secretaria da Educação criou o programa Novas Tecnologias, Novas Possibilidades. O objetivo é aprimorar o processo de aprendizagem (...)”

quinta-feira 2 de maio | Edição do dia

No entanto, me pergunto: será que a melhoria na qualidade de ensino realmente é o compromisso do Estado ao promover estas plataformas ou o objetivo é maquiar alguns resultados? Será que as plataformas de fato preparam os alunos na “era digital” ou somente produzem estudantes focados em cumprir metas respondendo comandos em uma máquina? Quais “novas possibilidades” são essas? O intuito seria aprimorar o processo de aprendizagem ou controlá-lo por meio de dados fornecidos a empresas privadas?

Para pensar sobre estas perguntas, é importante dizer que dou aula de Língua Portuguesa e Orientação de Estudos, duas disciplinas que possuem plataformas obrigatórias, com tempo mínimo de uso e resultados controlados por um sistema de inteligência virtual (o BI). Caso as metas (determinadas pelo Estado) não sejam cumpridas, é gerado um constrangimento no professor, como se ele não estivesse dando aula; constrangimento que desconsidera problemas de conectividade, falta de recursos da escola (computadores funcionando plenamente), questões de login/senha dos alunos que, inúmeras vezes, retardam ou impedem o acesso e, o principal, a qualificação e autonomia do docente para usar o tempo de aula de acordo com a BNCC e priorizando as realidades e demandas particulares de cada turma.

A disciplina de Orientação de Estudos, por exemplo, prevê que todas as aulas sejam dedicadas ao uso das plataformas. Há algumas semanas notei que várias turmas que encontro nesta matéria apresentam problemas graves de racismo e homofobia. Tentei fazer uma discussão com os alunos, começamos a assistir um filme para praticar a sensibilização para estes temas, mas em todo ATPC é reforçada a necessidade e obrigatoriedade de usar as plataformas, independente de qualquer coisa, pois os prazos precisam ser cumpridos e a escola não pode ficar em “vermelho” no BI. Além da pressão no ATPC, também já fui questionada pessoalmente pela gestão escolar sobre os motivos que levavam as minhas turmas a terem um índice não satisfatório de uso dos aplicativos. Com isso, ainda não conseguimos terminar de assistir ao filme e uma discussão mais reflexiva, cujo o intuito seria construir com os alunos uma visão de mundo ética e cidadã, foi minada por atividades repetitivas das plataformas - mas é provável que estas turmas, pelo menos esta semana, tenham status “verde” no BI. E status verde significa, com a maquiagem do Estado, melhoria na qualidade de ensino, aprimoramento da aprendizagem e preparo na “era digital”.

Com relação às aulas de Língua Portuguesa, a maior vilã tem sido a plataforma de redação. Apenas para ilustrar: se um aluno não posta a redação no aplicativo, mas me entrega escrita num papel, ganhamos um “vermelho” - mesmo que este aluno escreva muito bem. Contudo, se um aluno posta na plataforma vários espaços em branco, sem nenhuma palavra sequer, adivinha o que ganhamos? Sim, um status verde! Se todos os alunos entregarem espaços em branco ou palavras soltas na plataforma de redação, o Estado pode sair dizendo que 100% da turma está escrevendo. Mas, se eu, professora qualificada, atesto que meus alunos estão escrevendo (e muitas vezes reescrevendo) em papel, “ninguém” acredita - e ainda posso passar por constrangimentos. A cor - ou o número - que estas máquinas revelam têm muito mais valor do que a palavra e avaliação do professor - que além de ser qualificado, convive e conhece os alunos.
Ou seja, ao invés de aprimorar a aprendizagem, as plataformas estão piorando todo o processo educacional; a pressão para que se mantenha uma alta constância de uso alimenta práticas pedagógicas vazias, porém cheias de resultados verdes, bonitos e que caminham para reforçar um imaginário de que o professor é desnecessário, afinal os números altos (independentemente de como sejam produzidos) vão começar a indicar um desempenho melhor através do uso de telas. Assim, o fantasma da privatização da educação pública, que há anos nos assombra, vai ganhando contornos mais vivos e tenebrosos pois, mais do que privatizar, parece que o projeto é robotizar o ensino.

Por fim, é importante dizer o óbvio: nenhum profissional comprometido com uma educação de qualidade é contra as “novas tecnologias”. Pelo contrário! Queremos que nossos alunos tenham realmente um letramento digital, que saibam fazer diferentes tipos de pesquisas, que saibam usar inteligência artificial com pensamento crítico, que trabalhem para obter experiências conscientes e cidadãs dos usos de jogos, redes sociais, sites de entretenimento, etc. E neste aspecto as plataformas do governo não ajudam em nada. A verdade é que há um “novo” muito mais novo - e contraditoriamente mais antigo - que precisa vir à tona e que reside nas palavras de Paulo Freire: é necessário educar com sentido, com participação, priorizando a cidadania, a criatividade, o brilho nos olhos, os vínculos e a politização. Sem isso, qualquer tecnologia que se venda como nova produzirá efeitos assustadoramente ultrapassados.




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