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Autismo e capitalismo: uma análise marxista

João Paulo de Lima

Autismo e capitalismo: uma análise marxista

João Paulo de Lima

Buscando contribuir com as reflexões que se abrem no mês de abril, mês do dia mundial de conscientização sobre o autismo, seguimos com a reflexão sobre o autismo no capitalismo, como já fizemos nesse artigo anterior, debatendo, a partir da teoria marxista, sobre como o Estado burguês não é capaz de dar nenhuma solução às necessidades dos autistas e como o autismo não pode se encaixar nos moldes do capitalismo, que, patologizando o autismo, não leva em consideração as particularidades dos autistas, além da relação de dimensões como raça, classe e gênero com o autismo. Partindo dessa perspectiva, defendemos a necessidade da luta pela destruição do capitalismo, rumo ao comunismo.

Em 2012, foi instituída, durante o governo Dilma (PT), a Lei 12.764, também conhecida como Lei Berenice Piana, que institui a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Esta lei reconhece o autismo como uma deficiência.

Em teoria, essa lei deveria garantir à comunidade autista o acesso a ações e serviços de saúde, tais como o diagnóstico precoce, o atendimento multiprofissional, a nutrição adequada e a terapia nutricional, os medicamentos e informações que auxiliem no diagnóstico e no tratamento. Assim como deveria ter assegurado o acesso à educação e ao ensino profissionalizante, à moradia, ao mercado de trabalho e à previdência e assistência social. E também ao direito à educação com atendimento especializado garantido pelo Estado.

No ano de 2015, foi publicada a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, que também é conhecida pela sigla LBI (13.146/2015). Essa lei, também em teoria, deveria garantir a inclusão social e a cidadania da pessoa com deficiência, seja ela qual for, assegurando e promovendo, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais, incluindo as pessoas com TEA.

Há também a Carteira de Identificação da Pessoa com TEA (Ciptea), prevista na Lei federal 13.977, de 2020. O documento deveria garantir o acesso a serviços especializados de saúde e educação e também a prioridade nos atendimento de urgência, por exemplo.

Somente na Câmara dos Deputados há mais de 200 projetos de lei e até mesmo Propostas de Emenda à Constituição (PECs) em tramitação relacionados aos direitos dos autistas.

Assim, constatamos que leis não faltam por parte do Estado e dos políticos burgueses que supostamente tentam garantir condições igualitárias entre neurotípicos e neurodivergentes. Mas será que a "igualdade perante a lei" é o mesmo que igualdade perante a vida? Para responder essa pergunta, vamos nos apropriar da análise de Marx e do marxismo do Estado burguês.

Há um certo mito na nossa sociedade, muito divulgado, de que o Estado é aquele que representa o interesse geral, que existe para defender os interesses comuns de toda população. Mas a população não é um todo homogêneo e este é o ponto de partida da crítica de Marx ao Estado. A sociedade está dividida em duas classes sociais fundamentais.

De um lado está a classe dos capitalistas, que são os proprietários dos meios de produção (fábricas, empresas, latifúndios e etc) e não precisam trabalhar para sobreviver, e de outro lado está a classe trabalhadora, que por não ter a propriedade desses meios de produção, se vê obrigada a vender, para a classe que os têm, sua força de trabalho. É assim que a propriedade privada traça as fronteiras entre as classes sociais. Assim, mesmo que haja a suposta igualdade perante a lei, existe uma desigualdade social gritante entre a esmagadora maioria de trabalhadores, cada vez mais pobre, miserável e oprimida, e um punhado de capitalistas, cada vez mais ricos e privilegiados.

Mesmo que proclame a igualdade nas leis, reconhecendo todos como “cidadãos”, o Estado burguês não pode eliminar as contradições de classe.

Para garantir os seus interesses e seus lucros, os capitalistas não podem, por exemplo, garantir às massas femininas, negras e não-heterossexuais que conquistem as mesmas condições de vida dignas de um punhado privilegiado de pessoas da classe social dominante ou das camadas mais abastadas. Ou seja, a defesa no papel pela Constituição, da igualdade de gênero e raça por parte do Estado burguês é puramente demagógica e cosmética, isto é, para inglês ver. E, ainda assim, até mesmo esse resguardo legal, historicamente, só é firmado pelo Estado burguês mediante muita luta dos setores mais oprimidos e explorados por ele. A incorporação da lei de injúria racial à constituição, por exemplo, só se deu em 1988, ainda que existisse como proposta de lei desde 1846.

Assim, o Estado burguês não pode, de fato, garantir os interesses da comunidade autista, porque isso vai contra os interesses de lucro dos capitalistas.

Como mais um exemplo, a rede de serviços gratuitos especializados para autistas é deficitária, tornando o tratamento um privilégio de pacientes com planos de saúde caros que reembolsam (muitas vezes mediante decisão judicial) pagamentos mensais superiores a R$ 13 mil, segundo reportagem do Estadão. [1]

Um estudo da Gradual Social – braço de pesquisa do Grupo Gradual, especialista em intervenção comportamental no Brasil – mostra que existem hoje apenas 17,7 mil vagas para terapias gratuitas em todo o país. Enquanto isso, segundo estimativas internacionais, nascem quase 60 mil crianças autistas todos os anos no Brasil.

O levantamento considerou equipamentos públicos e privados que atendem o SUS, como as unidades da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). A pesquisa revela que o déficit no sistema é de 40 mil vagas por ano e que, em média, 27 pessoas com TEA compõem a fila de cada serviço público existente no Brasil.

A precarização do atendimento público de saúde é um projeto para favorecer o setor privado da saúde, fazendo com que a comunidade autista tenha que arcar com altos custos de atendimento e tratamento. Entretanto, nem todos os autistas têm condições socioeconômicas para arcar com os custos impostos pela saúde privada, o que escancara a omissão do Estado burguês. Se a saúde pública fosse 100% estatal, sob controle dos trabalhadores e usuários, o setor privado não seria favorecido. Por isso, é parte do projeto do Estado burguês sucatear a saúde pública para favorecer o setor privado da saúde. Isso evidencia como os interesses da comunidade autista vão em contramão aos interesses dos capitalistas da saúde.

Mas não é só no âmbito da saúde que os direitos dos autistas se tornam uma mercadoria a serviço dos lucros dos capitalistas. O mesmo ocorre na educação.

Por exemplo, em 2007, o Estado de São Paulo foi obrigado, por lei, a arcar com os custos de educação e saúde de qualquer indivíduo com autismo. O Estado deveria, em tese, arcar com os custos em centros especializados, e qualquer pai poderia recorrer a esse serviço. Mas na prática nem sempre isso ocorre, mostrando que a igualdade perante a lei nem sempre se traduz em igualdade na prática. É também parte de defender os lucros dos magnatas da educação não investir na educação das pessoas com autismo, pois se o ensino público e gratuito oferecido fosse de boa qualidade, a comunidade autista não se veria obrigada a buscar as instituições de ensino privadas e a pagar por seus serviços, garantindo os seus lucros.

Segundo o último censo escolar, 294.394 alunos com autismo cursaram os ensinos infantil, fundamental ou médio das redes pública e privada em 2021. A alta é de 280% se comparada a 2017, quando havia 77.102. Mesmo assim, ainda são uma parcela do universo que deveria frequentar a sala de aula - No Brasil, seriam mais de 2 milhões de pessoas, segundo estimativas.

O aumento no número de matrículas acompanha uma exigência legal: pelos princípios constitucionais, nenhuma escola pode recusar a entrada de um aluno por causa de uma deficiência – nem mesmo as da rede privada.

Ainda é precária, como exemplos, a adaptação de conteúdos para alunos com autismo, a formação adequada de professores, ações de combate ao bullying e a elaboração de avaliações específicas. Isso sem falar na negativa ou limitação de matrículas, medidas que ainda ocorrem na rede privada, apesar de ilegais.

Há alunos que têm diversas necessidades, como um acompanhante que desenvolva um sistema de comunicação alternativa com o professor regente e os colegas ou até mesmo de um cuidador para questões de higiene pessoal.

Após se formarem no ensino fundamental II, as crianças que estudam na rede pública normalmente precisam ser transferidas para um colégio estadual. Isso significa migrar para uma instituição maior, com novos funcionários e colegas. Em vez de apenas um professor para cada turma, passa a ser um docente por disciplina (matemática, português, história, geografia, etc.). Os conteúdos ficam mais complexos e abstratos.

No estado de São Paulo, o número de profissionais de apoio não acompanha a evolução observada no total de matrículas. Na rede estadual, por exemplo, há cerca de 5,5 mil profissionais de apoio no autocuidado (responsáveis por prestar assistência com locomoção, higiene e alimentação) para um universo de 68 mil alunos com deficiência - desses, 15,5 mil estão dentro do TEA. Não são todos os que precisam, mas a sua ausência pode impedir que alguns frequentem a escola.

Assim, vemos que a comunidade autista no âmbito escolar tem diversas necessidades importantes, mas que o Estado burguês está muito longe de garantir essas necessidades, o que, como demonstramos, faz parte do projeto de sucatear e reduzir custos na educação pública, que poderia ser gratuita e de qualidade. No entanto, isso é feito para garantir os lucros do setor privado da educação.

Outro elemento é a questão de raça, classe e gênero relacionadas com o autismo. Dados apontam que nos Estados Unidos, as crianças afro-americanas com autismo foram diagnosticadas em média 1,4 anos depois das crianças brancas e passaram mais oito meses em tratamento de saúde mental antes de serem diagnosticadas [2]. Também nos EUA, crianças não-brancas e de baixa renda são menos prováveis de capitalizar os serviços de intervenção precoce específicos para o autismo durante importantes janelas de desenvolvimento, quando ocorre neuroplasticidade ideal e proliferação sináptica [3]. Crianças autistas de grupos raciais e étnicos minoritários experimentam disparidades significativas no acesso aos serviços de saúde relacionados ao autismo, com certas áreas estatísticas baseadas em núcleos [4] tendo maiores desigualdades do que outras. [5]

Já as mulheres autistas são muito mais suscetíveis à hospitalização do que seus colegas do sexo masculino devido à depressão, ansiedade, automutilação, entre outras nove condições psiquiátricas. [6] Pesquisas também apontam que mulheres autistas podem ter menos probabilidade de receberem um diagnóstico em comparação com homens. [7]

Pessoas com autismo têm maior probabilidade de se identificarem como LGBTQ+ em comparação com seus pares neurotípicos. [8]

Além disso, crianças de famílias com baixa renda têm maior probabilidade de serem diagnosticadas com autismo tardiamente. Também há uma associação entre baixa renda e acesso limitado a serviços de diagnóstico e tratamento. [9]

Segundo pesquisa do IBGE de 2022, 85% dos autistas estão desempregados no Brasil. Autistas têm maior tendência a desenvolverem depressão do que neurotípicos e a propensão a cometer ou a pensar em cometer suicídio é maior nos autistas.

Todos esses dados apresentados demonstram a falência do sistema capitalista, do Estado burguês e de suas leis em dar uma resposta concreta às dificuldades encontradas pelos autistas. Faltam dados sobre a população negra, feminina e LGBTQIA+ autista no Brasil, mas, levando em consideração o caráter racista, patriarcal e LGBTfóbico da sociedade brasileira, não deve ser diferente dos dados apontados acima. Esses dados também escancaram a lógica seguida pelo Estado burguês, a lógica do capital, que, ao considerar pessoas autistas como mercadorias, também considera que extrair força de trabalho dessas pessoas, significa ter mais gastos e, assim, endossado pela estigmatização da sociedade burguesa, ignora a realidade da comunidade autista, apesar de todas as leis que garantem seus direitos.

Voltando à questão do Estado burguês, vemos que toda vez que setores da sociedade se colocam em movimento por seus direitos, como trabalhadores, mulheres, negros, LGBT’s, indígenas e outros setores, os capitalistas, seus políticos e o Estado burguês precisam achar formas de enfraquecer essas lutas, para que elas não se transformem um questionamento ao sistema capitalista de conjunto. O mesmo serve para a comunidade autista. O Estado burguês tenta canalizar e desviar a luta da comunidade autista para a via institucional, isto é, para os estreitos limites do que permite o próprio Estado burguês, criando leis e fazendo falsas promessas para parecer que esse Estado está, de fato, resolvendo os nossos problemas. Mas, na verdade, está apenas engambelando a comunidade autista, de modo a conter e manobrar a nossa luta. Isso é feito para que essa comunidade não questione a raiz dos problemas que enfrentam no seu dia-a-dia, que é a própria sociedade capitalista.

O capitalismo não é capaz de dar uma saída para a comunidade autista, pois não pode se adaptar às necessidades da comunidade autista, já que isso vai na contramão dos seus lucros e da sua ganância desenfreada. O autista só é “inferior” desde o ponto de vista da lógica capitalista.

Joanna de Paoli e Patrícia Fernandes Lootens Machado, retomando Vigotski no artigo "Autismos em uma perspectiva histórico-cultural", explicitam como a ideia de alguém ser deficiente ou não, não é meramente uma questão biológica ou orgânica, mas principalmente social:

"Para Vigotski (2012b), no caso do desenvolvimento de pessoas com alguma divergência biológica, obviamente, podem ocorrer variações. Porém, um impedimento orgânico – por si só – não torna alguém deficiente. A deficiência está amalgamada com determinações sociais, pois um sujeito apenas se percebe deficiente em sociedade. O confronto dele com a materialidade, no contexto das relações humanas e não humanas, revela sua singularidade e a decorrente desconformidade de sua posição social. A interrupção orgânica não age diretamente, sua ação é especialmente indireta, manifesta-se na reação da sociedade, na inferiorização de um grupo social, conduzindo a pessoa com deficiência a reações emocionais-comportamentais consigo e com outro".

As duas autoras dão o exemplo da incapacidade biológica do ser humano de voar. Isso não faz o ser humano ser inferior, porque ele foi transformando o seu meio para que este se adaptasse ao desejo da humanidade de realizar o seu sonho de voar, superando seus próprios limites. Hoje, o ser humano consegue viajar por várias partes do universo. Ou seja, é uma questão de adaptar o nosso meio de acordo com as nossas necessidades. Uma vez que o mundo se adaptasse aos anseios dos autistas, estes deixam de ter dificuldades por serem autistas.

Segundo Vigotski, “a criança cujo desenvolvimento está comprometido pelo defeito não é simplesmente uma criança menos desenvolvida que seus contemporâneos normais, mas desenvolve-se de outro modo” (VIGOTSKI, 2012b, p. 12, grifos do original).

Assim, o modo de desenvolvimento das crianças autistas não é, a priori, inferior em relação às outras crianças neurotípicas, mas apenas diferente, nem melhor nem pior. E é imprescindível levar em consideração as particularidades e necessidades das crianças e pessoas autistas. Isso vai na contramão da lógica capitalista, em que tempo é considerado dinheiro e a lógica utilitarista e mercantilista das necessidades humanas é a dominante. No capitalismo, o raciocínio é puramente instrumental, tudo deve estar a serviço da eficiência e produtividade. Nesse sistema nefasto, a vida se resume a um conjunto de regras e cálculos, impedindo que a criatividade e a liberdade se tornem elementos fundamentais da existência humana. É por isso que o capitalismo vai no sentido completamente oposto à liberdade plena de desenvolvimento das capacidades da comunidade autista. Não é uma pílula que vai resolver os problemas sofridos pelos autistas, mas a transformação revolucionária da realidade para que ela se adeque às necessidades dos autistas.

O autismo não é uma doença a ser curada ou pessoas a serem normalizadas, não se trata de uma patologia, mas de uma outra forma de vida, uma variação natural da humanidade.

Segundo de Paoli e Lootens Machado, "para os(as) ativistas do movimento da neurodiversidade, o autismo é uma condição neurológica e uma questão identitária que constitui toda a sua formação, pois “não é alguma coisa (uma doença) que se “tem‟, mas algo que se “é‟. Não é a “concha‟ que aprisiona a criança normal” (ORTEGA, 2008, p. 485). Logo, o autismo é indissolúvel do sujeito e, se fosse possível removê-lo, não teríamos mais o mesmo indivíduo, mas uma identidade diferente".

Já a ativista neuroqueer, Melanie Yergeau (2018), aponta que compreender o autismo em comportamentos involuntários também "é um projeto de desumanização", pois faz com que as pessoas autistas não sejam vistas como pessoas, como se fossem cativas de um cérebro desordenado, ao invés de atuantes de suas próprias histórias. O autismo não é uma condição voluntária, mas isso não significa que os autistas não tenham história, anseios e paixões.

Achamos que de fato é necessário batalhar para que conquistemos mais direitos, mas fica claro que esses direitos só vão ser alcançados se os autistas e seus familiares, se organizarem e lutarem em conjunto com a classe trabalhadora e setores oprimidos, se mobilizando e impedindo que a burguesia e o Estado burguês deixem de cumprir com esses direitos. Mas, a garantia plena de todos os direitos da comunidade autista, para que jamais sejam perdidos, só virá com um processo revolucionário.

É por isso que acreditamos que é preciso lutar pela destruição do sistema capitalista, batalhando por um governo de trabalhadores, rumo ao socialismo, e depois ao comunismo, sociedade que para nós se adequa perfeitamente aos anseios da comunidade autista, porque, como Marx disse, será uma sociedade que seguirá o princípio: “de cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo suas necessidades!”


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João Paulo de Lima

Estudante de Ciências Sociais - UFRN
Estudante de Ciências Sociais - UFRN
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