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Banquete dos malditos ou “No Banquete dos Mendigos”

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Banquete dos malditos ou “No Banquete dos Mendigos”

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Quem são os malditos? Figuras que marcam todas as áreas da produção artística, espalhadas pela história e tão variadas como François Villon, Ismael Nery, Modigliani, Alfred Jarry, Qorpo-Santo e Jards Macalé. Hoje marcados na história da arte como figuras incontornáveis se formos discutir a arte alternativa, foram ignorados em seus respectivos tempos pelos olhos do grande público ou diretamente apagados sob a torrente da indústria cultural moderna. Agora que estamos próximos ao dia nacional da MPB, quero recomendar brevemente alguns dos nossos malditos, mas dentro de um recorte mais específico: a música brasileira nos anos 70 e o “Banquete dos Mendigos”.

Dito ou maldito?

Não caiamos à tentação de resumir a figura do maldito à do experimentalista. No final dos anos 60, a arte brasileira dá de cara com uma tormenta que mudaria completamente sua concepção de si mesma: a Tropicália. Argumento ver na Tropicália uma expressão artística bem-acabada e gritante do desenvolvimento desigual e combinado brasileiro (ao que se reservará uma elaboração futura). Em sua análise acerca da situação política e cultural desse primeiro momento pós-golpe de 64, Roberto Schwarz arrisca um esquema das linhas principais do Tropicalismo:

Arriscando um pouco, talvez se possa dizer que o efeito básico do Tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil. A reserva de imagens e emoções próprias ao país patriarcal, rural e urbano é exposta à forma ou técnica mais avançada ou na moda mundial - música eletrônica, montagem eisensteiniana, cores e montagem do pop, prosa de Finnegans wake, cena ao mesmo tempo crua e alegórica, atacando fisicamente a platéia. É nesta diferença interna que está o brilho peculiar, a marca de registro da imagem tropicalista. O resultado da combinação é estridente como um segredo familiar trazido à rua, como uma traição de classe. É literalmente um disparate - é esta a primeira impressão - em cujo desacerto porém está figurado um abismo histórico real, a conjugação de etapas diferentes do desenvolvimento capitalista. São muitas as ambiguidades e tensões nesta construção. O veículo é moderno e o conteúdo é arcaico, mas o passado é nobre e o presente é comercial; por outro lado, o passado é iníquo e o presente é autêntico etc. [1]

Mas não nos deixemos enganar: ainda enquanto movimento (em entrevista durante seu exílio Caetano e Gilberto Gil afirmam que a Tropicália enquanto movimento morre com seu exílio, mas que um legado e influência foram deixados no Brasil [2]) a Tropicália expôs duas de suas principais canções, que tão bem englobam muito da concepção teórico-artística do movimento, "Alegria Alegria" e "Domingo no Parque" no gigantesco III Festival da Record (com Gil chegando ao 2º lugar na votação, Caetano ao 4º), bem como anos depois nas figuras de Gil, Caetano, Gal, Jorge Ben, tornou-se parte do cânone da MPB. Como movimento marginal, a Tropicália teve enorme repercussão e seus membros, parte deles, seguiram para carreiras longevas no mainstream brasileiro. Nesse sentido, a Tropicália aparece como um ponto-chave na história do experimentalismo brasileiro, mas não necessariamente a história dos malditos engloba sua história. Então, quem então são estes? Levarei como concepção de “maldito da MPB” aqueles artistas que mesmo tendo sido parte essencial da história da MPB, nunca chegaram propriamente ao mainstream (e sua radicalidade estética cumpre um papel essencial nisto), exceto pela voz de intérpretes. De um círculo com tantos nomes, vou me restringir a abordar cinco: o primeiro por afeição pessoal, o restante por suas obras mas também pela participação comum em um evento importantíssimo – o Banquete dos Mendigos.

Explicando pra te confundir

Em 1968, Tom Zé lançava seu primeiro disco, Grande Liquidação. Já embebido na estética tropicalista, carregava críticas sarcásticas à moral familiar burguesa como na canção Glória:

Como um grande chefe de família
ele soube sempre encaminhar
seus filhos para a glória
glória, glória eterna.
Mas aguardando o dia do juízo
por segurança foi-lhes ensinando
a juntar muito dólar
dólar, dólar na terra.
[...]
Mostrou que as boas razões
a causa justa é que é nobre
convive é com os milhões
e tudo isso ensinou
com poucas palavras
e muitas ações

ou em Curso Intensivo de Boas Maneiras:

Com Marcelino vou estudar
Boas maneiras
Pra me comportar.
Primeira lição: deixar de ser pobre,
Que é muito feio.
Andar alinhado
E não freqüentar, assim, qualquer meio.
Vou falar baixinho,
Serenamente, sofisticadamente,
Para poder com gente decente
Então conviver.

Desta primeira obra, de longe se destacam mais duas canções: São São Paulo (que o próprio Tom Zé já comentou como uma de suas músicas que mais tocou em rádios e afins) e Parque Industrial, sua contribuição decisiva ao disco-manifesto Tropicália ou Panis et Circensis. Como parte do movimento tropicalista e de seu disco-manifesto, Tom Zé foi parte da ala paulatinamente esquecida da Tropicália, junto a Capinam, Torquato Neto e Rogério Duprat. Com a prisão e subsequente exílio de Caetano em Gil em 1968 e 1969 a produção de Tom Zé se distanciou da forma arquetípica da tropicália, mantendo sua lírica marcante mas com as contradições marcantes da estética tropicalista menos saltadas — como se vê tanto pela comparação entre as capas de seus 3 discos de 1968, 1970 e 1972, bem como pelas canções mais conhecidas desses discos, que são marcadas por incursões mais aprofundadas em gêneros específicos, como o rock de Jimmy renda-se, o samba de Happy End, entre outros, ao invés da mistura de gêneros kitsch-barroco-délica da Tropicália. Afastado da estética tropicalista e lentamente apagado do legado tropicalista (mesmo sendo seu pensador mais radical [3]), frente ao que o próprio Tom Zé se autointitulou o “Trotsky do tropicalismo” [4], Tom Zé deu seu mergulho decisivo em um experimentalismo radical que demarcaria seu nascimento como maldito.

Tom Zé

Em 1973, chega ao mundo Todos os Olhos. Os gritos, vozes esgarçadas, ruídos, atonalismos, estranhamentos de conjunto que antes apareciam pontualmente em suas obras, agora são parte estruturante de Todos os Olhos. O músico, linguísta e professor Luiz Tatit bem resume o projeto estético que toma Tom Zé então:

Ao invés de estetizar o cotidiano, Tom Zé cotidianizava a estética: inseria as imperfeições, as insuficiências, os defeitos. (...) propunha, a intervenção de um ‘descantor’ produzindo uma ‘descanção’, totalmente desvinculada com a noção de beleza até então cultivada. (...) Portanto, isso nada tinha a ver com o projeto extenso (ou implícito) do Tropicalismo que acabou engendrando a canção de rádio dos anos setenta e abrindo espaço para a canção pop brasileira do final do milênio. [5]

O próprio Tom Zé, logo em seguida ao show de lançamento do seu projeto, disse esboçando parte das razões da mudança brusca:

Não sei bem em que hora eu dei a volta por cima. Mas aí, quando abri os olhos, vi principalmente, na música popular brasileira, as safadezas da pesquisa, do protesto chocho e vazio, da violência da faca cega e do heroísmo da boca pra fora. Então compreendi que o único lugar das coisas feitas com sangue (ou com esforço criativo) é na marginalidade, e que até quando elas alcançam um certo consumo de massa, é geralmente por um certo tipo de engano, ou folclore entre aspas, quer dizer, por modismos da classe média [6]

Uma tradução à sua maneira da ressonância cultural da contracultura e dos levantes estudantis de 68 como na França e no Brasil, Todos os olhos tem diversos destaques que são parte de uma crítica profunda ao contexto social brasileiro à epoca, bem como também uma crítica irônica ao restante da resistência cultural (tenhamos aqui em mente as canções de protesto como “Construção” e “Apesar de Você” de Chico Buarque e “Pra não dizer que não falei das flores” de Geraldo Vandré”). Do chiste ao “compositor sério” em “Complexo de Épico” à deformação antropofágica de “Noite do meu bem”; da recusa a assumir o papel de “herói” (aqui tenhamos em mente tanto a figura nacionalista reacionária do “herói-cidadão de bem” promovida pela ditadura quanto a figura do “herói-guerrilheiro” promovida pelo stalinismo e demais correntes parte das derivas estratégicas) em “Todos os Olhos” à lamentação nostálgica pelo envelhecimento de Brigitte Bardot como figura-símbolo da Nouvelle Vague francesa (e assim, condensação de todo um sentimento de juventude) em “Brigitte Bardot”, Tom Zé explora múltiplas veredas líricas e formais em “Todos os Olhos” que conduziram seu nome e sua obra ao posto de maldito.

Escorregando para não cair

Jorge Mautner é um nome que por mais vezes rasgou o véu que encobre os malditos, atingindo um grande público. Da explosão calma do samba-rock de “Samba Jambo” ao icônico (na voz de Chico Science) “Maracatu Atômico”, Mautner é um dos poetas mais curiosos da música brasileira (com um trabalho literário em paralelo à sua carreira musical que também merece destaque, tendo recebido inclusive um prêmio Jabuti em 1963). Destaca-se muito na obra de Mautner seus vocais esganiçados, quase desafinados, que caminham por sobre as harmonias lado a lado com o som de seu violino.

O início da obra de Jorge (leia-se seus primeiros 4 discos) são exemplares em ao mesmo tempo se integrar e questionar a estética predominante na MPB na época de seus respectivos lançamentos. Por mais que a obra de Jorge não tenha alçado o mesmo vôo que a de figuras próximas suas como Caetano Veloso, canções como Super-Mulher, Samba Jambo, Aeroplanos, Txim-plam, Maracatu Atômico seguem como parte incrível da produção musical brasileira

Jorge Mautner

O arco-íris cor de sangue

Luiz Melodia explorou gêneros ainda mais diversos, do samba-choro ao blues, do Soul ao Xaxado, também como parte do que foi o estabelecimento da black music americana no Brasil, é compositor de canções como “Estácio, Holly Estácio” (gravado por Maria Bethânia), “Pérola Negra” e “Juventude Transviada” (ambas eternizadas na voz de Gal Costa) e “Forró de Janeiro” (com a participação alucinada dos gritos de Damião Experiença)

Parte da sua fama de maldito vem da sus difícil relação com as gravadoras e dificuldade em geral de se adaptar à lógica mercadológica imposta pela industria cultural, assim nunca tendo se submetido a reduzir a arte a produto e nunca tendo alcançado propriamente o mainstream.

Está tudo aí!

Tendo se dedicado à vida de compositor, instrumentista e luthier (criou instrumentos como o “Berimboca” e a “Tamba” que dá nome ao clássico Tamba Trio) após retornar do serviço militar na FEB durante a 2ª Guerra Mundial, Pedro Sorongo (também conhecido como Pedro Santos) foi figura marcada no cenário da música popular brasileira: parceiro do violonista Sebastião Tapajós, cantado pela voz de Elza Soares (“Eu quero é sorongar!”), tocado por Baden Powell (“Sorongaio”) e acompanhou na percussão nomes que vão de Maria Bethânia, Jards Macalé, Milton Nascimento, Sérgio Sampaio, Clara Nunes, Jacob do Bandolin a Paul Simon.

Pedro Sorongo (ou Pedro Santos)

O nome de Sorongo não estar na discussão mais ampla do público, tendo em mente seu destaque como instrumentista e não como cantor, seria de certo modo esperado, se não por uma faceta de sua obra que ficou enterrada sob a história até os anos 2000: Krishnanda.

Lançado em 1968, mas resgatado a uma primeira abertura de ouvidos de um público ainda muito restrito apenas nos anos 2000 com a sua disponibilização em mp3 na internet, Krishnanda é um dos tantos discos-jóia perdidos da música brasileira. Com uma expressão fortíssima do trabalho de Pedro Sorongo como percussionista, Krishnanda é um disco que, por caminhos totalmente distintos mas ao mesmo tempo, chega a algo próximo da fórmula tropicalista de uma psicodelia brasileira fundada em “anacronismos grotescos” (para voltar ao esboço de Schwarz). Transcendental, psicodélico, harmonioso e, em algum sentido, muito brasileiro, Krishnanda é uma expressão mística como poucas outras na música brasileira (pensemos aqui Paêbirú).

Oh, honey baby!

Para além de ser o violão da icônica gravação, na voz de Maria Bethânia, de “Carcará”, compositor da canção “Vapor Barato” que entrou para a história na voz de Gal Costa e de ser o arranjador e organizador da banda por trás do disco Transa, de Caetano Veloso, Jards Macalé é um ponto único na música brasileira. No ano de 1969, ainda como parte da chamada Era dos Festivais, ocorreu o IV Festival Internacional da Canção realizado pela recém-fundada Rede Globo de Televisão. Completamente reorganizado, com novos equipamentos de som e restrições para as torcidas, o festival encarava um problema: grandes figuras consagradas da MPB não participariam pois estavam fora do país por razões políticas, exilados ou auto-exilados, como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Edu Lobo. Inclusive convidados internacionais ilustres como o ex-beatle George Harrison recusaram o convite devido ao clima político brasileiro. Para além disso, a orientação do festival girou em torno de fórmulas que apresentassem grande potencial de mercado e não tensionassem de qualquer forma com o ambiente político (frente ao que nomes da vanguarda como Rogério Duprat, Júlio Medaglia e Damiano Cozzela publicaram o manifesto “Eis o Funeral da Canção” apontando que o festival nivelou por baixo seu repertório) [7], ao que apenas confrontaram Jorge Ben e sua canção “Charles Anjo 45” e, acima de tudo, Jards Macalé e sua apresentação explosiva de “Gotham City”:

Aos 15 anos eu nasci em Gotham city
Era um céu alaranjado em Gotham city
Caçavam bruxas nos telhados de Gotham city
No dia da independência nacional
[...]
Eu fiz um quarto quase azul em Gotham city
Sobre os muros altos da tradição de Gotham city
No cinto de utilidades as verdades Deus ajuda
A quem cedo madruga em Gotham city
[...]
Só serei livre se sair de Gotham city
Agora vivo como vivo em Gotham city
Mas vou fugir com meu amor de Gotham city
A saída é a porta principal
[...]
No céu de Gotham city há um sinal
Sistema elétrico e nervoso contra o mal
Meu amor não dorme, meu amor não sonha
Não se fala mais de amor em Gotham city

Cuidado! Há um morcego na porta principal
Cuidado! Há um abismo na porta principal

Sobre a pequena parcela do público que se mostrou receptiva, ergueu-se um muro de vaias que coroou a apresentação como um acontecimento à maneira tropicalista (apontada inclusive pelo poeta Augusto de Campos como continuadora da luta de Caetano e Gil) que marcou definitivamente Macalé como “maldito”.

Debutando em 1970 com o EP “Só Morto/ Burning Night”, é em 1972, em seu primeiro álbum homônimo e em um contrato consolidado logo após sua participação em Transa, que Jards cria uma estética única: Rock e MPB, mas sem ser o projeto tropicalista, nem o rock-samba-baiano de Acabou Chorare. Jards traz um rock com violão de nylon, com letras que vão de um amor a ser apreciado lentamente como a velocidade de um LP de 78 rotações à “farinha do desprezo” que Jards luta para trocar pela “farinha do desejo”. Fora do olho do grande público pelas suas metáforas incomuns, pelas dissonâncias que não teme explorar, Jards carrega em seu primeiro disco a canção "Let’s Play That" que, parafraseando o "Poema de Sete Faces" de Carlos Drummond de Andrade, atua como mito-fundador de sua obra e um hino para os artistas marginais:

Quando eu nasci
Um anjo louco
Um anjo solto
Um anjo torto, muito
Veio ler a minha mão

Não era um anjo barroco
Era um anjo muito solto, solto, solto
Doido, doido
Com asas de avião

E eis que o anjo me disse
Apertando a minha mão
Entre o sorriso de dente
Vá, bicho, desafinar o coro dos contentes

Let’s Play That

Mas Jards sabe muito bem que não era nem é o único que “desafina o coro dos contentes”. Em problemas financeiros após o fim de seu contrato em 1973, Jards pretendia organizar com companheiros da MPB um festival em autobenefício, que com o desenvolver do projeto, tornou-se um acontecimento-chave na história da música popular brasileira: o Banquete dos Mendigos.

Os malditos no banquete

No dia 13 de Dezembro de 1973 mais de 5 mil pessoas puderam assistir a apresentações de músicos já renomados da bossa nova e da MPB como Johnny Alf, Edu Lobo, Gonzaguinha, Paulinho da Viola, Dominguinhos, Gal Costa, Milton Nascimento e Chico Buarque, mas não apenas: neste mesmo caldo estavam figurões malditos como Jards Macalé, Jorge Mautner, Luiz Melodia e Pedro Sorongo.

Milton Nascimento, Jards Macalé e Raul Seixas
Milton Nascimento, Jards Macalé e Raul Seixas

O festival se configurou como um ponto de destaque no confronto da MPB com a ditadura civil-empresarial-militar brasileira. Em comemoração aos 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos o evento ocorreu no museu de arte moderna do Rio de Janeiro, com o poeta Ivan Junqueira lendo trechos da declaração de direitos humanos entre as apresentações em que Chico Buarque junto ao MPB-4 cantavam "Pesadelo"

Quando o muro separa uma ponte une
Se a vingança encara o remorso pune
Você vem me agarra, alguém vem me solta
Você vai na marra, ela um dia volta

E se a força é tua ela um dia é nossa
Olha o muro, olha a ponte, olhe o dia de ontem chegando
Que medo você tem de nós, olha aí…

Você corta um verso, eu escrevo outro
Você me prende vivo, eu escapo morto
De repente olha eu de novo
Perturbando a paz, exigindo troco

Vamos por aí eu e meu cachorro
Olha um verso, olha o outro
Olha o velho, olha o moço chegando
Que medo você tem de nós, olha aí...

O muro caiu, olha a ponte
Da liberdade guardiã
O braço do Cristo, horizonte
Abraça o dia de amanhã

Olha aí...

em que Paulinho da Viola cantava "Roendo as Unhas":

Meu samba não se importa que eu esteja numa
De andar roendo as unhas pela madrugada
De sentar no meio fio não querendo nada
De cheirar pelas esquinas minha flor nenhuma
[...]
Meu samba não se importa se desapareço
Se digo uma mentira sem me arrepender

em que Jards Macalé cantava "Anjo Exterminado":

Quando você passa três, quatro dias desaparecida
Eu subo, desço, desço, subo escadas
Apago acendo a luz do quarto
Fecho abro janelas sobre a Guanabara
Já não penso mais em nada
Meu olhar vara vasculha a madrugada
Anjo exterminado
Olho o relógio iluminado
Anúncios luminosos
Luzes da cidade
Estrelas do céu

Em que Milton Nascimento cantava "Nada Será Como Antes":

Eu já estou com o pé nessa estrada
Qualquer dia a gente se vê
Sei que nada será como antes, amanhã

Que notícias me dão dos amigos?
Que notícias me dão de você?
Alvoroço em meu coração
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de Sol

em que Raul Seixas cantava "Mosca na Sopa":

Eu sou a mosca
Que pousou em sua sopa
Eu sou a mosca
Que pintou pra lhe abusar

E não adianta
Vir me dedetizar
Pois nem o DDT
Pode assim me exterminar
Porque você mata uma
E vem outra em meu lugar

entre tantas outras apresentações que faziam tremer o chão do MAM, com o público gritando entre canções aos artigos que citavam a tortura e o exílio e expulsando da platéia quem gritava contra “os comunistas”, enquanto tanques cercavam o museu e militares cercavam os produtores para tentar impedir que o show fosse gravado (felizmente falharam) e interrogavam quem saísse. Apesar da sobrevivência da gravação, sua publicação só ocorreu anos mais tarde devido à censura (como outras gravações icônicas do período, vide o show de Gilberto Gil na Poli da USP em 1973).

Em brevíssimo esboço, estes são alguns dos malditos que marcaram a história brasileira e fizeram a história desse dia em que entrecruzaram-se malditos e “ditos” no banquete que mais do que desafinar o coro dos contentes, afinou o coro dos descontentes, o coral dos mendigos.


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FOOTNOTES

[1SCHWARZ, Roberto. Cultura e Política, 1964-1969. In: O pai de família e outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p.87-88

[2Documentário: Tropicália (2012)

[3Em coluna de 2012 sobre o disco Tropicália: Lixo Lógico, Caetano escreve “Diferentemente da bossa nova, a Tropicália é coisa de Tom Zé. Não só ele fez parte do movimento: ele realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizá-lo. É como se Gil, eu, Sérgio Dias e Rita Lee tivéssemos cada um partido para algo livre do projeto inicial: Tom Zé ficou com as questões centrais. E a biografia da Tropicália que ele apresenta nessa nova obra tem muito de autobiografia.”

[5TATIT, Luiz. O Século da canção. Cotia: Ateliê Editorial, 2004. p. 237

[6FREIRE, Guilherme Araújo. O projeto “estético” de Tom Zé em Todos os Olhos: Experimentalismos a favor da crítica à canção da MPB e à política. In: Valente, Heloísa de A. Duarte et al.(eds.). Música y territorialidades: los sonidos de los lugares y sus contextos socioculturales. Actas del XI Congreso de la IASPM-AL. Sao Paulo: Letra e Voz, 2015.

[7ZAN, J. R. Jards Macalé: desafinando coros em tempos sombrios . Revista USP, [S. l.], n. 87, p. 156-171, 2010. DOI: 10.11606/issn.2316-9036.v0i87p156-171. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/article/view/13838. Acesso em: 13 out. 2023.
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Araçá

Estudante de Letras da UFRN e militante da Faísca Revolucionária
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