×

Crise do Coronavírus | Ciência e marxismo: uma abordagem dialética da saúde pública

Como aporte, publicamos com exclusividade este texto, dos cientistas marxistas Richard Lewontin e Richard Levins, parte de seu livro: La biologia em cuestión. Ensayos dialécticos sobre ecología, agricultura y salud, que será publicado em breve, traduzido pela primeira vez para o espanhol, pelas Ediciones IPS.

terça-feira 24 de março de 2020 | Edição do dia

Como aporte, publicamos com exclusividade este texto, dos cientistas marxistas Richard Lewontin e Richard Levins, parte de seu livro: La biologia em cuestión. Ensayos dialécticos sobre ecología, agricultura y salud, que será publicado em breve, traduzido pela primeira vez para o espanhol, pelas Ediciones IPS. Ambos autores são muito conhecidos por suas contribuições em seus respectivos campos, Lewontin em biologia molecular, evolução e genética populacional, nas universidades de Harvard e de Columbia; e Levins – falecido recentementeem ecologia, genética , evolução, agricultura e saúde pública, com pesquisas e aulas na Escola de Saúde Pública de Harvard. Fizeram parte da geração de cientistas que surgiram na militância na década de 1960, em coletivos como Science for the People, denunciando a mercantilização da ciência, seus usos sociais e políticos, criticando, numa perspectiva dialética, as visões biológicas deterministas.

A volta de velhas doenças e o surgimento de novas patologias

Na geração anterior, a posição do senso comum entre os lideres da saúde pública, era de que as doenças infecciosas teriam sido derrotadas e estavam a caminho de sua extinção, tanto com relação às causas da doença, como em sua mortalidade. Aconselhavam aos estudantes de Medicina não se especializarem em doenças infecciosas, pois era um ramo em decadência. De fato, o Departamento de Epidemiologia na Harvard School of Public Health se especializou em câncer e em doenças coronárias.

Mas se equivocaram. Em 1961, a sétima epidemia de cólera se abateu sobre a Indonésia. Em 1970 chegou à África e, na década de 1990 chegou na América do Sul. Depois de uma trégua de alguns anos, a malária voltou para uma revanche. A tuberculose aumentou, chegando a se converter na principal causa de morte em muitas partes do mundo. Em 1976, a doença do legionário eclodiu em uma convenção da Legião Americana, que estava reunida na Filadélfia. A doença de Lyme se difundiu pelo noroeste dos Estados Unidos. A criptosporidiose afetou aproximadamente 400.000 pessoas em Melwaukee. A síndrome de choque tóxico, a síndrome da fadiga crônica, a febre de Lassa, o ebola, a febre hemorrágica venezuelana, a febre hemorrágica boliviana, a febre hemorrágica Crimea-Congo, a febre hemorrágica argentina, o hantavírus e, obviamente, a AIDS, estão nos confrontando com novas doenças. A doutrina da transição epidemiológica se mostrou completamente errada. As doenças infecciosas são um problema grave em todas as partes do mundo.

Por que a saúde pública foi tomada totalmente de surpresa?

Parte da resposta está na premissa de que ciência frequentemente erra ao estudar o desconhecido, acreditando que ele é como o que conhecemos. Frequentemente o fazer científico é assim, mas às vezes não, e é justamente isso o que torna a ciência ainda mais necessária e nos traz uma surpresa inevitável. No final da década de 1930, os físicos se lamentaram pelo fim da física atômica. Já se conheciam todas as partículas fundamentais: o elétron, o nêutron e o próton já tinham sido medidos. O que mais poderia se descobrir? Depois vieram os neutrinos, os pósitrons, os mésons, a antimatéria, os quarks e as cordas. E a cada nova descoberta, proclamavam que tinham chegado ao final.

Mas a explicação requer mais do que apenas declarar o óbvio: a ciência frequentemente se equivoca. Antes de respondermos porque a saúde pública foi pega de surpresa, temos que perguntar: o que convenceu teóricos e profissionais da saúde de que a transição epidemiológica era algo convincente? Apresentamos três argumentos:

1 – As doenças infecciosas estavam tendo redução como causa de morte na Europa e na América do Norte por quase 150 anos, desde que as causas de mortalidade começaram a ser registradas sistematicamente. A varíola estava quase erradicada, a tuberculose estava diminuindo, a malária tinha sido erradicada na Europa e nos Estados Unidos, a poliomielite tinha se convertido em raridade e os males que afetavam as crianças, como a difteria e a coqueluche, estavam desaparecendo. As mulheres já não morriam de tétano logo após darem à luz. Deveríamos pensar à frente: as outras doenças seguiriam o mesmo caminho.

2 – Tínhamos as melhores ‘armas” de toda a nossa história na “guerra” contra as doenças: melhores laboratórios para detectá-las, além de remédios, antibióticos e vacinas. A tecnologia estava avançando ao tempo em que os microrganismos só poderiam reagir de uma forma: mutando. Sem dúvidas, estávamos ganhando.

3 – O mundo inteiro estava se desenvolvendo, e todos os países teriam recursos econômicos para usar tecnologias avançadas e se equiparem de um moderno sistema de saúde.

Cada um desses argumentos era relativamente possível, mas todos eram incorretos. O problema é que, embora pareçam ser argumentos históricos, eles colocam de lado a contextualização histórica, e deixam de lado o fato de que as mudanças históricas alteram as condições de mudanças futuras.

Em primeiro lugar, os profissionais de saúde consideraram um período de tempo muito breve. Se, ao invés de considerarem somente os últimos dois séculos, tivessem contemplado um período da história mais prolongado, o quadro teria sido completamente diferente. O primeiro surto de uma praga – a peste bubônica – foi registrado na Europa, na época do Imperador Justiniano, quando o Império Romano estava em decadência. O segundo surto se abateu sobre a Europa no século XIV, durante a crise do feudalismo. Não está claro qual foi a relação dos acontecimentos políticos e econômicos com essas epidemias, mas quando fazemos uma observação mais profunda nos fatos históricos, fica mais fácil descobrir suas causas. A grande praga que assolou o norte da Itália no começo do século XVII foi uma consequência da fome e do deslocamento contínuo de exércitos durante as guerras dinásticas. O evento epidemiológico mais devastador que já conhecemos ocorreu durante a conquista europeia das Américas, quando uma combinação de fatores, como: doenças, trabalho extenuante, fome e massacres, reduziram a população originária americana em 90%. A Revolução Industrial gerou doenças terríveis que nasciam nas novas cidades, descritas por Engels, com relação a Manchester, em seu livro A situação da classe trabalhadora na Inglaterra.

Portanto, ao invés de argumentar que as doenças infecciosas estão em um declínio inevitável, temos que afirmar que cada grande mudança que ocorre em uma determinada sociedade, seja populacional, no uso da terra, climática, alimentar ou migratória, é também de saúde pública e está diretamente relacionada com seu próprio padrão de doença.

As diversas ondas de conquista europeia disseminaram a peste, a varíola e a tuberculose. O desmatamento nos expõe a doenças transmitidas por mosquitos, por carrapatos e por roedores. Os gigantescos projetos hidroelétricos e os seus canais de irrigação disseminam caracóis que carregam a fascíola hepática e permitem que os mosquitos se propaguem. A monocultura de certos cerais servem de alimento aos ratos e, se as corujas, onças e cobras que comem ratos são exterminados, a população de ratos aumentará, se convertendo em fonte de múltiplas doenças. Novos ambientes, como a água morna e clorada que circula nos hotéis, permitem que as bactérias causadoras da febre do legionário se propaguem. É um microrganismo raro, por estar em desvantagem com relação aos outros, mas tolera melhor o calor do que a maioria dos protozoários maiores, ainda que microscópicos, e assim consegue sobreviver ao cloro. Por último, os chuveiros modernos, com seus jatos finos de água, permitem que as bactérias cheguem aos locais mais remotos de nossos pulmões.

Em segundo lugar, os profissionais de saúde pública pecaram estritamente em outro aspecto: se limitaram em considerar apenas as pessoas. Mas, se tivessem consultado veterinários e patologistas de plantas, poderiam ter visto novas doenças que afetam regularmente outros organismos: a peste suína africana, a doença da vaca louca na Inglaterra, os diversos vírus de mosquitos que afetam os mamíferos do Mar do Norte e o Báltico, o vírus da tristeza dos citros, o mosaico dourado do feijão, a síndrome do amarelinho da cana-de-açúcar, o Geminivírus do tomate, além de todas as doenças que matam as árvores na cidade, já evidenciavam que algo estava errado.

Há um terceiro aspecto em que a saúde pública é limitada no campo teórico: não prestam a mínima atenção na evolução ou na ecologia das interações entre as espécies. Os teóricos da saúde pública falharam em perceber que o parasitismo é um aspecto universal na evolução da vida. Em geral, os parasitas não lidam muito bem com a terra ou a água, portanto, se adaptam a habitats especiais, o interior de outro organismo. Evitam competição (quase completamente), mas têm que lidar com as exigências parcialmente contraditórias do novo ambiente: onde conseguir boa comida, como evitar as defesas do corpo e como encontrar uma saída e passar a outro hóspede. A evolução dos parasitas responde ao meio interno, às condições externas de transmissão e a tudo que fazemos para curar ou previnir a doença. As grandes aglomerações de plantações, de animais ou de pessoas são novas oportunidades para as bactérias, para os vírus e os fungos, que logo tratam de se aproveitar.

Um problema sério é deixar de observar a mudança evolutiva dos patógenos, ao tentar eliminá-los. Os teóricos da saúde pública não consideraram como os microrganismos reagiriam à intervenção médica, embora a resistência às drogas fosse conhecida desde o final da década de 1940, e os responsáveis pelo controle de pragas já sabiam de muitos casos de resistência aos pesticidas. A fé cega em coisas que magicamante permitiriam controlar as doenças, junto ao uso de metáforas militares (“armas na guerra contra...”; “ataque”; “defesa”; "vamos eliminá-los”) nos impediram de reconhecer que a natureza também é ativa, e que nossos tratamentos desencadeiam em determinadas reações.

Finalmente, a expectativa de que o “desenvolvimento” levaria o planeta à prosperidade, e que maiores recursos levariam à melhora da saúde, resultou de um mito da teoria clássica do desenvolvimento. Durante a Guerra Fria, todos que questionavam o enfoque desenvolvimentista do Banco Mundial e do FMI eram taxados de comunistas. O mundo atual é dominado por um punhado de economias ricas e já desenvolvidas sobre nações pobres que não puderam fechar o buraco que as separa das ricas, inclusive naqueles casos em que a sua economia cresceu, mas esta não resultou em prosperidade para a maioria da população, nem em uma maior distribuição de recursos para atender as necessidades sociais.

Em um nível mais profundo, os processos sociais de pobreza e opressão, juntamente com as condições de comércio exterior, não são temas abordados pela ciência "real", a que investiga microrganismos e moléculas. Assim, se considera que um surto de cólera vai se reduzindo na medida em que atinge muitas pessoas. Mas a cólera, quando não está dentro das pessoas, vive no plâncton que fica perto das encostas. O plâncton se prolifera quando o mar esquenta e os detritos líquidos de esgoto e de fertilizantes agrícolas servem de alimento às algas. Os produtos do mercado mundial são transportados em navios de carga que usam a água do mar como lastro, que é descarregada antes de entrar no porto, juntamente com os seres vivos maritimos. Os pequenos crustáceos comem as algas, os peixes comem os crustáceos e a bacteria do coléra vai parar em quem consome o pescado. Por fim, se o sistema público de saúde de uma nação já foi destruído por ajustes estruturais econômicos, a explicaçao da epidemia inclui a Vibrio Cholarae e o Banco Mundial.

Portanto, podemos afirmar que o fracasso dos teóricos da saúde pública se deve tanto a ideias errôneas, como a uma visão limitada sobre o assunto. Mas isso requer outras explicações. Os médicos que se limitaram a levar em consideração os últimos 150 anos eram pessoas instruídas e muitos estudavam os clássicos. Eles sabiam que a história não havia começado na Europa do século XIX, mas por alguma razão consideraram que as épocas anteriores não eram importantes. O desenvolvimento rápido do capitalismo fomentou a noção de que nossa época teria um caráter especial, inovador, um conceito que Henry Ford imortalizou com sua frase: “a história é uma grande farsa”. Eles compartilham o pragmatismo norte-americano (e também europeu, mesmo que numa variável menos extrema), que se caracteriza por sua impaciência com a teoria (neste caso, a da evolução e a da ecologia). Em razão disso, não viram as características que as plantas e as pessoas têm em comum, por serem os humanos uma espécie entre as demais. Os ministérios de saúde não dialogam com os ministérios de agricultura. As escolas agrícolas são rurais e finaciadas pelo Estado, seus estudantes provém de comunidades agrícolas; já as faculdades de medicina são urbanas e de caráter privado, seus estudantes são oriundos da classe média urbana. Não conversam entre si e nem lêem as mesmas revistas especializadas. O pragmatismo de ambos os grupo se vê reforçado pelo sentido de urgência, pelo imperativo de satisfazer uma necessidade humana imediata.

O desenvolvimento de uma epidemiologia coerente cai por terra com uma série de falsas dicotomias que permeiam o pensamento dessas duas comunidades: as contradições que opõe o biológico ao social, o físico ao psicológico, o azar ao determinismo, a hereditariedade ao meio ambiente, o infeccioso ao crônico, e a outros falsos antagonismos que discutiremos em outros capítulos.

Há outra explicação que nos ajudará a entender as barreiras intelectuais que levaram à surpresa epidemiológica. A visão limitada e o pragmatismo são modos de pensamento característicos que reinam no capitalismo, enquanto o individualismo do sujeito econômico é um modelo que leva a abordar todos os fenômenos de maneira isolada e autônoma. A isto se soma uma indústria do conhecimento que transforma as ideias científicas em mercadorias destinadas ao mercado, principalmente as soluções mágicas que a indústria farmacêutica vende às pessoas. A história de longo prazo da experiência capitalista fomenta aquelas ideias que são reforçadas pela estrutura das organizações e a economia da indústria de conhecimento, e contribuem na criação de padrões de ignorância, nos mais diferentes campos, tornando inevitável o surgimento de certas surpresas.

Texto traduzido do espanhol: Ciencia y marxismo: un abordaje dialéctico de la salud pública. Traduzido de Biology Under the Influence. Dialectical Essays on Ecology, Agriculture, and Health, Nueva York, Monthly Review Press, 2007.




Comentários

Deixar Comentário


Destacados del día

Últimas noticias