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Close: desconstruindo as “caixas” pré-determinadas do amor com o "Eros alado” de Kollontai

Gabriel Fardin

Close: desconstruindo as “caixas” pré-determinadas do amor com o "Eros alado” de Kollontai

Gabriel Fardin

Em um mundo onde as novas gerações estão desconstruindo sistematicamente os papéis de gênero, reconstruindo suas identidades e sexualidade, o filme Close se destaca por sua sensibilidade ao tratar de relações que não se enquadram nas “caixas” sociais que impõe formas pré-determinadas para expressar o amor e o afeto.

Close, nome original do filme dirigido pelo diretor belga Lukas Dhont, pode ser traduzido para o português como “junto”, “perto”, “próximo”, “íntimo”, “unido”. A simplicidade do título é eficiente em expressar sua temática e revelar, como mostraremos nesta crítica, também seu argumento mais profundo.

Este drama cinematográfico vem comovendo plateias por sua sensibilidade e por sua narrativa emocionalmente impiedosa, que utiliza de recursos intensos para partir o coração de seu público. A temática das consequências da LGBTfobia é o tema mais amplo do filme, acompanhando a relação carinhosa entre Leo e Rémi. Ambos garotos de 13 anos, que construíram uma amizade de intimidade, companheirismo e afeto. Quando entram para o colégio o questionamento pré-conceituoso da natureza desta relação por parte dos colegas torna-se um primeiro ponto de afastamento entre eles. As “brincadeiras” e agressões homofóbicas que se seguem termina por afastá-los por completo, levando-os a um profundo sofrimento.

Buscaremos não dar spoiler sobre os eventos mais marcantes do filme, ainda que não sejam exatamente surpreendentes em si mesmos. O roteiro não possui nenhuma grande reviravolta, nenhum plot twist. Ao contrário. O mérito do filme não está aí. A história da trama é simples e se desenvolve linearmente, com apenas um ou outro salto, mas que pode ser facilmente antecipado pelo espectador, na medida em que as cenas apenas revelam aquilo que já imaginamos quando tememos pelo pior. Tão pouco se trata de uma história super criativa, no sentido da sua premissa básica e como os eventos são explorados no desenrolar dos conflitos.

Entretanto, a excelente atuação dos artistas junto a capacidade da câmera de agarrar pacientemente o tempo das emoções dos personagens, é mais do que o suficiente para nos envolver e nos fazer chorar junto (e muito, no meu caso). Os eventos da trama carregam enorme peso emocional, mas o que nos toca é a verdade com que nos é transmitido.

A denúncia do papel destrutivo da homofobia é explícito, pois todos os conflitos partem daí. Apesar do filme, em sua primeira camada, manter a relação entre os garotos no campo da amizade, também é comum a interpretação entre os espectadores de que Leo e Rémi experimentaram o prelúdio de uma relação homoafetiva, entre jovens ainda se descobrindo do ponto de vista sexual. Talvez esta seja a interpretação generalizada no âmbito do senso comum, sendo também suficientemente forte para apreciar o filme, se sensibilizar e transmitir sua mensagem.

Mas também é possível interpretar que de fato tratava-se de uma amizade muito afetuosa, como propõe a sinopse e o roteiro, resguardando e ressignificando sua mensagem desde outra perspectiva. Ainda há quem atribua a um ou a outro uma orientação homossexual, dando uma conotação “assimétrica” para relação de ambos, sem deixa-la menos verdadeira em seu conteúdo, e neste caso também a mensagem não perde sua força.

Porém, justamente porque independente da interpretação que se faça, a mensagem segue forte, na opinião deste que lhes escreve, a beleza e a potência sensível deste filme está justamente na sutil ambiguidade construída na relação de amizade entre Leo e Rémi, pois a mensagem do filme possui uma segunda camada, que pode ser percebida logo nos primeiros minutos.

Se na camada mais explícita do roteiro temos a crítica às consequências impiedosas das formas mais banais da homofobia, o lugar incomum da relação de Leo e Rémi apresenta uma camada mais profunda e mais sensível de seu argumento. Trata-se também de uma forte e sensível crítica às “caixas” e formas socialmente pré-estabelecidas com que expressamos o amor, regidas por normas cis heteronormativas onde o afeto esta restringido pelos limites da moralidade sexual do patriarcado.

Em suma, o filme ganha toda sua força quando percebemos que, na realidade, não importa a orientação sexual de Leo e Rémi e nem mesmo que tipo de relação estavam construindo (se é que em algum momento ela viria a se enquadrar em um tipo pré-determinado de relação). Em todos os cenários imagináveis na complexa fluidez da sexualidade, determinada pelas experiências interpessoais, pelas relações sociais, pelos sentimentos humanos, pela atração física e pelo afeto, a história do filme mantém sua comoção avassaladora inalterada.

A obra se torna inclusive, particularmente bela, e revela sua originalidade quando percebemos que a desconstrução do preconceito e dos lugares comuns do afeto e do amor foram conscientemente conduzidas pelo roteiro e pelos personagens. Assim como desconstrói os lugares comuns na hierarquia das relações, transmitindo também que, a amizade, e os sentimentos que podem envolvê-la, são tão fortes quanto às relações onde se prepondera a interação sexual, assim como sua importância em nossas vidas, podendo igualmente nos mover e nos ferir fortemente.

Ao final, a complexa análise combinatória que nos é permitido imaginar a respeito dos sentimentos e o tipo de relação que estabeleciam, dentro das sutis ambiguidades construídas pelo roteiro, o faz transmitir mensagens de múltiplas cores, igualmente potentes e lindas, para uma única relação, entre Leo e Rémi, e pode ser traduzida em uma única palavra que intitula o filme Close (íntimo).

A ambiguidade enquanto desconstrução dos lugares comuns do amor em Close

Close é um desses filmes que faz questão de convidar o espectador a interpretar. As falas nunca explicam as motivações, pensamentos e sentimentos dos personagens. Em Close, as ações, atitudes, emoções, gestos são os comunicadores em um sensível exercício de empatia, que busca compreender o que se passa dentro de seus protagonistas. Esta decisão artística é explícita nas longas cenas de closes (aqui existe também uma “rima estética” com o título do filme) em que assistimos o desencadear das emoções dos personagens.

Cada emoção nos é oferecida por completo em seu processo na atuação dos atores. Por outro lado, as ações e reações dos personagens também contradizem inúmeras vezes suas falas, sugerindo uma contradição e uma sistemática negação dos sentimentos [1], nos impelindo ainda mais a realizar o exercício da empatia e da interpretação no convite de desvendar dentro de nós mesmos os sentimentos e pensamentos dos personagens.

Esta escolha proposital do filme é parte fundamental da construção consciente de sutis ambiguidades. Ao não nos dar literalmente os pensamentos e sentimentos dos personagens, o roteiro interpela o senso comum dos espectadores, assim como nossas experiências de vida, nossa sensibilidade e nossos conhecimentos de mundo para interpretar o filme, questionando os lugares comuns do afeto.

Por outro lado, elegendo jovens na fase da vida onde prepondera a "ingenuidade" e o descobrimento de suas identidades e sexualidades para protagonizar a trama, agregam-se mais elementos de ambiguidade. A incapacidade de verbalizar os sentimentos, ou até mesmo de interpretá-los em si mesmos é uma das grandes tônicas dos conflitos narrativos. Afirmar com certeza algo sobre a relação de Leo e Rémi, enquanto acompanhamos o descobrimento destes, seria negar o próprio processo de descobrimento e construção da relação, levando a enquadrá-la em uma pré-determinação que só existe socialmente.

Desta forma, o filme nos entrega, antes de mais nada, a desconstrução dos papéis de gênero da sociedade patriarcal. Uma vez que não é possível determinar com certeza a natureza de todos os sentimentos que afloram entre os dois, a primeira grande mensagem e crítica do filme está no julgamento social das relações afetivas, especialmente quando contradizem os papéis de gênero e a orientação sexual. Neste caso, entre dois meninos, onde o afeto, o toque, a proximidade e o carinho, são tabus que remetem automaticamente, pelo senso comum e pelo preconceito, a uma relação homosexual.

Esta premissa básica do filme se expande tocando inúmeros outros questionamentos, que são permitidos pelas ambiguidades propositalmente localizadas para questionar o senso comum do espectador, que mesmo sem má intenção, está carregada de preconceitos. Em determinado momento do filme, Leo e Rémi são questionados por colegas de escola se seriam um casal, devido às interações de afeto e toque. Um deles responde que são amigos, visivelmente incomodado pelo questionamento e usa como exemplo comparativo a amizade entre as amigas com quem dialogam. Essas que por sua vez o retruca chamando atenção para o excesso de intimidade e proximidade entre eles. Enquanto isto, Rémi permanece calado, aparentemente mais desconcertado pelo incômodo do amigo do que pelo questionamento das colegas.

Este breve diálogo conjugado com as expressões dos personagens já nos remete a inúmeros questionamentos sobre os papéis de gênero e os locais comuns das relações afetivas e amorosas. Se por um lado questiona a associação do carinho e do afeto entre homens a homossexualidade, enquanto uma crítica ao papel de genero masculino, por outro também questiona os níveis socialmente aceitaveis de intimidade e proximidade no conjunto das realções entre mulheres, entre homens, entre homens e mulheres e, por que não, entre todas as demais multiplicidades de identidades de gênero, de forma a estabelecer um limite de interação afetiva para cada tipo de relação e orientação sexual, como por exemplo, o tabu do toque afetivo e atração sexual entre amigos.

Porém esta cena também deixa uma ambiguidade na reação de Rémi. Se por um lado Leo está preocupado com a aceitação e a interpretação social que os colegas fazem de sua relação, por outro Rémi se frustra com o constrangimento do amigo. Léo passa a negar a relação que os dois construíram, buscando enquadrá-la nas normas sociais das interações permitidas entre as amizades, enquanto Rémi aparenta não se importar com o julgamento alheio. Se por um lado Léo parece em negação para com seus próprios sentimentos em relação a Rémi, um lugar comum quando homens começam experimentar relações homoafetivas, por outro Rémi parece não ter problemas em ser colocado neste lugar.

Este ponto de clivagem no filme abre margens para inúmeras interpretações sobre os sentimentos dos personagens. Rémi pode apenas não se importar com os comentários pois está seguro de que está construindo uma amizade, ou então não tem receio de assumir uma relação homoafetiva. Por outro lado, Léo pode estar em negação de si mesmo, com medo do julgamento, percebendo que existe em si sentimentos que estão para além do que socialmente é esperado de uma amizade, ou então, sente a necessidade socialmente imposta de afirmar sua orientação sexual.

Outros recursos inteligentes do roteiro reforçam essa ambiguidade, buscando complexificar o sentido das interações entre Leo e Rémi, tirando de lugares comuns a constituição do afeto. Leo, aquele que nega a relação carinhosa entre ambos e sente necessidade de adotar uma postura heterossexual, é justamente aquele que era mais carinhoso na relação entre os dois e tinha maior liberdade de expressar seu afeto quando dormiam juntos e em momentos de companheirismo. Por outro lado, Leo também está inserido em uma relação familiar de afeto e intimidade para com o irmão, onde se reproduzem interações que ocorrem entre eles na relação com Rémi. Mas é justamente Rémi, o mais reservado entre os dois, quem sofre mais no imediato do afastamento.

Embaralhar as motivações dos comportamentos dos personagens, mais do que buscar criar um mistério em torno de ambiguidades, faz parte da inteligência do roteiro em desconstruir a linearidade com que as relações afetivas são construídas e experimentadas. A todo momento estamos reproduzindo interações que nos fazem bem e nos fazem sentido para expressar nossos sentimentos, que aprendemos dentro das relações sociais e em diferentes tipos de relações interpessoais.

Por isso, se dermos um passo atrás na crítica mais explícita dos papéis de gêneros, perceberemos que a o próprio questionamento sobre o tipo de relação que Léo e Remi estabeleciam já é em si um enquadramento social, onde os limites e contornos das relações afetivas já estão categorizadas. Ao pararem para tentar justificar a relação que haviam construído nos moldes socialmente pré-estabelecidos, os força também a enquadrá-la, gerando mais confusão sobre si mesmos e em seus sentimentos do que ajudando a desenvolver os próximos passos do que poderia ser, independente do que fosse.

O toque cumpre também um papel contraditório no construir da narrativa. Enquanto nos momentos de construção da relação os toques eram leves e naturais, como uma expressão da proximidade, intimidade e afeto entre os dois, torna-se conflituoso na medida em que se apresenta o dilema do enquadramento social. Aqui temos as ações transmitindo de forma literal o conflito do toque e da intimidade em uma relação que precisa se dilacerar para caber nas “caixas” socialmente estabelecidas do afeto.

Ao final, todas essas aparentes contradições formam ambiguidades perante ao senso comum, sendo esta a grande força e potência mais profunda deste filme. A ambiguidade nas nossas interpretações dos personagens só aparece diante de nós mesmos, na medida em que buscamos enquadrar a relação única construída pelos protagonistas em uma alguma “caixa” das relações afetivas e da sexualidade. Sendo que na realidade, para eles, tal ambiguidade não existia antes de terem que dar qualquer explicação ou justificativa sobre seus comportamentos.

A interação afetiva entre eles seguia a coerência e a unidade do que sentiam um pelo outro, e as formas de expressar que os faziam bem. Entre eles, na relação que construíram, não existia contradição entre amizade, atração, carinho e afeto. Não existia ambiguidade e sim unidade. Era apenas a expressão espontânea do que sentiam. Expressões que o filme Close é capaz de transmitir em tela maravilhosamente bem, de forma sensível e comovente, repleto de recursos estéticos e narrativos, como a alegoria dos lindos campos floridos onde podiam brincar, se divertir e interagir livremente, por onde foi possível florescer o amor entre os dois.

Abrindo caminhos para o amor com asas de Kollontai

Alexandra Kollontai, líder revolucionária russa e teórica do marxismo, membro do partido bolchevique e militante ativa durante a Revolução Russa de 1917, escreveu uma carta a juventude trabalhadora pós revolução, sobre o lugar do amor no socialismo, intitulada Abram asas para o Eros alado. Eros, deus do amor na mitologia grega, é utilizado pela marxista como uma metáfora discursiva em sua carta, para referenciar-se às relações afetivas e os sentimentos amorosos.

Nesta carta Kollontai resgata a trajetória das relações amorosas, explicando que em cada momento histórico da humanidade as relações afetivas, sexuais e o lugar do sentimento do amor esteve determinado e enclausurado em algum invólucro social, com finalidades e papéis que atendiam aos interesses econômicos e políticos, para perpetuação e reprodução de determinado modelo econômico social [2].

Ao que tange os temas abordados pelo filme Close, a revolucionária russa é perspicaz em notar que não somente as relações de cunho sexual estavam restringidas pelos papéis de gênero correlatos a cada momento histórico, assim como o papel do sexo, do controle reprodutivo e do corpo da mulher a partir do invento do patriarcado, mas também as amizades e relações afetivas fora do matrimônio [3].

As determinações sociais que diziam quais relações seriam consideradas um “casal”, qual o lugar das amizades, onde cabe a interação sexual, onde pode se manifestar amor e afeto e onde não, estão em constante transformação ao longo da história da humanidade e nas diferentes sociedades. E ao contrário do que estamos acostumados a imaginar todos estes elementos que compõem a interação sexual e afetiva dos indivíduos nem sempre estiveram conectados da forma que imaginamos.

Existiram lugares históricos onde era funcional para determinadas sociedades que o sexo não estievesse conectado ao amor, onde as amizades masculinas eram invólucros do afeto amoroso, sendo hierárquicas em relação ao matrimônio [4]. A partir do advento do patriarcado, todas estas relações estavam marcadas pela constante moralidade sexual, que enquadra o papel de subordinação feminina como operação de controle da reprodutividade, mas também, em contrapartida, atribuíam os papéis de gênero.

Independente do formato particular que as relações afetivas tomaram na história, a constância da subordinação dos sentimentos e das interações interpessoais às necessidades econômicas e políticas sempre esteve presente, formando papéis de gênero e “caixas” de relações amorosas, sexuais e afetivas, que eram socialmente impostas. O enquadramento das relações interpessoais nessas “caixas” que limitavam a expressão do sentimento, da atração mútua e da interação afetiva era a forma de controle ideológico da sociabilidade para melhor atender os interesses de reprodução de determinada forma de vida social.

Na sociedade burguesa, o capitalismo, nos deparamos com uma forma específica de patriarcado que engrandece o matrimônio, em detrimento das amizades, a fim de restringir a sexualidade feminina e controlar sua capacidade reprodutiva para perpetuação da família mononuclear que permite a hereditariedade da herança e portanto a acumulação de riquezas. Nesta forma específica de relações o laço amoroso só pode ser “verdadeiro” dentro do matrimoniol, as relações sexuais fora deste são condenadas (hipocritamente especialmente para as mulheres) e as amizades são consideradas inferiores, não cabendo a essas a interação sexual, amor, afeto e companheirismo [5].

Para Kollontai o amor ganharia asas com a chegada do “Eros alado”, quando as condições materiais da revolução socialista permitisse a destruição das premissas objetivas e econômicas do patriarcado e sua moralidade, dando espaço para novas relações afetivas, amorosas e sexuais. Kollontai faz questão de elevar a importância das amizades e a possibilidade do amor em relações não matrimoniais, assim como a possibilidade de amar mais de uma pessoa, em relações não monogâmicas, e a reconexão entre afeto e a atração sexual. Para Kollontai o amor alado estaria repleto de sensibilidade mútua, respeito, companheirismo, amizade e camaradagem, livre das amarras dos papéis de gênero [6].

Porém, a partir dos olhos de Kollontai, podemos ir mais fundo nas questões propostas pelo filme Close. Se para Kollontai o amor é essencialmente um elo que conecta as pessoas, uma vez despido das determinações da necessidade de reprodução econômica capitalista, adentrando no terreno da liberdade comunista, passando pela transição do socialismo, segundo a própria autora, são inimagináveis as formas que as relações afetivas podem tomar.

Em Close, o cenário rupestre, onde Leo e Rémi constroem sua relação amorosa, não é um detalhe. Em meio aos campos floridos, onde podiam correr, brincar, rir, se divertir, interagir sem julgamento social, sem precisarem se preocupar em se espelhar em relações socialmente pré-determinadas, ambos estavam livres para dar as formas e contornos que os agradassem e fizessem bem para ambos a partir da interação sentimental e física entre eles. Não estavam preocupados em se enquadrar, nem dar nome ao que construíram, e muito menos a qual “caixa” deveriam se limitar, construindo uma relação única que tem seu sentido particular somente entre os dois.

Se para Kollontai o amor é uma expressão social psico-emocional, que se manifesta nas relações entre indivíduos, a complexidade e singularidade que cada relação pode tomar, livres das amarras morais, guiadas pelos sentimentos e interações particulares de cada relação, são múltiplas [7]. Cada relação possui seu componente social histórico, mas também particular e único na medida em que é expressão de como os indivíduos as internalizam, experimentam e interagem com seus sentimentos e entre si [8].

Esta é uma verdade também para atualidade, mesmo na sociedade burguesa, ainda que as formas assumidas nas relações tendem a se encaixar nas “caixas” pré-determinadas das relações, e muitos dos comportamentos reproduzem lógicas morais amplamente disseminadas, por outro lado é inevitável que na complexidade dos indivíduos e na experimentação contraditória com os valores socialmente disseminados, se construa relações únicas e, também, até mesmo, transgressoras da lógica vigente. Porém, o moralismo patriarcal e burguês, busca a todo custo enquadrar tais relações ao comportamento socialmente pré-determinado, fazendo com que muitas vezes se crie uma dicotomia entre a intimidade no âmbito privado e as manifestações públicas.

Na sociedade burguesa, as relações não heteresexuais, assim como as relações que não respeitam as padronizações vigentes, foram constantemente empurradas para a censura do ambiente privado, condenadas quando manifestadas publicamente. Dando as manifestações públicas de amor, em suas formas não padronizadas, um caráter subversivo que afronta os pré-conceitos, os limites, os tabus e as formas pré-determinadas de relação entre os distintos gêneros.

Portanto, em uma sociedade socialista, se por uma lado, o conteúdo social do afeto, a liberdade sexual, a igualdade entre gêneros, o respeito e o companheirismo, estariam amplamente reproduzidos nas relações afetivas, por outro lado toda relação também carregaria em si a singularidades de formas particulares que poderiam se formar livremente entre os indivíduos. Close, para além de suas ambições, nos põe para refletir e sentir o conflito entre as possibilidades humanas de experimentar o amor e os limites das “caixas” de uma sociedade castradora, opressora e moralista, tornando-o um filme potente, belo e comovente.

Se por um lado o trágico drama de Close nos comove com a dor da impossibilidade da fruição livre do amor em todas as suas formas e singularidades, por outro, não deixa de nos presentear com a leve e linda imagem das possibilidades aprisionadas que devem ser libertadas pelo “amor com asas”. Afinal, a liberdade para experimentarmos e manifestarmos plenamente o amor e o afeto, merece uma revolução mundial contra o capitalismo.

A carta de Alexandra Kollontai, Abram caminho para o Eros alado, está disponível no livro Mulher, Revolução e Socialismo, o mais novo lançamento da editora Iskra. Você pode adquirir o livro clicando neste link.

Texto publicado originalmente na data de 11 de abril de 2023

Bibliografia

KOLLONTAI, A. Abram caminho para o Eros alado, In Mulheres, Revolução e Socialismo. São Paulo Editora Iskra. 2023


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FOOTNOTES

[1A fim de exemplo, em determinado momento o pai de Remi é questionado se está tudo bem com ele. Sua resposta automática de que estaria tudo bem é negada pelo choro incontrolável que vem a seguir. Inúmeros outros exemplos podem ser explorados, como as cenas de violência física que negam os sentimentos de afeto reprimido.

[2“A Humanidade começou, há praticamente tempos imemoriais de nossa história, a estabelecer regras que regulavam não só para as relações sexuais, mas também para o amor”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 301)

[3“As emoções psíquicas que respondiam melhor a esta finalidade eram as proporcionadas pelo amor-amizade e não pelo amor sexual. Durante este período, os interesses do coletivo exigiam da humanidade o crescimento e acúmulo de vínculos, não entre os casais unidos por casamento, mas sim entre indivíduos de uma mesma tribo, entre os organizadores e defensores da tribo e do Estado. (evidentemente, aqui se trata dos homens; a amizade entre mulheres não tinha importância nesse tempo e a mulher não tinha um papel para desempenhar na vida social)”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 302)

[4“A amizade, sentimento que supunha “a fidelidade ao amigo até a morte”, foi considerada no mundo antigo com uma virtude cívica. Todo o contrário se passava com o amor, no sentido contemporâneo desta palavra, que não tinha nenhum papel na sociedade e nem sequer captava a atenção dos poetas ou dos dramaturgos da época”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 302)

[5“Na sociedade burguesa, construída sobre a lógica do individualismo e da competição desenfreada, não há mais lugar para a amizade, considerada como fator moral. A sociedade capitalista considera a amizade uma manifestação de “sentimentalismo”; portanto, como uma debilidade completamente inútil do espírito e até nociva para a realização das tarefas burguesas de classe, a amizade se converte em motivo de chacota”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 303)

[6“Obviamente, o “Eros alado” também se baseia, como o “Eros sem asas”, na atração física dos sexos, mas a diferença é que quem experimenta sentimentos de amor adquire aquelas qualidades interiores necessárias aos construtores de uma nova cultura: sensibilidade, capacidade de resposta e desejo de ajudar aos outros. (...) Entre os membros da nova sociedade, "laços de simpatia" terão se desenvolvido e fortalecido, "a capacidade de amar" será muito maior e o amor-camaradagem se tornará um "animador", função que originalmente estava reservada na sociedade burguesa à competição e ao egoísmo”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 311)

[7“O amor-amizade [no capitalismo] esta em contradição com o amor-paixão. Em um caso prevalece a harmonia intelectual; no outro, a “harmonia dos corpos”. (...) A multiplicidade de sentimentos amorosos cria, sob a dominação da ideologia e dos costumes burgueses capitalistas, uma série de penosos e insolúveis dramas mentais. (...) Uma mulher ama um homem porque suas ideias, pensamentos, seus desejos e suas aspirações combinam com os seus, e ao mesmo tempo pode se sentir atraída fisicamente por outra pessoa. Um homem experimenta em relação a uma mulher um sentimento de simpatia e ternura protetora, enquanto em outra encontra apoio e compreensão das melhores aspirações do seu “eu”. A qual destas duas mulheres deverá entregar a plenitude do Eros? Por que seu ser interior deveria ser dilacerado e paralisado se só pode atingir sua plenitude com a presença desses dois relacionamentos? pg 309 (...) Os matizes e sentimentos que predominam no “Eros alado” são indiferentes ao proletariado, sejam eles os delicados tons de atitude amorosa, as cores incendiadas da paixão ou a comunidade e a harmonia do espírito”. (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 31)

[8“Por outro lado, a atração física entre ambos os sexos se tornou mais complexa no decorrer dos séculos da vida social da humanidade e das mudanças culturais, com toda uma gama de experiências emocionais e intelectuais. Em sua forma atual, o amor é um estado psíquico muito complexo, há muito tempo retirado da sua primeira fonte - o instinto biológico da reprodução - e frequentemente se encontra em contradição a ele. O amor é um conglomerado, uma combinação complexa de amizade, paixão, ternura maternal, piedade, carinho, harmonia de espírito, admiração, costume e muitos outros matizes de sentimentos e experiências. Torna-se difícil, dada semelhante complexidade, estabelecer um vínculo direto entre o impulso natural do “Eros sem asas” (atração física do sexo) e o “Eros alado” (atração física misturada com o calor emocional). (KOLLONTAI, A. 1923, pg. 308)
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