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Da Fome ao Sonho: Arte e política no Brasil da década de 1960 (Parte 1)

Afonso Machado

Da Fome ao Sonho: Arte e política no Brasil da década de 1960 (Parte 1)

Afonso Machado

Demora, às vezes demora até demais, mas amanhece nos porões onde até ontem ouviam-se gritos de dor e o cair de lágrimas elétricas. Em 1985 a ditadura militar, iniciada no ano de 1964, foi finalmente derrotada. Uma explosão de liberdade tomou conta do Brasil. Mas se o canto de Cazuza, então vocalista da banda de rock Barão Vermelho, anunciava que o dia nasceu feliz, ainda havia muita tristeza no ar e várias décadas de luta pela frente. Em meio a trocas de máscaras nos bailes políticos animados por alianças da esquerda com partidos burgueses, a fome segue nos bairros proletários junto aos presídios abarrotados e aos conflitos sociais que se estendem até os sertões.

Foi esta palavra, aliás, que deu título ao clássico de Euclides da Cunha publicado em 1902, obra literária que sempre nos faz lembrar que a luta dos oprimidos e a barbárie promovida pelo Estado não cessaram no país. Neste azedume histórico, as experiências culturais contestadoras do passado recente, em especial aquelas que atuaram como oposição ao regime militar, formam bagagem obrigatória, participam da educação histórica na medida em que parte significativa da população brasileira não faz a menor ideia do que rolou durante o triste período da ditadura.

Olhando nos olhos do país descobrimos que não só não amanheceu como as coisas retrocederam. Se no ano de 2021 fomos todos agredidos pela extrema direita reivindicando o AI-5, no início do ano passado presenciamos uma tentativa de golpe de Estado. Neste teatro político de horrores, o golpista e o farsante são o mesmo personagem. Certamente que o autor de O 18 Brumário não perderia a chance de denunciar mais uma farsa histórica: se Marx estivesse por aí, ele diria que o dia 8 de Janeiro de 2023 é o traje farsesco do dia 31 de março de 1964. Entretanto, não se pode subestimar a influência política dos impostores da história: a extrema direita, e suas nefastas expressões políticas que atingem vários países, segue atuando inclusive no campo cultural, reivindicando seus símbolos e personagens históricos. E a esquerda? No que refere-se à esquerda hegemônica, tudo indica que o reformismo é uma de suas marcas inclusive na cultura. A vida política e artística da esquerda reformista contenta-se em importar as formas e os conteúdos da social-democracia europeia, do populismo latino americano, do Partido Democrata americano, além é claro das estéticas manjadas do varejão cultural. Não espanta que nesta meleca toda ocorra de maneira irresponsável a dissociação entre gênero e classe tal como comprovam certas expressões do audiovisual em que protagonistas negros , por exemplo, aparecem “ bem sucedidos”, “ empreendedores “, “ integrados “ no sistema, ocultando assim que o proletariado brasileiro, composto em sua maioria por mulheres e homens negros, vivem em condições precárias. Em contrapartida, quem fala em revolução e pensa a cultura à luz deste conceito, consegue encarar de frente as exigências da história.

O processo histórico brasileiro é acidentado na medida em que a própria história é descontínua. A esquerda brasileira reformista de outrora acreditava que os seus pezinhos caminhavam sobre os imaginários degraus do desenvolvimento econômico. De rostinho colado com a burguesia brasileira e numa peleja nada estratégica contra o capital externo, muitos acreditaram na tese do subdesenvolvimento como a parte inferior de uma escala evolutiva que leva ao desenvolvimento. Custou, e tudo indica que ainda custa entender, que a economia brasileira é um dos elos da economia mundial apoiada numa divisão internacional do trabalho (Trotski). Pode ter BRICS, pode ocorrer uma remodelação das áreas de influência de certas potências em detrimento de outras. No fim das contas, a miséria social e a exploração do trabalho persistem como componentes indissociáveis das estruturas geopolíticas do capitalismo. O que não deixa de existir na época do imperialismo são países capitalistas atrasados e países capitalistas avançados, ponto. Ponto final? Certamente que não: a classe trabalhadora é a única força internacional capaz de dar um rumo verdadeiramente humano através do socialismo. Ah, mas os reformistas perguntam indignados: “ quem é doido hoje em dia de querer arranjar briga com o capitalismo?! “

Sem medo de ser anticapitalista, a esquerda revolucionária se debruça sobre a produção cultural que expressa o recente e contraditório processo histórico brasileiro marcado pelo populismo, pelo desenvolvimentismo, pela ditadura militar e pelos dilemas políticos e sociais pós redemocratização. A exemplo do que o autor destas linhas fez recentemente no texto Malucas Correspondências Históricas: Contracultura, Revoluções do Terceiro Mundo e o Maio de 68, tentaremos abordar aqui em uma série de artigos a complexa herança cultural daquele período no Brasil. Dentre os personagens históricos presentes, elegemos como principal o cineasta Glauber Rocha, um artista polêmico que encarnou as inovações e contradições daquele momento histórico.

Brasil 68: arte e agitação revolucionária

Um casamento apocalíptico entre arte e revolução estendeu-se durante os 365 dias do ano de 1968 no Brasil (e como sabemos, em boa parte considerável do planeta). Não tratava-se no entanto de uma união estável, mas sujeita a uma série de polêmicas que entrecruzavam-se entre o Primeiro, Segundo e Terceiro Mundo. Glauber Rocha, presença ativa neste processo político/cultural, captou esta atmosfera histórica nas cenas iniciais do seu filme experimental Câncer (1972). Tais cenas mostram um debate entre artistas e intelectuais de esquerda ocorrido no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em agosto de 1968. Em áudio feito posteriormente, Glauber dá o seguinte depoimento:

(...) “ Era agosto no Rio de Janeiro em 1968. Uma agitação arretada, os estudantes na rua, os operários. Tinha operário ocupando fábrica em Minas Gerais e operário ocupando fábrica em São Paulo. Era a ditadura de Costa e Silva, um ditador depois de Castelo Branco, que havia derrubado o presidente Jango, que estava fazendo a Revolução em 1964. Quer dizer, Jango é quem estava fazendo a Revolução (...) Não era o Marechal Castelo Branco não; este era o Marechal reacionário. Então estava uma onda terrível, os estudantes na rua (...). Mas não era mesmo uma revolução, quer dizer, era agitação. Havia o Maio francês, tava uma onda arretada. Devo dizer o seguinte: que era revolução mas era só classe média radical, burguesia liberal reformista (...) e os operários. Tinha muito camponês morrendo de fome no nordeste e, aliás, continua morrendo até hoje; estão morrendo há mais de 400 anos. E os intelectuais tavam lá no Museu de Arte Moderna naquela noite (...) discutindo sobre a arte, a arte revolucionária; porque tava começando o tropicalismo, uma onda arretada “ (...)

Ao longo da fala do cineasta baiano, é possível observar no filme imagens dos rostos de personalidades emblemáticas da cultura brasileira nos anos 1960 presentes no auditório do MAM. O depoimento deste, que é o principal personagem do Cinema Novo, é no mínimo um registro elucidado dos conflitos, das contradições e limitações políticas imputadas ao artista e intelectual brasileiro de esquerda, durante a ditadura militar. Era um momento agudo . Em meio ao governo de Costa e Silva que sucedeu Castelo Branco, a esquerda procura em 1968 responder através dos movimentos estudantil e operário ao regime militar que em 1964 interromper as reformas de base e todo processo de agitação política esquerdista existentes durante o governo de João Goulart(1961-64). A esquerda nacionalista pagava o preço pela sua leitura equivocada da história do Brasil, pelos seus delírios feudais e por acreditar no conto do vigário em que a burguesia brasileira estaria ao lado do povo na luta contra o capital externo.

Pois é, em 1964 a burguesia bateu na porta do quartel e pediu ajuda. O imperialismo norte americano veio com tudo para socorrer industriais e latifundiários assustados com os movimentos sociais. A classe operária e o campesinato sofriam agora as consequências de uma direção política que pretendia não uma revolução socialista mas uma espécie de revolução nacional popular. Mas em 1968 o Brasil e o mundo ferviam como nunca na panela de pressão da luta de classes. Sob a conjuntura internacional marcada pela rebelião contra o status quo, como ilustra a referência de Glauber ao Maio de 68 em Paris, artistas e intelectuais enquanto componentes de uma “ classe média radical “ estão debatendo a arte revolucionária no MAM. Entretanto, nota-se mais uma vez a ineficiente atuação política da esquerda em torno do Partido Comunista Brasileiro, o que por sua vez se estende para as suas formulações culturais.

O fato é que o proletariado em 1968 não estava organizado para liderar as massas numa luta revolucionária contra a ditadura. Glauber, logo após referir-se aos camponeses nordestinos que morrem de fome, sugere a existência de um abismo entre o povo brasileiro e os debates acerca da arte revolucionária. Num momento em que o nacionalismo de esquerda digladiavam-se com o neo-antropofagismo da tropicália, a qual colocava em cena a releitura do pensamento de Oswald de Andrade e as formas internacionais de contracultura, chega-se a um tipo de efervescência cultural em que a criatividade e o debate estético não conseguiam superar as limitações de classe dos artistas contestadores ; tampouco estes conseguiriam contribuir para a organização de um movimento político revolucionário de massa capaz de frear o processo de intensificação da repressão política do governo militar, cujo ápice dar-se-ia a partir do Ato Institucional Número 05, em 13 de dezembro de 1968.

Tomando parte no furacão internacional, de proporções múltiplas e contraditórias, o processo histórico brasileiro parecia chegar a uma encruzilhada: a falência do pacto populista com o golpe militar de 1964, provocou convulsões quanto às estratégias políticas da esquerda brasileira. Como afirmou Raquel Gerber, populismo, nacionalismo e desenvolvimentismo eram conceituações políticas que entravam em uma crise estratégica que não apenas estendia-se, mas determinava a própria dimensão cultural. No campo da práxis artística , vislumbra-se um leque de tendências estéticas que procurava responder, sem sucesso, aos principais impasses políticos do país, antes e após o golpe. Ao longo dos anos 1960 o que está posto é a trajetória de uma crítica cultural que sofreria mutações políticas. As profundas diferenças entre a concepção artística militante do CPC(Centro Popular de Cultura) criado no Rio de Janeiro em 1961 e fechado pelos militares em 1964, e o tropicalismo, que eclodira em 1968, exprimem uma constância histórica nos debates estéticos de nossa modernidade: engajamento político de teor nacionalista e experimentalismo/liberdade formal de proveniência cosmopolita, acenam aparentemente para campos opostos.

O critério da arte revolucionária independente

Recuando para a Pré-História deste conflito, verifica-se na década de 1950 a arte nacionalista e popular versus as vanguardas concretistas. Para se compreender as visões distintas do que seria arte revolucionária no Brasil, existe de fato um complexo caminhar da história feito de muitos tropeções. Nesta calçada esburacada, tendências e práticas artísticas são revistas ou relidas à luz de novos contextos. Ao longo dos anos de 1950 o hiato entre o debate cultural de esquerda e as novas vanguardas do pós-guerra era evidente. Nos anos 1960 este abismo, cujas raízes históricas estão na década de 1920, tende a ser ora apaixonadamente defendido, ora questionado por uma nova geração de artistas que pretende reler para inovar e responder às grandes questões políticas/culturais colocadas na vida brasileira. O esforço de inserção da arte nos principais conflitos sociais do Brasil daquela época, está umbilicalmente ligado à uma revisão de ideias e valores presentes no período entreguerras. Assim o movimento do Cinema Novo no início da década coloca como plataforma estética o romance regionalista de 1930, e Oswald de Andrade é teoricamente recuperado pelos concretistas dos anos 1950 e posteriormente pelos tropicalistas de 1968.

A conceituação do que seja(e do que pode ser) a arte que se pretende revolucionária, encontra seu auge no governo Jango e seu impasse histórico durante o período da ditadura militar. O que acaba por ser revelado em filmes, peças de teatro, poemas, canções e nas mais variadas intervenções plásticas e performances são os esforços para a arte ser entendida como ação, participação. O agir sobre a realidade política assume a forma de estratégias artísticas conflituosas em sua natureza programática: a retórica de inspiração marxista, verificável em parte desta produção artística, se manifesta pela crença de que a obra de arte intervém na consciência política dos trabalhadores. Do outro lado, ainda que conflituosamente dentro da esquerda, a arte é encarada como gesto criador que pela suas qualidades libertárias manifesta-se como afirmação moderna, inovadora, das singularidades culturais do Brasil em oposição às formas de repressão da cultura dominante importadora dos valores imperialistas.

As correntes artísticas que exprimem em sua contradição a modernidade, e que não raramente entram em conflito com a cultura dominante, foram alvos tanto de regimes políticos autoritários quanto de restrições artísticas dentro da própria esquerda. Se as revoluções estéticas inauguradas pela Semana de Arte Moderna de 1922, frutificariam nos anos 1930 em um processo de politização de parte dos quadros do Modernismo brasileiro, o abismo entre modernidade artística e engajamento político não tardaria em mostrar sua face perante a orientação do Realismo Socialista estabelecida nos meios literários e artísticos da esquerda hegemônica entre as décadas de 1930 e principalmente de 1940. De maneira minoritária mas profundamente corajosa, a arte revolucionária independente, tal como foi definida e defendida por André Breton e Leon Trotski em 1938, foi difundida no Brasil através das intervenções críticas de poucos intelectuais atrevidos como Mário Pedrosa e Patrícia Galvão. Estes últimos, vanguardistas da cabeça aos pés, cerraram fileiras contra o jdanovismo durante a segunda metade dos anos de 1940. Quem deseja contribuir com a construção de um entendimento revolucionário das artes feitas no Brasil, estabelecendo inclusive rumos para a vida cultural da esquerda hoje, deve ter como base o conceito de arte revolucionária independente: sua perspectiva plural e libertária defende a pesquisa formal, alarga o horizonte, corrige erros na leitura política, permite o diálogo entre projetos estéticos distintos porém comprometidos com a emancipação humana. Propostas e manifestações artísticas que bastam a si mesmas, coexistem dentro de uma plataforma política revolucionária e atuam a partir de suas peculiaridades contra a cultura estabelecida.

Pode-se dizer que este projeto revolucionário independente, que sempre contou com poucas vozes mas que ao mesmo tempo responde ao movimento objetivo da história, é o termômetro que propicia a revisão crítica da arte brasileira, inclusive da década de 1960. Trechos do manifesto Por Uma Arte Revolucionária Independente(1938) redigido por Breton e Trotski ,tais como “ Toda licença em arte “ ou “ a independência da arte para a revolução “, realizam a correção de certas práticas artísticas sessentistas sem comprometer no entanto a importância cultural destas últimas. A defesa libertária do gesto criador implode fronteiras estéticas e nacionais, o que permite superar o nacionalismo populista, ao passo que a independência da arte refere-se a sua autonomia perante partidos políticos( poderíamos acrescentar que tal independência também se sustenta na oposição às estruturas comerciais da indústria cultural). Quer dizer, o projeto da arte revolucionária independente apresenta um critério crítico que permite extrair, dentro de uma perspectiva dialética, as contribuições tanto de uma peça teatral aos moldes nacionalistas do CPC quanto de uma canção tropicalista inerente ao esquema comercial de produção e distribuição.

O fato do conceito de arte revolucionária independente não ter sido a tônica dos debates estéticos da esquerda da década de 1960 no Brasil, exige que examinemos as contribuições e contradições da produção artística daquele período de acordo com um necessário balanço de suas conquistas e limitações. Segundo este esforço crítico, as heranças culturais daquele momento histórico passam a ser relidas e utilizadas pela atual geração de artistas, escritores e militantes de esquerda dispostos a contribuir com a elevação cultural das massas e combater a barbárie personificada na extrema direita. Nos próximos artigos desta série, abordaremos as polêmicas relações entre arte e política no Brasil ao longo daquela década.


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