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SEMANÁRIO

Da história dos vencidos à história dos vencedores

Luno P.

Da história dos vencidos à história dos vencedores

Luno P.

03 de Setembro. Exercício cênico proposto como trabalho final para a cadeira de Introdução à História do curso de História da UFRGS.

CENA 1

(Apresenta o cotidiano de João e Guilherme, intercalando em cenas de ambos entre acordar, lavar o rosto, escovar os dentes, pegar ônibus, as horas de trabalho, as aulas e dormir. Instrumental de Agora vou lhe matar do Grupo Muzenza de Capoeira)

João - Meu nome é João. Eu tenho 25 anos. Tenho cabelos negros, pele preta, um rosto completamente normal e mãos e joelhos que não aparentam a idade que tenho.

Guilherme - Sou Guilherme. Tenho 27 anos. Negro, óculos com mais de 6 graus.

João - Sei ler o suficiente. Escrever também, apesar de letra quase ilegível. Estou melhorando na caligrafia, todos os dias tento escrever um pouco. Depois de muitos anos, voltei para a escola para tentar um diploma de ensino médio, quem sabe entrar para a faculdade, mudar de vida.

Guilherme - Se eu tiro meus óculos, quase nem enxergo, por isso fico sempre tão perto do quadro branco a ponto de sujar minhas roupas com caneta vermelha.

João - Sou terceirizado.

Guilherme - Sou professor de História.

João - Trabalho na cozinha da faculdade federal. Lavo louça, carrego suprimentos, limpo o chão e tenho meus dedos queimados.

Guilherme - Dou aulas para os adolescentes e para os adultos que voltam a estudar em busca de uma nova vida.

João - São 10 horas diárias de pé. 1 hora de intervalo. Quando meu salário não atrasa, ele é parcelado. Já são 3 meses sem pagar o aluguel. Meu chefe diz que estamos passando por uma maré de crises e não há nada que possa ser feito. Ao menos estamos juntos. Ao menos não preciso comer no banheiro como faz o segurança ou a da limpeza. Aqui podemos comer a comida que fazemos. Pelo menos o que sobra no final.

Guilherme - Ao fim do dia, gosto de ser professor. Nos tempos da faculdade, quando me perguntavam o porque fazer isso comigo mesmo, sempre respondia que tinha o ímpeto de mudar o mundo. Não mudei muita coisa, nem mesmo meu cabelo, ou as roupas marcadas de tinta, apenas as armações do óculos, mas o ímpeto continua. Apesar disso, sinto que marquei vidas. E que todas elas me marcaram tão mais forte.

João - Queria ser engenheiro. Outros dias queria ser artista, daqueles que escrevem poemas que aparecem nos ônibus. Queria dedicar um livro pra minha mãe. Falar de meu pai. Trabalhar menos e viver melhor. Sinto que a vida me deve tudo, que sou apagado da história e que futuro já não existe mais. Mas o futuro não é gente, não tem mãos, nem rosto, nem cérebro. Cobrarei cada centavo eu mesmo.

Gulherme - Agora, tenho que lidar com o fato de que deixarei de ser professor tanto da matéria da qual eu me formei para ser professor. Virarei professor de projeto de vida e de outras matérias com nomes ridículos. Virarei coach. Instrutor descaracterizado daquilo que eu mesmo ensino. Querem silenciar o passado, censurar nossa subjetividade e nos roubar o futuro. Mas a história cobrará cada um deles. A quem estou enganando. A história nunca cobrou nada. Farei sempre o que posso, por mim, pelos meus alunos.

Cena 2 - INTERNO - SALA DE ROBERTO - DIA

João - Opa, chefe, posso falar você?

Roberto - Pode sim, senta ai...me diz, o que houve? Algum problema na cozinha?

João - Então, nenhum problema, eu quero mesmo é falar do meu salário, chefe. Tá atrasado de novo, e a última parcela do mês de julho ainda não foi paga. tô a 3 meses sem pagar direito o aluguel, já que todo o dinheiro vai pra pagar em empréstimos. Já não tá mais dando pra viver assim não.

Roberto - Meu filho, qual seu nome mesmo?

João - É João, seu Roberto. Trabalho na limpeza, mas faço de tudo nessa cozinha.

Roberto - Certo João...eu poderia tentar regularizar o pagamento de julho, mas a situação não está boa nas contas da empresa. Tá sendo preciso remanejar recursos, cortar aquilo que não é necessário. Estamos até tendo que demitir alguns da limpeza.

João - Eu entendo, mas é que nessa situação não dá mais para continuar, chefe. Meu salário é meu direito.

Roberto - João...estamos navegando por uma crise de merda na empresa, sem repasses da faculdade e mais do que nunca é preciso ver quem está ou não conosco. Se nessas aguas alguns param de remar, é melhor que sejam jogados em alto mar, para não fazer peso no barco. Não é só com você, são com todos que trabalham na empresa, estamos todos na mesma, mas eu sei que tem muitos que querem uma oportunidade de trabalho como essa, então não jogue fora.

Roberto - João, eu me solidarizo com você. Vamos combinar assim, regularizo seu salário de julho ainda essa semana, e na próxima vemos o salário desse mês.

João - Tá certo, chefe.

CENA 3 - EXTERNO - PROTESTO - DIA

(Cenas de um protesto. Alguns atores, velhos e mais jovens, caracterizados como professores e estudantes, lançam palavras de ordem contra a Reforma do Ensino Médio. Carregam cartazes onde se lê "O Novo Ensino Médio é precarização", "Queremos estudar nossa história para mudar nosso futuro", etc.)

CENA 4 - INTERNO - REFEITÓRIO - NOITE

João - Tô tão irritado que até essa comida perdeu o gosto

Seu Carlos - Você tem que se acalmar, cara, tem mais um dia inteiro pela frente

João - calma não me garante nada. Não garante aluguel, nem dinheiro para pagar as contas.

Nívea - Lá em casa também está ficando complicado, e quanto mais fodido estamos, pior...acredita que o gás acabou? Nem pra esquentar a comida das crianças dá mais.

João - O que mais me deixa com ódio é ouvir que estamos na mesma, mas todo ano é carro zero para aquele filho da puta do Roberto.

Nívea - É, cadê ele comendo aqui com a gente então? Tá é comendo do bom e do melhor em restaurante que a gente não entra nem como empregado

Seu Carlos - Mas a gente tem é que agradecer que temos emprego pelo menos...gente velha igual a mim não consegue emprego fácil

João - Emprego pra não ser pago é servidão Seu Carlos, não devemos nada para essa empresa de merda

Seu Carlos - João, Nívea, me escutem, vive muito para saber que Deus escreve certo por linhas tortas

Nívea - Mas tô achando que quem decide as linhas e quem manda na caneta não é Deus não hein, é seu Roberto que acha que a gente come vento pra sobreviver

João - Seu Carlos, agradeço a esperança, porque eu já não tenho mais. Vou voltar para limpar a cozinha pra sair o horário porque hoje ainda tenho aula...

CENA 4 - INTERNO - SALA DE AULA - NOITE

João - Boa noite, professor, desculpa o atraso.

Guilherme - Boa noite, João...mas turma, como estava falando, imaginemos uma pequena ilha onde hoje fica a ilha do Caribe. Naquela época, a ilha se chamava Ilha de São Domingos, uma colônia dominada pelos franceses com um forte sistema escravista onde 40 mil franceses escravizavam violentamente uma população de cerca de 450 mil escravos haitianos. E quando eu falo de violência eu to falando de uma brutalidade inimaginável com mortes e torturas, mas também de diárias humilhações como no caso de Jean-Baptiste de Caradeux que permitia que seus visitantes atirassem laranjas na cabeça de seus escravos.

Colega - E esses escravos não faziam nada, professor?

Guilherme - Ai é que tá, essa situação de brutalidade, junto do fator de uma proporção com maioria de escravos influenciados pelas ideias iluministas que incendiaram a Europa da Revolução Francesa, mas que nunca se estendiam até as colônias da França, e uma minoria de brancos franceses, produziu um dos episódios mais incríveis da história que hoje conhecemos como Revolução Haitiana. Alguém conhece algo sobre esse episódio turma?

João - Foi a revolução onde os negros se libertaram?

Guilherme - Isso mesmo, João! A Revolução Haitiana foi a única rebelião de escravos triunfante em toda história da humanidade, a única que conseguiu constituir um Estado nacional próprio, e a primeira que conquistou a independência no que é hoje a América Latina.

Colega - Mas porque se fala tão pouco sobre essa história?

Guilherme - Segundo um revolucionário francês chamado C.R.L. James, é porque a burguesia, as classes dominantes, querem criar a ideia, o mito de que os negros nunca resistiram a sua opressão, de foram dóceis em certa medida.

Colega - Pô, isso é pura balela, onde já se viu passar por tudo isso e não querem matar o seu violentador?

Guilherme - É, mas ai entra a perspectiva dos usos políticos da história…

João - Como assim professor?

Guilherme - Veja bem, a história não é apenas uma sucessão de acontecimentos, de fatos agrupados em linha para que façam sentido. A história é ideologia, também, e ao longo dos séculos as narrativas históricas também foram usadas para justificar a opressão e exploração de povos.

Colega - Ué, mas as coisas aconteceram, agora tem até câmera para gravar, então fica mais difícil de só inventarem as coisas do passado, não?

Guilherme - É aí que entra o erro. Toda narrativa histórica é um exercício de disputa pelo direto de dizer aquilo que é ou não verdade. Que é ou não fato. Que determina, ou não, as causas e as consequências. E nesse caso, quem tem o domínio na produção do conhecimento - no caso, a burguesia, os colonizadores, os senhores feudais - tem também o direito dizer o que é ou não fato. A história é antes de tudo a história dos vencedores, onde os vencidos são silenciados.

João - E onde entramos nisso, então? Nós somos os vencidos?

Guilherme - Essa é uma pergunta que não tenho como responder, João, mas espero que não.

CENA 5 - INTERNO - REFEITÓRIO - DIA

João - Colegas, não podemos mais aguentar essa situação!

Seu Carlos - João, não vai arrumar encrenca pra ti.

João - Não, Seu Carlos! Tá na hora de dizer um basta em alto e bom som. Estamos trabalhando, dando todo o dia o nosso suor pra não receber nem mesmo o nosso salário em troca, tudo pra aumentar a grana do desgraçado do Roberto e dessa empresa de merda e de sei lá quem mais.

Nívea - É isso mesmo, João!

Seu Carlos - Então o que tu sugere, João?

João - Eu não sei o que seria o melhor, mas acho que devemos parar tudo!

Seu Carlos - meu senhor...!

João - Vamos cruzar os braços! Se não somos nós quem organizamos tudo aqui, quem será? Quero ver o Robertinho ou qualquer um supervisor de camiseta engomada vir aqui lavar uma louça!

Nívea - Que tal a gente ir pra frente do refeitório conversar então com os estudantes, porque isso daqui também é deles

João - Isso! Vamos parar exigindo os nossos direitos e certamente eles vão nos apoiar!

CENA 6 - INTERNO - SALA DE ROBERTO - DIA

Roberto - Entra aí João

João - Seu roberto, se quiser pode me demitir, mas estamos lutando pelo justo

Roberto - Calma, João, estou aqui para te fazer uma proposta

Roberto - Não quer saber

João - Estou ouvindo

Roberto - Tu sabe que essa greve é uma pedra no sapato para mim mas também para vocês, né? O serviço já está todo paralisado e a UFRGS nos ameaçando de Rescisão de contrato. Sabe o que isso significa?

João - Não…

Roberto - Significa todos vocês no olho da rua. E o que era só um salário atrasado, virará desemprego.

João - Vocês não podem fazer isso!

Roberto - Eu concordo com você. Não é meu objetivo deixar isso acontecer. E por isso, to te chamando aqui.

João - Seu Roberto, desenrola logo essa proposta…

Roberto - É o seguinte, pagaremos todo o dinheiro que é seu por direto, e ainda te colocaríamos como supervisor da cozinha, mas para isso, em troca precisamos que você dê um fim na greve. O que acha?

João - Não Seu Roberto, isso seria traição com meus colegas.

Roberto - João, chega uma hora que é preciso pensar em você. Pensa com carinho nessa proposta.

João - Mas e os outros?

Roberto - Garanto que todos terão todos os direitos previstos quando forem demitidos

João - eu preciso pensar

Roberto - te dou até hoje no final da tarde, é pegar ou largar.

CENA 7 - EXTERNO - RUA EM FRENTE AO REFEITÓRIO - DIA

João - Colegas, nosso greve já virou pauta em toda a universidade e nos jornais locais. Todos sabem da situação dos terceirizados. Os alunos estão aqui também para nos apoiar. Entraremos para a história como aqueles que paralisaram pelos seus diretos, contra os atrasos e parcelamentos de salários.

João - Mas antes de qualquer coisa, quero falar algo aqui. Roberto me chamou para dar uma proposta de resolução para a greve. Sabem qual a proposta? Tentou me comprar para que acabasse com a greve. Mas se ele esperava que eu fosse trair a luta, ele está completamente enganado! É greve até a vitoria.

(Aplausos e gritos de apoio)

CENA 8

(Sequência de imagens mostrando o desenrolar da greve, o apoio da comunidade acadêmica e a construção coletiva dos trabalhadores terceirizados)

CENA 9 - INTERNO - SALA DE AULA - NOITE

Guilherme - A “haitianização” era um medo constante das elites escravistas no Império do Brasil, e não era por menos, já que no que diz respeito à proporção, apesar de sermos muito maiores do que a ilha de São Domingos em território e população, aqui também era um número muito maior de escravos em relação aos escravistas.

Colega - Bah, eles tinham medo que o Brasil virasse Haiti!

Guilherme - Totalmente, e os rumores de que negros haviam se transformados em heróis e posto fim à escravidão numa colônia nas Antilhas era sem sombra de dúvida a criação de mais um limite à dominação escravista.

Colega - E isso num país já marcado pela luta quilombola e pelas revoltas de escravos, não é?

Guilherme - Corretamente! E ao contrário do que nos contam, as mobilizações de escravizados em revoltas e fugas para quilombos abolicionistas, em conjunto com trabalhadores brancos também, foram parte fundamental da abolição.

Colega - Ouvir essas história coloca tudo sobre uma outra perspectiva! Não me surpreende que queiram tanto apagar ela.

João - Professor, não quero incomodar, mas posso fazer um comentário?

Guilherme - Claro, João!

João - Eu sinto que tem um pouco de preto haitiano em cada um de nós.

Guilherme - Como assim?

João - Por exemplo, acho que meu patrão me vê como um preto igual esses de São Domingos. Estamos fazendo uma greve na empresa que eu trabalho, e ele quis me usar para acabar com a greve, me prometendo até pagar meu salário atrasado e um cargo de supervisor da cozinha.

Guilherme - E você aceitou?

João - Confesso que fiquei tentado, mas nenhum miséria que ele poderia propor apaga o prazer de ver ele de joelhos. A sensação de lutar pelo o que é nosso é algo que nunca senti.

Guilherme - E é bom, João?

João - É incrível! Eu sempre senti que a história sempre me deveu tudo e hoje eu senti o gosto de poder cobrar ao menos alguns centavos. Ouvir de revolução, de pretos que se levantaram, de toda essa história apagada, eu acho que me deu força. Obrigado, professor!


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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