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LÍNGUA RUSSA | Ekaterina Vólkova, profª da UFF, fala da transformação da língua russa no contexto da URSS

Ekaterina Vólkova Américo* conversa com o Esquerda Diário sobre a Escola Semiótica de Tártu-Moscou e a transformação da língua russa no contexto da URSS.

segunda-feira 12 de março de 2018 | Edição do dia

Ekaterina Vólkova Américo, professora de literatura e cultura russas na Universidade Federal Fluminense (UFF).

Esquerda Diário: Em sua palestra na Jornada “As letras da Revolução”, que organizou juntamente com outros colegas em dezembro de 2017 na Universidade Federal Fluminense (UFF), no campus Gragoatá, você abordou os efeitos da Revolução Russa para a linguagem, tanto cotidiana, num primeiro momento, quanto acadêmica, posteriormente, com a ascenção de Stálin ao poder, até culminar no caso da Escola Semiótica de Tártu-Moscou nos anos de 1960-1980, tendo em Iúri Lotman seu principal teórico. Começando pelos efeitos da Revolução Russa, de um modo geral, e a de Outubro, em particular, e o posterior Comunismo de Guerra, na sua avaliação, quais foram os impactos mais imediatos?

Ekaterina Vólkova Américo: Não só os anos posteriores à Revolução Russa de Outubro de 1917, mas também os anteriores foram, de fato, anos revolucionários. Havia ali uma verdadeira explosão cultural, e Iúri Lotman, em seus estudos, vai apontar essa explosão como algo necessário para a renovação da cultura. O aparecimento e a atuação das correntes vanguardistas na Rússia pré-revolucionária marcou praticamente todas as esferas da arte: o suprematismo, a arte abstrata, o futurismo e o cubofuturismo na poesia, o construtivismo na arquitetura, o método formal na crítica literária, a dramaturgia, artistas como Maliévitch, Kandínski, Stanislávski, Meyerhold, que hoje já contam com certo conhecimento no Brasil. Mas também na música e no cinema tivemos revoluções, com Stravínski, e os filmes de Eisenstein. Eu poderia continuar com essa lista infinitamente. Então, é claro que o plano da língua não podia ficar de fora desse processo. A origem das inovações está na poesia de vanguarda, como, por exemplo, na obra de Khliébnikov, Khrutchónykh, Maiakóvski, repleta de neologismos e marcada pela busca de uma nova linguagem. Isso se deve ao fato de a Revolução ter acentuado a impotência da língua “antiga” diante das transformações daquela magnitude que estavam sendo vividas pela Rússia.

As mudanças aconteciam em velocidade frenética e um dos resultados disso foi uma certa necessidade de condensar os sentidos, o que fica bastante claro se você pensa na própria abreviação das palavras. O próprio nome do país que estava nascendo, URSS, é uma abreviação. Então, se, por um lado, você tem uma explosão criativa das vanguardas artísticas, por outro, todo o conjunto de transformações linguísticas que se observa na época pós-revolução vai cada vez mais adquirindo características do que, mais tarde, George Orwell chamou de “newspeak”, ou “novilíngua”, para se referir à linguagem comuns regimes totalitários. Aliás, o romance 1984 de Orwell teve influência dos discursos soviéticos, mas também do romance “Nós”, de Evguiéni Zamiátin, que já nos anos de 1920 identificou deturpações sociais típicas de sociedades autoritárias, e também das alterações linguísticas que as acompanham.

Iúri Lotman (1922-1993), semioticistas, historiador cultural. Entre sua extensa produção, destacam-se seu trabalhos sobre poética estrutural.

ED: Você observa que há uma alteração na língua russa, sentida a partir dos anos 20, mas, sobretudo, no decorrer dos anos de 1930, tanto na linguagem cotidiana, quanto na acadêmica e literária. Quais seriam esses efeitos? Na sua avaliação, eles estariam relacionados com a crescente burocratização do Estado soviético?

EVA: Sem dúvida, as mudanças pelas quais a língua russa passou nas décadas seguintes resultam dessa crescente burocratização. O esquema da dinamicidade da cultura sugerido por Lotman pode nos oferecer boas pistas. Segundo ele, um período explosivo e revolucionário é seguido por um período de estagnação, e é nesse período que as novas informações recebidas anteriormente vão ser organizadas e conservadas. Isso nós podemos observar no período de dogmatização na história da União Soviética. O que acontece na esfera da língua é que começam gradualmente não apenas a se formar diferentes linguagens, mas também percebe-se um enrijecimento. Você nota isso principalmente no discurso político e pode-se muito bem acompanhar nas falas de Stálin e dos outros líderes soviéticos. A linguagem política, de um modo geral, ocupava o lugar central na semiosfera soviética. Você tinha ali fórmulas linguísticas originadas dos discursos oficiais que acabaram sendo repetidas por burocratas das mais diversas esferas. Em linguística, hoje, nós chamamos esse fenômeno de “sovetismos”. O romance “Mestre e Margarida”, de Mikhail Bulgákov, cuja leitura recomendo, está recheado dessas expressões linguísticas.

ED: Falando especificamente dos efeitos para as ciências humanas no contexto da Escola Semiótica de Tártu-Moscou, como essa alteração se observa? Eles acabaram criando estratégias para desenvolver seus estudos. Que estratégias foram essas e como se organizavam os integrantes da Escola?

EVA: É marca da literatura, da intelligentsia, das ciências humanas a dissidência. No caso da linguagem literária russa no período soviético, esta foi influenciada de maneira tão acentuada pelo discurso oficial, que, para você ter uma ideia, na década de 1950, as pessoas já não conseguiam fazer uso dela na vida cotidiana. Então, você tem aí um terreno que está preparado para a renovação da língua. E é claro que o papel da intelligentsia foi decisivo para o processo. Em primeiro lugar, eles camuflavam as palavras “proibidas” no meio dos textos, que eram, na aparência, fiéis ao discurso soviético oficial. Tem uma pesquisadora russa chamada Marietta Tchudakova que diz algo muito interessante. Ela diz que foram elaboradas “formas refinadas da linguagem esópica refletida, em grande parte, no ‘revestimento verbal’ dos enredos narrados: assim, por trás de uma narrativa sobre e censura ou outra forma de violência na época do Império Russo, era possível adivinhar uma crítica dos regimes totalitários.” Enquanto isso, um grupo de intelectuais, um grupo relativamente pequeno, começou a formular o novo discurso das ciências humanas e que, inclusive, se colocava à parte do vocabulário soviético. Você tem alguns casos em que os “sovetismos” eram claramente evitados, e outros casos em que aqueles termos ganhavam novos significados. Esse segundo caso é o caso dos pesquisadores da Escola Semiótica de Tártu-Moscou, da qual Iúri Lotman era o cabeça. Assim, ao longo das décadas de 1960 e 1980, essa Escola reuniu em torno dos estudos semióticos os pesquisadores das mais variadas áreas, mas, principalmente, das ciências humanas. E esse nome é por que a maioria dos participantes era originária de Moscou ou de Tártu, como é o caso do Lotman. Eu acho surpreendente o fato de os estudos semióticos terem conseguido sobreviver e se desenvolver em plena União Soviética, ou seja, no interior de um estado que hoje avaliamos como totalitário. E como isso foi possível? Graças a uma estratégia de sobrevivência muito refinada. Em primeiro lugar, os estudos semióticos na URSS eram declaradamente apolíticos, depois, a Escola era constituída por um grupo relativamente hermético de pesquisadores, por fim, a sua linguagem era extremamente complexa, cifrada, cheia de estrangeirismos e com alusões que a tornavam totalmente incompreensível para um eventual intruso. Até mesmo o termo “semiótica” eles evitavam, usando no lugar a expressão “sistemas modelizantes secundários”, de acordo com o testemunho de Vladímir Uspiénski. Mas se pegarmos os trabalhos posteriores de Iúri Lotman, principalmente a partir da perestroika, vamos verificar que sua linguagem se torna cada vez mais clara e, em muitos casos, dirigidos também ao público geral. No final dos anos de 1980, Lotman gravou um ciclo de palestras sob o título “Conversas sobre a Cultura Russa (Bessiédy o Rússkoi Kultúre)”, e essas palestras foram não apenas transmitidas pela televisão soviética quanto se tornaram extremamente populares.

ED: Para terminar, observando o contexto brasileiro e o contexto russo atualmente. Na sua opinião, qual a importância de resgatar o legado da Revolução Russas nesses dois países?

EVA: A Revolução Russa traz várias lições e também esperanças. Durante a Jornada “As Letras da Revolução”, o pesquisador Henrique Canary observou que, na Rússia atual, observa-se uma tendência de “esquecer” a Revolução, ou melhor, as Revoluções, e apresentar o processo histórico como único e sem quebras nem explosões. Assim, se no Brasil durante o ano 2017 tivemos inúmeros eventos e lançamentos de livros dedicados à Revolução, na Rússia, esse número foi muito pequeno. A amnésia histórica é sempre muito perigosa. Se voltarmos à terminologia de Lotman, vivemos uma época de estagnação, que, no entanto, um dia terá que passar por uma renovação.

Cartaz da jornada "As letras da Revolução: linguística, litertura, tradução e história em meio à Rússia revolucionária", que ocorreu no dia 4 de dezembro em Niterói.

*Doutora em Literatura e Cultura Russa pela USP, onde também fez seu mestrado e pós-doutorado, Ekaterina Vólkova Américo é tradutora e pesquisadora das obras de Iúri Lotman, Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev, Valentin Volóchinov, Piotr Bogatyriov e Roman Jakobson. Começou a lecionar na Universidade Federal Fluminense (UFF) em 2014, onde além de ensinar língua e literatura russas, orienta pesquisas no Laboratório dos Estudos em Tradução (LABESTRAD), onde torna possível, entre tantas outras, as letras da Revolução.


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URSS    Cultura



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