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Em defesa do marxismo enquanto um método teórico e estratégico para pôr fim à opressão racial: um debate com a teoria decolonial e com Aimé Césaire

Emilly Vitoria

Em defesa do marxismo enquanto um método teórico e estratégico para pôr fim à opressão racial: um debate com a teoria decolonial e com Aimé Césaire

Emilly Vitoria

Essa artigo faz parte de uma coletânea de iniciativa do grupo de extensão MAPES - Marxismo e Pensamento Social, que é composto por docentes, estudantes da graduação e pós-graduação em Ciências Sociais e outras áreas ligadas ao debate sobre Pensamento Social de universidades nordestinas como a UFRN, UFPE e UFCG, e que está associado ao Semanário Teórico Ideias de Esquerda. É uma iniciativa pensada para estabelecer um diálogo com os temas das mesas da Semana de Ciências Sociais da UFRN de novembro de 2023, como uma primeira iniciativa de produção teórica-política do grupo, além de contribuições na área da cultura e da arte

A teoria decolonial é um campo interdisciplinar de estudos críticos que surgiu nas décadas de 1960 e 1970 e pode ser definida enquanto um “giro epistemológico”, isto é, uma teoria que busca a disrupção com o eurocentrismo, o imperialismo, o racismo e as opressões responsáveis por subalternizar determinados grupos sociais, fundamentados através de teorias e correntes filosófico-científicas. Em tese, a teoria decolonial busca romper epistemologicamente com as consequências ideológicas e culturais do imperialismo, examina criticamente as formas como o colonialismo europeu e o imperialismo moldaram sociedades, economias, culturas e mentalidades em todo o mundo. Ela busca desvendar as implicações duradouras desses sistemas de dominação.

Sob essa perspectiva, é certamente necessário um questionamento em torno da produção cultural e de conhecimento ser pautada a partir de um modelo produzido unicamente nas grandes potências imperialistas, bem como compreender o “teor progressista” das teorias que buscam epistemo logicamente “dar voz” aos povos oprimidos pelo colonialismo e pôr fim às heranças culturais dessa forma de dominação. No entanto, esse “giro epistemológico” é suficiente para garantir a libertação das nações oprimidas, o fim da opressão racial contra és negres , o fim do extermínio contra os povos originários e a garantia intransigente do direito à autodeterminação? Por que defender o fim do capitalismo a partir do marxismo enquanto uma arma estratégica na luta anti-imperialista, antirracista e contra toda forma de opressão?

Neste artigo eu busco elucidar essas questões a partir de uma luta política e teórica com uma leitura decolonial que analisa o texto “Discurso sobre o colonialismo” de Césaire, bem como as próprias conclusões que o autor chegou em sua obra e particularmente, em sua carta de rompimento com o Partido Comunista Francês na década de 1950.

No texto “Discurso sobre o colonialismo de Aimé Césaire: uma chave de leitura feminista latino-americana descolonial” da autora Mara Viveros Vigoya, publicado em 2021 pela Revista Equatorial a mesma busca analisar o texto de Aimé Césaire, pensador caribenho da Martinica, e propor uma reflexão acerca das contribuições e debilidades existentes na obra do autor. A obra em questão foi escrita em um momento histórico marcado por mudanças significativas no mundo e publicada em meados dos anos 1950, durante o pós Segunda Guerra Mundial. Ademais, Aimé Césaire foi uma figura proeminente no Movimento Negritude, que surgiu nas décadas de 1930 e 1940.

No período em que Césaire escrevia a obra, acontecia a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), um conflito que trouxe à tona as atrocidades do nazismo e o papel central dos impérios coloniais europeus na guerra. A exposição dos horrores do Holocausto e o desejo por liberdade e autodeterminação ganharam destaque no cenário internacional. Nesse sentido, Vigoya parte de sistematizar a obra do autor em torno de três pilares fundamentais: em primeiro lugar a crítica ao eurocentrismo, em segundo lugar a proposta teórico-política da descolonização e em terceiro lugar o questionamento quanto aos dilemas e tensões concernentes ao debate sobre as demandas de igualdade, como também o reconhecimento das diferenças.

Sendo assim, para Vigoya um destes pilares da teoria de Césaire é desenvolvido a partir de algumas premissas. Uma delas é que existem “vínculos estreitos” entre o projeto da modernidade ocidental e o próprio advento do nazismo na Europa, já que ambos estão diretamente ligados à colonização e ao pensamento colonial. Ou seja, Césaire argumenta que o racismo subjacente à colonização europeia desempenhou um papel crucial que permitiu a ascensão do nazismo na Europa e que deu continuidade aos métodos empregados em países colonizados pelas potências coloniais, como o genocídio, a exploração de mão-de-obra barata, o racismo e os massacres aos povos indígenas e ao povo negro. Do mesmo modo, Césaire, assim como outros autores do pensamento negro e anticolonial, chegou a uma conclusão de suma importância, a de que o racismo é um traço constitutivo do sistema capitalista.

Entretanto, apesar de concordar com muitos pontos da análise em questão, arrisco afirmar que o racismo não é apenas um traço constitutivo do capitalismo, mas uma de suas bases materiais imprescindíveis para sua reprodução e perpetuação enquanto um sistema que não só se utiliza das opressões de raça e gênero, mas as tem como algo irredutível em seu DNA. Tendo em vista a inter-relação entre a emergência do capitalismo e o racismo. Ou seja, a necessidade de expansão do capitalismo e a escravização africana (e indígena na América) foram pilares do surgimento do racismo e das justificações que são evidenciadas nas teorias decoloniais ou pós-coloniais.

Assim, compreender a escravidão moderna — que se deu a partir do sequestro inteiro de um continente e da usurpação de terras sob trabalho forçado e violência — enquanto uma coluna basilar que assegurou as bases para a formação acabada do capitalismo e da geração de lucro não só aos senhores coloniais, mas aos impérios, é fundamental. O racismo emerge enquanto uma teoria que busca justificar a escravidão de “povos inferiores” e segue na consciência da sociedade em muitos níveis, mesmo após a abolição conquistada com a aliança na luta de classes entre trabalhadores, escravizados contra os senhores de escravos, com diversos processos de revolta inspiradores, tanto no Brasil, quanto em outros países da América Latina (Revolução Haitiana, Quilombo dos Palmares etc…), encabeçados fortemente pelo povo negro que, como diz C.LR. James, não são contados apenas nos livros de história dos capitalistas.

Sobre a continuidade do racismo, mesmo com o fim da escravidão e o fim do sistema colonial, e sua presença ainda hoje no capitalismo contemporâneo, destaca Breitman em “Quando surgiu o preconceito contra o negro (1954, p. 49 )”:

“Os capitalistas o adotaram, cuidaram, alimentaram, deram-lhe nova roupagem e infundiram-no com um vigor e uma influência que nunca antes havia possuído. O racismo hoje opera de uma forma diferente de um século atrás, mas foi mantido depois da abolição exatamente pela mesma razão que foi introduzido sob o sistema escravista que se desenvolveu no século XVI em diante: por sua utilidade como um instrumento de exploração; e por essa mesma razão, não será abandonado pela classe dominante de qualquer sociedade exploradora.”

Vale ressaltar que a base das teses da relação entre capitalismo e racismo está no livro “O Capital” de Karl Marx (2013), em especial no capítulo sobre a acumulação primitiva. Ainda em sua obra, Marx destaca a importância da luta anticolonial e da unidade entre trabalhadores negros e brancos quando afirma que “o trabalho de pele branca não pode ser emancipado onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro.” Do mesmo modo, o próprio C.L.R James destacou a importância de reconsiderar a história, desafiando a ideia de “negro dócil” e ressaltando a resistência dos negros e indígenas nas Américas, especialmente na Revolução Haitiana, criticando abordagens eurocentristas que muitas vezes negligenciam esses eventos de luta e libertação.

Além do horror da Segunda Guerra Mundial, Césaire vivenciou e elaborou sobre o período do pós-guerra onde o mundo estava dividido entre o campo capitalista — com o expansionismo militar e o poder hegemônico encabeçado pelos Estados Unidos — e o campo socialista — representado pela já burocratizada União Soviética. Sob esse contexto, Vigoya fundamenta que o comunismo era visto como uma saída viável para a luta contra os horrores do nazi-fascismo e em favor da luta anticolonial, mas, para Vigoya, foi ignorada uma contradição importante. De acordo com ele “(…) O comunismo ignorou uma contradição que atravessava o campo do capitalismo, qual seja, a oposição entre os povos colonizados da Ásia e da África e as nações imperialistas, protegidas pelos Estados Unidos” (2021, p. 7). Por sua vez, Césaire afirma que não foram priorizadas as demandas dos povos colonizados.

Discordo veementemente da afirmação de que o comunismo ou mesmo o marxismo ignorou a demanda dos povos colonizados. No mesmo período, George Breitman, C.LR James e o próprio Aimé Césaire, que rompe com o PC francês, mas não com o marxismo até então, bem como outros teóricos, se debruçaram sobre essa questão e elaboraram teses fundamentais. Marx, em sua época, acompanhava atentamente cada processo de luta antirracista fora da europa, chegando a mobilizar trabalhadores brancos nos Estados Unidos e na Europa, especialmente na Inglaterra e na França, a se posicionarem contra a escravidão durante a Guerra Civil Norte Americana, enfrentando a pressão nacionalista sobre os trabalhadores brancos na Inglaterra.

Césaire em sua carta à Maurice Thorez, Secretário Geral do PC francês, condena a burocratização stalinista dos partidos comunistas em muitos lugares e a política adaptada que foi responsável por não dar centralidade à questão colonial e à opressão dos povos colonizados, como na própria França. Para ele, eram necessários partidos comunistas independentes das burocracias, e o que foi revelado por Khrushchev sobre os métodos de Stalin na URSS, como em outros países com experiências socialistas, era o suficiente para colocar toda uma geração em choque, dor e vergonha. Segundo Césaire:

“(...) Em numerosos países europeus — em nome do socialismo — burocracias usurpadoras isoladas do povo (burocracias das quais agora está provado que nada se pode esperar) conseguiram alcançar a lamentável maravilha de transformar em pesadelo o que a humanidade tem há tanto tempo acalentado enquanto um sonho: o socialismo.” (1956, p. 146)

A crítica é mais do que cabível em se tratando do que foi o processo de burocratização instaurado na União Soviética com o stalinismo e sua casta burocrática, mas de nenhum modo se deve associar isso a experiência do comunismo, tendo em vista que a própria União Soviética se encontrava em um Estado de Transição para o socialismo, como definiu Leon Trotsky em sua obra “A Revolução Traída”. No entanto, é fundamental analisar a política e o programa dos Partidos Comunistas que, sob influência do stalinismo, atuaram em revoltas de negros e negras em luta pela liberdade. A guerra fortaleceu pressões já instaladas na lógica política de Stálin e seu discurso nacionalista.

“A aliança com EUA, França e Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial de certa forma ‘comprovou’ as possibilidades desta ser mais duradoura, e alentou ainda mais os ânimos dos defensores de uma nação especial, socialista, existente de forma única em todo o mundo e defendida por todos os outros Partidos Comunistas, que em nome dessa ‘paz’ abriram mão de uma série de tentativas de revolução nos seus próprios países. A orientação stalinista de defesa nacional levou a uma paralisia generalizada dos partidos comunistas da Terceira Internacional em todo o mundo. Sua ação se reservou aos países onde o Partido Comunista Russo reconhecia a existência de aliados capitalistas, como EUA, França e Inglaterra, de forma a garantir a ‘coexistência pacífica”. (PARKS, 2020, p. 3)

Essa política foi o que contribuiu para a contenção da revolta anti-apartheid na África do Sul nos anos 50, por exemplo, o que não permitiu que a luta iniciada pelas mulheres negras sul-africanas pudesse incendiar a classe trabalhadora, onde existia o Partido Comunista mais numeroso da África. O racismo e o patriarcado garantiam a superexploração dessas mulheres, lançando-as em postos de trabalho cada vez mais precários e, mesmo assim, elas foram linha de frente ao se enfrentar contra o Apartheid. Mas, com a traição do Partido Comunista Sul-Africano, instaurar um processo revolucionário instigado pela luta por libertação nacional e pela dupla opressão que sofriam as mulheres, bem como travar uma batalha pela consciência das massas, não foi levada adiante.

A estratégia stalinista via como um distracionismo outros processos revolucionários frente a preservação da URSS, assim como o PC orientava a aliança dos comunistas com a burguesia nacional, o que nada tinha de aliada na luta anticolonial e só podia garantir uma saída contra-revolucionária e não independente da classe trabalhadora negra. Nesse sentido, esse breve exemplo, dentre vários registrados na história, deve ser uma chave para se tirar balanços históricos enquanto marxistas que se propõem a ser consequentes na luta contra o capitalismo, o imperialismo, o racismo e toda forma de opressão. Assim, superar as opressões e conectar as lutas antirracista, antipatriarcal e anticapitalista é uma tarefa histórica e que só pode ser vitoriosa negando o legado stalinista e em defesa do marxismo.

O que já se contrapõe à conclusão estratégica tanto da leitura decolonial de Vigoya (2021), mas também do próprio Césaire (1950), que não é um autor decolonial, mas que reflete sobre o processo de descolonização e foi base para pavimentar a teoria decolonial. A autora, por sua vez, aponta em sua leitura decolonial acerca da obra de Césaire, bem como o mesmo desenvolve em seu texto, a saída a ser defendida frente ao cenário de guerra e disputas geopolíticas, que seria o processo de descolonização. A autora propõe que esse processo seja articulado a uma chave de leitura feminista decolonial. Em poucas palavras, isso significaria um novo tipo de raciocínio crítico e um processo de tomada de consciência por parte dos povos oprimidos, ou, como define a decolonialidade, dos subalternizados, de sua localização geográfica, epistêmica e política quanto ao projeto civilizatório europeu e que repense as questões de gênero enquanto central nesse campo. Além disso, Césaire defende, tanto na carta quanto em “Discurso sobre o colonialismo”, a questão colonial vinculada à luta pelo direito à autodeterminação, um ponto de contato bastante essencial com o marxismo.

Concluímos portanto que um giro epistemológico não alcança a superação do colonialismo, cujas bases materiais deram origem ao capitalismo e seguem relevantes. Na época imperialista em que vivemos, de acordo com Lênin, de crises, guerras e revoluções, o pensamento crítico que quer se enfrentar com a herança do colonialismo precisa servir para preparar grandes enfrentamentos na luta de classes, para impedir com que revoltas, como vimos desde o estouro da crise econômica de 2008, sejam canalizados para alternativas neorreformistas e reformistas, ou diretamente reacionárias. Recuperar o legado do marxismo revolucionário no enfrentamento às heranças do colonialismo e do racismo é abrir caminho para uma resposta definitiva que possa com a classe trabalhadora à frente, multi-étnica, majoritariamente feminina e por hora fragmentada, unificar-se para abrir caminho a um novo mundo. Como citou Breitman (1954, p. 55), o preconceito contra o negro surgiu das necessidades do capitalismo, é um produto dele, partence a ele e somente morrerá quando esse sistema perecer.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

VIGOYA, Mara Viveros. Discurso sobre o colonialismo de Aimé Césaire: uma chave de leitura feminista latino-americana descolonial. Equatorial, Natal, v. 8, n. 14, p.1-17, jan/jun 2021.

Pablito, Marcello; Alfonso, Daniel; Parks, Letícia. A revolução e o negro. Edições ISKRA, 2019.

MARX, Karl. O Capital: crítica da Economia Política. Livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013

CÉSAIRE. Letter to Maurice Thorez. Social Text, v. 28, n. 2, p. 145–152, 2010.


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Emilly Vitoria

Estudante de ciências sociais na UFRN e Militante da Faísca Revolucionária
Estudante de ciências sociais na UFRN e Militante da Faísca Revolucionária
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