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Entrevista com Patrícia Lemos: Walmart, varejo e precarização do trabalho na pandemia

Entrevista com Patrícia Lemos: Walmart, varejo e precarização do trabalho na pandemia

Nesta entrevista, Patrícia Lemos, pesquisadora do Instituto de Economia da Unicamp (CESIT), conversa com Vitória Camargo, socióloga e pesquisadora do Observatório da Precarização do Trabalho e da Reestruturação Produtiva.
O tema da entrevista tratou da situação do trabalho na atualidade, com destaque para gigantes como Walmart no setor varejista.

Observatório: Os trabalhadores dos supermercados foram parte dos setores essenciais, que seguiram trabalhando durante a pandemia. Nesse cenário, viemos acompanhando notícias de que os lucros da empresa Walmart, maior varejista em vendas e a empresa privada recordista em empregar trabalhadores no mundo, vinham crescendo. Por sua vez, nos Estados Unidos, que vem passando por um processo de revolta social profunda, também houve notícias de greves e processos de luta dos trabalhadores do Walmart. Essa empresa, desde sua origem, foi marcada pelo rebaixamento das condições de trabalho e salário no mundo. Como você vê a relação entre a pandemia e as condições de trabalho nessa gigante varejista?

Patrícia Lemos: O Walmart é, sem dúvida, um símbolo importante do processo generalizado de rebaixamento dos salários e das condições de vida dos trabalhadores em todo o mundo e muitos estudiosos têm chamado a atenção para isso nas últimas décadas. Esse é o processo que muitos caracterizam como walmartização ou walmartismo, que está relacionado não apenas com o fato de a empresa ser a maior empregadora privada do mundo e pelos seus sucessivos recordes de faturamento. Na medida em que domina o maior mercado consumidor do globo e utiliza as mais desenvolvidas tecnologias de controle de informação e logística, essa empresa foi ao longo dos anos aperfeiçoando seus mecanismos de pressão sobre a sua cadeia de fornecedores, impondo as suas próprias condições ao produto, preços e prazos da produção e entrega. Com isso, além do seu efeito na concorrência, ao pressionar toda uma rede de subcontratadas para rebaixar os custos de produção, a gigante varejista aprofunda a vulnerabilidade e precarização das condições de trabalho nas regiões produtoras de suas mercadorias, especialmente na China e outros países do leste Asiático.

Quando analisamos o trabalho nos chamados “pontos de venda”, ou seja, nas lojas de super e hipermercados do Walmart, essa obsessão com a redução de custos é evidente. Os baixos salários, longas jornadas e estratégias de não pagamento por horas extras é combinada com um modelo de gestão bastante despótico e com um quadro sempre muito reduzido de trabalhadores que força a sobrecarga dos demais. Isso foi um pouco do que eu discuti na minha tese de doutorado, que trata da experiência dessa empresa no Brasil. No caso dos Estados Unidos, o Walmart é conhecido também por pagar salários abaixo da concorrência e basear-se principalmente nos contratados part-time, que não tem acesso a benefícios. Isso gerou uma série de movimentos no país para denunciar o custo que esses trabalhadores subremunerados davam ao Estado por dependerem de benefícios sociais. Um conjunto de movimentos, em que se destacou o Our Walmart buscavam denunciar essas políticas da empresa e entre elas, as políticas antissindicais da companhia. A forte evidência disso é que nenhuma loja do Walmart nos EUA é sindicalizada e todas as que ameaçaram sindicalização foram fechadas. Essas mobilizações foram fundamentais e construíram a base para o movimento em defesa do salário mínimo de 15 dólares pela hora de trabalho, que reúne também outras categorias em uma campanha de caráter nacional. Esse é um processo que vem de longa data, mas que certamente nesse momento de crise e, fortalecidos pela revolta social que movimenta também outros setores e outras demandas, também serve de um estímulo à luta coletiva.

Com a chegada da pandemia e das políticas de distanciamento social, o segmento varejista de alimentos é um dos principais que continuaram funcionando e onde a situação de precarização do trabalho se aprofundou. Isso ocorre por vários motivos: são acrescidas a esses trabalhadores outras atividades para se adequar às medidas sanitárias e de saúde; cresce o movimento de consumidores nas grandes redes, enquanto o quadro se reduz quando as pessoas do grupo de risco são afastadas; e também são acrescidas novas (ou ampliadas) atividades como a de separação e de entrega de alimentos.

Nesse sentido, eu entendo que esses trabalhadores, apesar de terem sido enquadrados como essenciais e de haver alguma visibilidade para a relevância de sua atividade, o tratamento que eles vêm recebendo não é o de valorização. Assim como outros trabalhadores essenciais eles estão submetidos a jornadas super extensas, privados de folgas e nem sempre com acesso à proteção adequada contra a contaminação pelo vírus. Mas diferente de trabalhadores como os da saúde, que tem algum “reconhecimento social”, ainda que simbólico, pelo fato de estarem contribuindo para salvar vidas, os trabalhadores de supermercados, especialmente as operadoras de caixa, são muitas vezes tratadas como descartáveis ou desnecessárias. Para isso, basta ver o próprio comportamento dos consumidores que não se preocupam, ou aceitam facilmente, entrar em um estabelecimento em que esses trabalhadores não estão protegidos. Por esses motivos, entendo que a pandemia tem agravado ainda mais a precarização das condições de trabalho e, principalmente, tem contribuído para aprofundar o adoecimento mental dessas trabalhadoras. Isso ocorre porque além da grande pressão que eles já sofriam no trabalho, elas precisam estar o tempo todo vigilantes, se expondo ao transporte público e se submetendo a quaisquer condições para manter o emprego. Diante da trágica crise economia, social e sanitária, a única opção dessas trabalhadoras parece ser aceitar as condições postas para garantir sua renda e lidar com o risco e o medo de contaminar seus familiares.

Ob: Em sua pesquisa, você destaca a empresa Walmart como um dos símbolos das cadeias globais de valor, destacando a maior interpenetração do capital pós-crise capitalista dos 70. Dessa maneira, tratando-se de uma gigante que se ancora no capital comercial, como você analisa sua relação com outros setores da economia, como as empresas fornecedoras, à luz da contribuição da teoria do valor postulada por Marx?

PL: Essa é uma pergunta bastante complexa e está relacionada a um debate que não tem recebido muito destaque justamente porque as análises estiveram focadas no capital produtivo e, mais recentemente, no processo de financeirização. No entanto, a “ascensão” desses grandes varejistas como o Walmart, e depois a Amazon e outros, passaram a chamar a atenção de alguns estudiosos para certo grau de mudança na relação de poder entre esse capital comercial e o capital produtivo. Mas pensar apenas sob esses termos seria muito simplista. O que eu quero chamar a atenção é que reconhecer esse fenômeno e o papel dessas grandes corporações nas redes globais de produção, ou redes globais de valor, implica reexaminar a articulação e interpenetração desses capitais para compreender processos como a própria “financeirização do varejo” e possíveis novas dinâmicas na distribuição do mais valor entre esses diferentes capitais. Além disso, me parece fundamental analisar a dimensão do mais valor gerado no processo de transporte dentro de toda uma dinâmica logística da circulação de mercadorias, inclusive em boa parte sob controle dessas gigantes varejistas.

Ob: Você é parte da REMIR Trabalho, que é a Rede de Estudos e Monitoramento da Reforma Trabalhista. Sabemos que as grandes empresas do setor varejista foram grandes beneficiadas pela aprovação da Reforma Trabalhista. Quais são os impactos da Reforma para as condições de trabalho no varejo e os ritmos de sua aplicação? A pandemia e o aprofundamento da crise corroboram à maior implementação da Reforma e avançam em seus objetivos?

PL: Os impactos dessa (contra)reforma são de várias naturezas, ou seja, vão desde o sentido geral de desestruturação do mercado de trabalho e de desconstrução da regulação, com a desidratação e desfiguração da CLT, passando por uma lógica de destruição dos sindicatos e da Justiça do Trabalho, até o conjunto de novas modalidades de contrato e jornada que buscam ampliar a liberdade dos empregadores na definição das condições de uso e remuneração da força de trabalho. Com isso, eu quero dizer que há um retrocesso consolidado nessa reforma que está na própria concepção, ou seja, na recusa da necessidade de uma legislação que busque amenizar os impactos da relação desigual entre capital e trabalho. Isso fica evidente com a chamada “prevalência do negociado sobre o legislado” que prescinde do papel da legislação em assegurar um patamar mínimo de direitos.

Dito isso, as medidas criadas com a reforma como, por exemplo, novas formas de contratação e novas modalidades de distribuição da jornada, vão ser implementadas e impactar diferentemente os segmentos da economia. No caso do comércio em geral, e em alguns casos nos supermercados, o que observamos é a utilização do contrato intermitente e a jornada 12x36. O primeiro, foi instituído nesse projeto de lei de 2017 e cria uma modalidade de contrato em que o trabalhador fica à disposição, recebe apenas por hora trabalhada, não tem garantia de um mínimo de horas nem a um mínimo de remuneração, além de não acessar benefícios que se aplicam a outros tipos de contrato. Já a jornada 12x36, que era restrita a algumas atividades como segurança, agora tem sido utilizada, entre outras ocupações, por operadoras de caixa. Essas medidas estão diretamente ligadas a possibilidade de o empregador ajustar os “custos” com o trabalho de forma cada vez mais precisa à sua demanda. No caso do comércio, isso permite baratear o trabalho aos fins de semana e feriados, onde é maior o movimento de consumidores nas lojas e supermercados. Por fim, gostaria de ressaltar um outro impacto significativo neste setor: com todos os obstáculos ao acesso dos trabalhadores à Justiça do Trabalho dificulta-se ainda mais as oportunidades de restituição dos direitos negados pelo empregador, especialmente nesses setores de pouca tradição de mobilização coletiva. Além disso, o fim das homologações nos sindicatos facilita o não pagamento das verbas devidas ao trabalhador na rescisão e faz com que esse problema, que era o principal motivo de reclamação trabalhista, muitas vezes nem chegue ao conhecimento do trabalhador.

Ob: Recentemente, diante do governo Bolsonaro e dos impactos da crise, vimos importantes paralisações de entregadores de aplicativo, outro setor essencial na pandemia. A partir do Observatório da Precarização do Trabalho e da Reestruturação Produtiva, acreditamos que a uberização é uma tendência do mundo do trabalho que tende a se expandir. Qual relação você vê entre os impactos da Reforma Trabalhista e a uberização do trabalho?

PL: A reforma trabalhista, me parece, busca generalizar uma série de condições de precariedade e vulnerabilidade do trabalho que já existia, seja na informalidade, seja nos setores com piores condições de trabalho em que a burla à legislação trabalhista sempre foi recorrente. Na medida em que aproxima o trabalho formal regido pela CLT ao trabalho informal, a reforma expressa um movimento diferente, por dentro da institucionalidade, mas que se aproxima do modelo de relação de trabalho e de “ideal” de trabalhador daquele que identificamos no processo de uberização do trabalho. Modalidades criadas com a reforma como o teletrabalho, por exemplo, já incorporam a responsabilidade do trabalhador pelos seus meios de trabalho. Do mesmo modo, o trabalho intermitente já pressupõe que o trabalhador tenha que garantir seus meios de ser convocado à atividade e deve arcar com os riscos do trabalho, sem a garantia de uma remuneração mínima. Essas características estão na essência do processo de uberização que, claro, se complexifica com o surgimento e proliferação dos aplicativos. Além disso, através de uma relação não mais mediada pelo contrato de trabalho, a uberização aprofunda e difunde elementos que já estavam presentes no que eu chamei de “ideologia corporativa” no modelo de gestão de empresas como o Walmart. Entre eles destacam-se o discurso de autonomia e autogerenciamento pelo trabalhador em atividades altamente prescritas e sob rígidos mecanismos de controle. Mecanismos estes naturalizados como ferramentas tecnológicas neutras que servem à super concentração de poder no topo dessas empresas e dificultam a resistência e trazem novos desafios à organização coletiva desses trabalhadores.


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