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Kohei Saito e a crítica ecológica de Karl Marx

Esteban Mercatante

Kohei Saito e a crítica ecológica de Karl Marx

Esteban Mercatante

Kohei Saito vem traçando, nas obras publicadas, manuscritos e notas de Karl Marx, a evolução de seu pensamento sobre o modo como o desenvolvimento do modo de produção capitalista produz profundas alterações no metabolismo entre sociedade e natureza.

Com a publicação em 2017 de Ecossocialismo: Capital, Natureza e Crítica Inacabada da Economia Política, de Karl Marx, lançado em espanhol como La naturaleza contra el capital. Ecossocialismo de Karl Marx [1] e tendo atualmente sua primeira edição na Argentina pelas Ediciones IPS, Kohei Saito rapidamente se tornou uma referência indispensável nas discussões marxistas sobre ecologia e capitalismo. No Japão, seu livro Capital no Antropoceno se tornou um best-seller, chegando a meio milhão de cópias vendidas em 2020.

Em sua pesquisa, Saito se propôs a sistematizar a evolução do pensamento de Marx sobre a relação entre metabolismo social e metabolismo natural, dando grande relevância aos cadernos inéditos pela primeira vez nesta reconstrução. Essas obras, que estão sendo divulgadas –por enquanto em sua língua original alemã– com as novas edições do MEGA (Marx e Engels Gesamtausgabe, isto é, Obras Completas de Marx e Engels), das quais Saito é um dos responsáveis, incluem um grande número de cadernos de esboços e notas de leitura feitas durante os últimos anos da vida de Marx. Nesse período, o revolucionário alemão teria dado cada vez mais importância ao estudo das diversas ciências naturais, como se pode constatar pelos livros resenhados. O interesse fundamental dessas investigações, na opinião de Saito, era estabelecer como o desenvolvimento do capitalismo alterou o equilíbrio com o metabolismo natural.

Em 2022, Saito publicou Marx in the Anthropocene. Towards the Idea of Degrowth Communism, que retoma o fio condutor de suas obras anteriores, especificamente o citado Capital no Antropoceno. Mas o centro de sua proposta, nesta ocasião, encontra-se no caráter do projeto comunista que Marx teria vindo a (re)formular em seus últimos anos de vida, que Saito define como um comunismo decrecionista. A seguir vamos percorrer aspectos centrais da obra de Saito, e discutir alguns pontos de sua perspectiva sobre Marx, o marxismo e o comunismo.

Marx Inédito

O aspecto inovador da obra de Saito é um estudo profundo e sistemático dos cadernos inéditos de Marx. Nos anos de 1868 a 1883, em que Marx completou nada menos que um terço dos cadernos que fez ao longo de sua vida, a presença de temas relacionados à fisiologia e outras ciências naturais, aponta Saito, é preponderante. Seria uma amostra da relevância que Marx deu à questão ecológica e como ela é afetada pelo capitalismo. Isso não se refletiu nos textos publicados, pois naquele período Marx não concluiu nenhuma obra nova para a imprensa, além das alterações introduzidas nas traduções ou reedições de O capital, algumas das quais Saito destaca como resultado dessas novas preocupações teóricas. Saito arrisca que o atraso na conclusão dos volumes II e III de O Capital, cuja conclusão foi finalmente confiada a Engels, se deve a essa profunda reconsideração do lugar da questão ecológica em seu edifício teórico, que o levou a reconsiderar profundamente o esquema de sua crítica à economia política. Se Marx tivesse conseguido captar suas novas reflexões, afirma Saito, teria dado um lugar muito mais privilegiado à crítica ecológica. Daí o grande valor dos cadernos, que fornecem, em sua opinião, uma forma de abordar a ideia que Marx tinha de como O Capital deveria ser completado, muito diferente –diz o autor– do que Engels captou.

O Conceito de Metabolismo

Na reconstrução do pensamento de Marx, Saito dá um lugar central ao conceito de metabolismo. Isso permitiu a Marx “não apenas entender as condições naturais universais e transhistóricas da produção humana, mas também investigar suas transformações históricas radicais durante o desenvolvimento do sistema de produção moderno e o crescimento das forças produtivas” [2].

A noção de metabolismo, oriunda da química e da fisiologia, tornou-se muito popular durante a primeira metade do século XIX. O conceito foi originalmente desenvolvido para explicar os processos físicos e químicos de organismos que convertem ou usam energia. Esses complexos processos inter-relacionados são a base da vida em escala molecular e permitem as diversas atividades das células: crescer, reproduzir, manter suas estruturas e responder a estímulos, entre outras. Antes de Marx, há precedentes para a extensão do conceito de metabolismo "à filosofia e à economia política para descrever as transformações e trocas entre substâncias orgânicas e inorgânicas, por meio do processo de produção, consumo e digestão, tanto no indivíduo quanto na espécie.” [3]

Uma referência direta para Marx foi Justus von Liebig, um químico cujos estudos sobre a degradação dos nutrientes do solo produzidos pela agricultura capitalista foram estudados de perto por Marx. Mas Saito sublinha a "relativa independência de Marx no uso do conceito de metabolismo", pois, embora "é inegável a contribuição de Liebig para o desenvolvimento da teoria do metabolismo em Marx, os Grundrisse também confirmam que ele não aderiu sem ressalvas ao conceito de metabolismo de Liebig ” [4].

No caso de Marx, podemos encontrar três dimensões em que opera o conceito, que podem ser observadas tanto nos Grundrisse quanto em O Capital: “interação metabólica entre humanos e natureza”, “metabolismo da sociedade” e “metabolismo da natureza” [5].

Seguindo John Bellamy Foster [6], Paul Burkett e outros autores, Saito articula essa teoria do metabolismo com a ideia de que a irracionalidade do capital, caracterizada por relações alienadas dentro da sociedade e em relação à natureza, leva inevitavelmente a uma discriminação. Essa noção aparece mencionada duas vezes em O capital, vinculada em ambos os casos aos efeitos da concentração populacional em áreas urbanas devido ao desenvolvimento da grande indústria e ao avanço do capital na agricultura. Marx, seguindo Liebig, discute como a grande propriedade fundiária que produz a reconfiguração agrícola capitalista,

…reduz a população agrícola a um mínimo cada vez menor, opondo-a a uma população industrial sempre crescente, amontoada nas cidades; assim engendra condições que provocam uma ruptura insanável na continuidade do metabolismo social, prescrita pelas leis naturais da vida, em consequência da qual se esbanja a força do solo, esbanjamento que, em virtude do comércio, leva muito dinheiro, além das fronteiras do próprio país [7].

Foster, e Saito concorda com isso, considera que Marx desenvolveu uma visão sistemática da tendência do capitalismo de produzir em diferentes níveis essa "fissura insanável" entre o metabolismo social e o metabolismo natural. A nosso ver, a ideia de um desenvolvimento sistemático dessa abordagem em Marx é discutível. Há muitas evidências de que Marx tornou-se cada vez mais interessado no problema ecológico como parte de sua crítica da economia política, e seu método é a base para uma crítica ecológica profunda hoje, como a desenvolvida por Foster, Burkett, Saito, Malm e muitos outros autores. Isso não significa que essa crítica sistemática dessa dimensão seja desenvolvida em O capital ou nas obras inéditas de Marx.

Para Saito, o conceito de metabolismo é a chave da metodologia de Marx. Permite-lhe evitar o dualismo ontológico (considerando a natureza e a sociedade como entidades completamente separadas), defendendo uma posição monista ontológica. "A ideia básica da teoria do metabolismo de Marx é [...] que os humanos sempre produzem como parte da natureza e que suas atividades se tornam cada vez mais entrelaçadas com a natureza extra-humana no curso do desenvolvimento capitalista" [8]. Mas o monismo em Marx não significa considerá-lo uma unidade indiferenciada. “Uma análise crítica desse poder social inevitavelmente requer separar o social e o natural, respectivamente, como campos independentes de investigação e analisar seu entrelaçamento posteriormente” [9]. A distinção é necessária porque “as relações sociais capitalistas exercem um poder estranho sobre a realidade” [10]. Saito contrapõe essa metodologia de Marx ao monismo extremo, sem diferenciações, que encontra em autores contemporâneos como Bruno Latour, ou, no campo ecomarxista, Jason Moore. Saito argumenta que, por meio da noção de metabolismo, Marx é capaz de desenvolver um "dualismo metodológico", que parte da unidade ontológica (a sociedade é parte da natureza e não uma entidade independente), mas separa os níveis de análise, para captar as interações entre as esferas da natureza e da sociedade, que formam uma unidade diferenciada. Em sua proposição de um monismo ontológico e dualismo metodológico, Saito segue Andreas Malm, que defende o que define como um "monismo de substância com dualismo de propriedades".

Embora a reflexão de Saito sobre o conceito de metabolismo em relação ao método de Marx possa ser sugestiva, duas advertências surgem a seu respeito. A primeira é que pode ser um tanto forçado deslocar toda a discussão sobre método e epistemologia marxista para a categoria de metabolismo. Corre-se o risco de perder parte da riqueza e da complexidade de todo o desenvolvimento das categorias que Marx procurou produzir em seu esforço de reproduzir a realidade concreta no pensamento. A segunda é que a categoria de dualismo metodológico é discutível. Talvez seja mais preciso – embora não se trate necessariamente de posições opostas, longe disso – apontar, como outros estudiosos apontam para definir como Marx entendia a relação de unidade/diferenciação apontada por Saito, que, mais do que um dualismo metodológico, Marx desenvolveu um materialismo emergente. Isso significa compreender que a realidade se articula em diferentes níveis de complexidade e hierarquia, dentro dos quais podem emergir propriedades específicas que distinguem, sem separar, diferentes subsistemas ou níveis de realidade.

Metabolismo, segundo Marx, um elo perdido?

Poucos marxistas seriam capazes, segundo Saito, de compreender a importância do metabolismo na teoria de Marx. Em Marx in the Anthropocene, ele resgata István Mészáros, que popularizou a noção de sociometabolismo em sua leitura de O Capital, ao mesmo tempo em que destaca a análise de Marx sobre a relação com a natureza. Na mesma linha, Saito aponta que Luxemburgo também deu importância ao conceito de metabolismo, observando que “a acumulação de capital é um processo de metabolismo que ocorre entre os modos de produção capitalista e pré-capitalista” [11].

Outra peça fundamental na recuperação do conceito de metabolismo encontra-se para Saito em György Lukács. A discussão parte da bastante famosa nota de rodapé em História e consciência de classe, na qual o escritor húngaro afirma que o método dialético só pode ser aplicado à sociedade, e sua expansão não corresponde à natureza. Com sua crítica e sua nítida separação dos métodos para o estudo da natureza e da sociedade, esta abordagem de Lukács é tradicionalmente considerada como o que Saito, seguindo outros autores, considera um traço característico do "marxismo ocidental", ou sua corrente principal, pois Saito reconhece que se trata de uma categoria ampla e heterogênea: a nítida separação entre os métodos aplicáveis ​​ao estudo da natureza e da sociedade, propondo um enfoque exclusivo nesta última e relegando o estudo da natureza. Rompendo com o mecanicismo que caracterizava o stalinismo, os marxistas ocidentais, ou alguns de seus principais expoentes, visavam “fornecer uma teoria mais sofisticada da sociedade sem cair em uma visão de mundo mecanicista” [12]. Mas eles o fizeram de forma a "excluir completamente a esfera da natureza e as ciências naturais da filosofia social de Marx" [13].

História e consciência de classe gerou debates e críticas acaloradas. Numa obra inédita, Tailism and Dialectic, Lukács teria esclarecido sua abordagem, dando-lhe um sentido bem diferente da nítida separação entre a esfera da natureza e a da sociedade. É aqui que surge o conceito de metabolismo, ausente na História e na consciência de classe.

... Lukács insistiu que o conceito de “metabolismo” é indispensável para entender corretamente a questão-chave da História e Consciência de Classe, ou seja, evitar o dualismo ontológico Natureza e Sociedade e a abordagem unilateral da sociedade. Essa unilateralidade é exatamente a consequência em que o marxismo ocidental caiu ao ignorar o conceito de “metabolismo” de Marx [14].

Engels vs Marx?

Na opinião de Saito, um dos grandes responsáveis ​​por manter oculto o pensamento ecológico de Marx por tanto tempo não é outro senão seu grande amigo, editor e coautor de tantos clássicos, Friedrich Engels. Embora Engels tenha se envolvido desde cedo com o estudo da natureza e plasmou em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra reflexões sobre os efeitos devastadores da acumulação de capital no meio ambiente (cujos efeitos recaíram especialmente sobre a classe trabalhadora), seu olhar teria sido muito diferente da desenvolvida por Marx. Este último, aliás, teria desenvolvido, na opinião de Saito, uma leitura muito mais informada do que a de Engels em numerosos debates científicos durante os últimos anos de sua vida. Apesar de Engels saber disso, observa Saito, ele continuou a afirmar após a morte de Marx (em 1883) que reconhecia que, dos dois, Engels era o especialista nesses assuntos. Na segunda edição do Anti-Dühring, em 1885, Engels afirmou que Marx "apenas gradual, intermitente e esporadicamente" acompanhou o rápido desenvolvimento das ciências naturais, apesar do fato de que, observa Saito, seu conhecimento em primeira mão de todos os manuscritos que Marx havia deixado para trás teve que revelar a ele os avanços de Marx nesse campo.

Entre as diferenças de abordagem que Saito quer acentuar entre os autores, ele observa que a ideia de “vingança da natureza” que Engels propõe para se referir às forças cegas que podem ser desencadeadas pela intervenção na natureza não se encontra em Marx, resultando em surtos inesperados que podem colocar em risco certas formações sociais, ou mesmo a humanidade como um todo. Apesar dessa advertência de Engels, Saito encontra em sua proposta, na Dialética da Natureza e em outras obras, a ideia de que o conhecimento das leis objetivas da natureza tem um sentido prático, que a seu ver não é outro senão o "domínio" e " controle" da natureza. Para alcançar o reino da “liberdade”, é necessário que a humanidade se torne um “mestre real e consciente” da natureza [15].

Mas onde uma distância formidável entre Marx e Engels se abre para Saito é na noção de metabolismo. Saito observa que Engels "não gostou da teoria do metabolismo de Liebig". De fato, "na Dialética da Natureza ele se referiu ao conceito de metabolismo de Liebig no contexto de criticá-lo como um ’diletante’ em biologia" [16]. Embora Engels compartilhasse a teoria de Liebig sobre agricultura de roubo, ele rejeitou sua visão vitalista, “com sua separação da biologia da química e seus princípios inexplicáveis ​​que supostamente são exclusivos dos seres vivos” [17]. Liebig considerou que a origem da vida orgânica não poderia ser devida à evolução da matéria inorgânica, mas aceitou a hipótese de que a "vida eterna" havia sido "importada" para o planeta do espaço universal [18], uma noção contra a qual “Engels argumentou corretamente –diz Saito– que a vida é o processo metabólico que historicamente surgiu e evoluiu da não-vida inorgânica” [19]. Saito reconhece, como vemos, que Engels estava correto em sua crítica a Liebig. Mas, ao mesmo tempo, ele observa que eles influenciaram negativamente a capacidade de Engels de avaliar as contribuições do conceito de metabolismo e, principalmente, de apreciar a apropriação dele por Marx, que não foi exclusivamente tributária de Liebig.

Essa rejeição de Engels ao conceito de metabolismo de Liebig teria tido consequências importantes, na opinião de Saito. Ao reconstruir o terceiro volume de O Capital a partir dos manuscritos de Marx, Engels não teria sido capaz de compreender a apropriação independente de Marx do conceito de metabolismo, que ia muito além do significado limitado do químico alemão. Sua rejeição à teoria de Liebig, e não apenas uma questão de tornar o texto mais acessível, arrisca Saito, o teria levado a introduzir modificações no texto original de Marx. Assim, nos mostra que o texto original da famosa passagem da fratura metabólica, que citamos acima, foi originalmente redigido da seguinte forma:

[Desta forma] [a propriedade da terra em grande escala] produz condições que causam uma ruptura irreparável no processo interdependente entre o metabolismo social e o metabolismo natural prescrito pelas leis naturais do solo. O resultado disso é um desperdício da vitalidade do solo, e o comércio leva essa devastação muito além dos limites de um único país [20].

O próprio Saito reconhece que a modificação de Engels “pode parecer sutil” [21]. Mas faz, no entanto, uma leitura sintomática da referida modificação.

A ocultação da descoberta do Marx ecológico que se revelou nos últimos cadernos de Marx, a dificuldade em captar em sua edição/escrita de O Capital as novas ideias desenvolvidas por Marx sobre a crítica ecológica, e as decisões corretivas que deformaram o pensamento de Marx, tornam Engels, para Saito, o grande responsável pelo fato de o Marx “ecológico” ter permanecido oculto durante o século XX.

O argumento de Saito sobre as responsabilidades de Engels em ofuscar o pensamento ecológico de Marx não parece ser muito sólido. Embora seu estudo dos cadernos e notas de leitura inéditos contribua para mostrar novos aspectos do pensamento de Marx no campo da crítica ecológica, que antes não eram conhecidos e que podem apresentar algumas nuances maiores ou menores em relação à visão de Engels sobre esses temas, Saito atribui a Engels, como um editor póstumo, habilidades desmedidas para deturpar a obra de Marx. Acreditamos que esta operação é inseparável da própria evolução do pensamento de Marx que Saito quer encontrar a partir das novas descobertas do MEGA.

Marx vs Marx?

Em La natureza contra el capital, Saito não viu uma ruptura abrupta no pensamento de Marx. Mas em sua obra mais recente, Marx in the Anthropocene, o pesquisador japonês argumenta que houve uma ruptura ou virada acentuada na reflexão de Marx sobre história, desenvolvimento e ecologia, que se tornou mais pronunciada após 1868, ou seja, quando a primeira edição d’ O Capital já havia aparecido.

Ao contrário de sua obra anterior, Saito não hesita aqui em descrever o “primeiro Marx” – período que acaba se estendendo até quase o fim de sua vida, embora aponte diferentes instâncias de evolução e autocrítica – sem mais do que “Prometeico”, “eurocêntrico”, “etnocêntrico”, “produtivista”. Cai até no anacronismo de classificar Marx como aceleracionista para algumas de suas propostas, quando se trata de uma corrente que surgiu no final do século XX e ganhou influência na última década.

Ao mesmo tempo em que afirma isso, Saito afirma que o falecido Marx, que aparece tanto em seus últimos rascunhos quanto em algumas sutis modificações introduzidas nas reedições ou traduções de O capital, teria enfrentado um profundo processo de autocrítica. Além disso, ele não teria apenas reavaliado aqueles aspectos de seu pensamento onde o eurocentrismo, o prometeísmo e o fervor pelo desenvolvimento das forças produtivas eram evidentes. Teria levado a uma profunda reavaliação da perspectiva sobre o papel do desenvolvimento das forças produtivas como motor das contradições que conduzem à transformação social, e o lugar que tal desenvolvimento deveria ter sob o comunismo, questão que abordaremos em profundidade mais tarde.

O que mudou em tão pouco tempo, entre o primeiro livro de Saito e hoje, para que sua perspectiva sobre a evolução do pensamento de Marx se modifique de maneira tão marcante? A razão não pode ser simplesmente que os MEGAs revelam um Marx desconhecido, porque, como vimos, o que mudou é a visão de Saito sobre as obras de Marx já publicadas, no que diz respeito à avaliação que fez delas em sua obra de 2017, La natureza contra el capital. Neste caso, não se trata de novos documentos que revelam algo diferente.

A principal razão que podemos encontrar nessa mudança de visão de Saito sobre a evolução das ideias de Marx é que ela lhe permite acentuar, por contraste, a virada feita nos últimos anos pelo teórico alemão. Os debates sobre a natureza desembocaram em leituras e rascunhos dos últimos anos de vida, ou na redefinição da comuna camponesa e seu provável papel na ruptura com o capitalismo nos países onde subsistiu, a partir sobretudo de suas trocas de cartas com revolucionários russos como a famosa resposta a Vera Zasulich, que Marx acabou não enviando [22], são alguns dos principais exemplos que Saito oferece dessa “ruptura epistemológica” – a referência a Althusser é explícita em Saito – que levou Marx a colocar o colapso metabólico no centro de sua teoria, que se tornaria a contradição fundamental desse modo de produção. Já em La natureza contra el capital, Saito criticou a pesquisadora Lucia Pradella por alertar contra “uma tendência agora influente nos estudos do MEGA, de buscar um ’novo Marx’” [23]]. É justamente esse “novo Marx” que para Saito há em seus últimos cadernos. Em Marx in the Anthropocene, essa posição é reforçada com mais ênfase. Fá-lo de forma um tanto contraditória, pois quase no final da digressão, admite que "Marx continuou claramente a acreditar que o desenvolvimento tecnológico no capitalismo fornece as condições materiais necessárias para o salto para o socialismo", ou seja, admite que em todo caso, a virada a esse respeito não foi tão pronunciada em Marx, além do fato de que ele imediatamente acrescenta que "seu método dialético o levou a enfatizar com mais veemência o lado negativo e destrutivo das tecnologias" [24]. Concordamos com este último, mas não é uma revelação nem uma virada do "novo Marx". De fato, em sua juventude, Marx criticou o prometeanismo de autores como Proudhon, algo documentado por John Bellamy Foster em A ecologia de Marx.

Como ocorre com as afirmações expressas por Saito a respeito de Engels, não há muita originalidade no que ele sustenta aqui, que repete centralmente o que muitas vezes foi dito sobre o exagero das rupturas no pensamento de Marx, sem muito fundamento (e que em alguns casos o próprio Saito refutou em seu primeiro livro).

Claro, isso não significa minimizar a importância da própria visão crítica de Marx sobre suas próprias ideias, e a correção a que foram submetidas em muitos casos. A sua perspectiva sobre alguns problemas, como a questão colonial, ou sobre o metabolismo entre o capital e a natureza, não se manteve inalterada ao longo da sua vida. Em La naturaleza contra el capital, Saito identifica claramente como Marx complexifica sua visão do problema das forças produtivas, introduzindo determinações mais concretas; entre outras, a especificação das “forças produtivas do capital”, que Saito considera relevante para enfatizar que o desenvolvimento das tecnologias nunca é neutro, ou categorias importantes como a cooperação e a subsunção real, que ainda não aparecem nos Grundrisse de 1857-58. Também é clara a reavaliação que Marx fez das sociedades asiáticas, que, em suas primeiras elaborações, amparadas em fontes errôneas – e talvez em alguns preconceitos dos quais gradualmente se livrou – consideravam tendentes à estagnação e à falta de evolução. Essa reavaliação da dinâmica das formações não capitalistas, aliada a uma visão mais profunda dos efeitos “desiguais e combinados” que a subsunção do capitalismo estava produzindo em todo o planeta, amalgamando relações de produção capitalistas e pré-capitalistas – como no epílogo da segunda edição de O Capital sustenta que na Alemanha “[n]ão só sofremos com os vivos, mas também com os mortos” [25] – permitiu-lhe vislumbrar a possibilidade de que algumas relações sociais não capitalistas, como a comuna russa (mir) poderia ser a base para uma transição para o socialismo sem passar pelo capitalismo. Essas conclusões alcançadas por Marx marcam uma mudança em relação às posições anteriores. Mas, por mais parciais ou problemáticas que sejam algumas formulações ou afirmações de Marx, que em alguns casos foram criticamente revistas e corrigidas ao longo de sua vida, elas não são suficientes para construir um “primeiro Marx” carregado de toda uma série de aspectos negativos. Marx foi um crítico mais enfático do colonialismo a partir do final da década de 1850, quando começou a levantar de forma mais contundente o papel desastroso da Inglaterra na Irlanda ou na Índia; mas essa mudança de ênfase não torna suas posições anteriores eurocêntricas. Mas todas essas modificações, em alguns casos importantes, não constituem a ruptura radical no pensamento de Marx que se afirma em Marx in the Anthropocene

Ao contrário de Saito, parece-nos que uma leitura sistemática e consistente das elaborações de Marx mostra que tanto na juventude quanto nos últimos anos, o revolucionário alemão apreendeu as potencialidades criadas pelo modo de produção capitalista, ao mesmo tempo em que foi capaz de de observar –ou na maioria dos casos adivinhar ou antecipar– suas derivações mais sombrias. A crítica imanente de Marx à modernidade capitalista sempre enfatizou a necessidade de reapropriar – o que também significa criticar e redirecionar ou reconfigurar – as forças produtivas do capital. Nem prometeísmo ou produtivismo sem mais, nem rejeição total. Além das evoluções ou aprendizados que podemos encontrar em Marx, é difícil comprovar que ele tenha abandonado essa tensão. Mais duvidoso, assim como extemporâneo, é pensar que Marx poderia ter abraçado um "comunismo decrecionista". Vejamos esta questão com mais detalhes.

Forças produtivas, fratura metabólica e comunismo

Antes de se aprofundar na noção de comunismo decrecionista, que encontra em Marx, Saito faz uma série de críticas muito pertinentes ao que identifica como uma retomada do pensamento utópico expresso por várias das propostas pós-capitalistas de autores como Aaron Bastani, Paul Mason, Nick Srnicek e Alex Williams, entre outros, que com suas diferenças entre si coincidem em enfatizar soluções tecnológicas para as contradições desse modo de produção.

… As ideias prometeicas mais uma vez têm uma grande influência na ecologia política. De fato, as ideias ecomodernistas tornam-se hegemônicas à medida que a crise ecológica se aprofunda. Agora, o desenvolvimento e aplicação de gigantescas tecnologias e ciência parece ser a única solução suficientemente rápida e em escala suficiente para enfrentar a grave ameaça de colapso climático [26].

Saito desmantela várias das falácias em que se baseiam as propostas pós-capitalistas. “O pós-capitalismo totalmente automatizado propaga uma esperança alternativa de que todos continuarão a dirigir SUVs eletrônicos, trocar de smartphone a cada dois anos e comer hambúrgueres de carne cultivada”, diz ele [27].

Saito aponta um paradoxo interessante, que é semelhante ao que também criticamos em outra ocasião a essas propostas pós-capitalistas. O autor afirma que

... escondido sob o tom otimista dessa visão tecnocrática está na verdade um pessimista ’realismo capitalista’, que sustenta que não há uma forte luta de classes para desafiar as relações sociais existentes e romper fundamentalmente com o modo de vida capitalista. As pessoas são privadas do poder de transformar o sistema, e é por isso que a tecnologia deve desempenhar um papel central no preenchimento do vazio deixado pela agência [28].

Daí, como dissemos em nossa crítica, o abismo insondável entre o horizonte do futuro que eles nos convidam a abraçar e as tarefas do presente imediato. Partimos de um olhar radical sobre as possibilidades inscritas na disrupção que já está em curso. Mas o jeito seria redobrar a aposta em estratégias “neorreformistas”. Entre o pós-capitalismo e o presente, o único roteiro claro é buscar reviver as políticas do Estado de bem-estar, com algumas inovações como a promoção de uma renda básica universal e outras medidas semelhantes, mas sem desafiar o poder do capital. Uma “invenção” do futuro que acaba por ser bastante nostálgica.

Saito conclui que essa visão produtivista do pós-capitalismo "acaba por endossar os padrões de valor capitalistas sob o disfarce de um grandioso projeto emancipatório de produção e consumo infinitos". Ele renuncia “à subjetividade revolucionária da classe trabalhadora e aceita a agência reificada das máquinas como sujeito da história” [29].

Agora, diante dessas propostas baseadas em um fetichismo tecnológico, que estratégia e perspectiva comunista podem ser colocadas em oposição? Saito, como previmos, afirma ter descoberto em Marx um "comunismo decrecionista". Um elo fundamental para estabelecer essa perspectiva teria sido seu estudo das comunas agrícolas pré-capitalistas durante seus últimos anos de vida.

A comuna, cuja história em toda a Europa – e também em formas não europeias – Marx traçou durante seus últimos anos estudando uma extensa bibliografia, teria revelado a ele como se sustentaram as formações sociais baseadas em um metabolismo equilibrado e racional entre natureza e sociedade, que se opunha à “fissura incurável” que o capitalismo tendia a produzir. O que caracterizava a comuna agrícola, e sobre o qual Marx pondera muito mais positivamente em sua avaliação madura do que em textos anteriores, era sua tendência à reprodução estacionária. Ou seja, essas sociedades se caracterizavam por uma reprodução em escala sempre mais ou menos semelhante, ao contrário do capitalismo com sua reprodução necessariamente ampliada para sustentar a acumulação de capital. Uma reprodução estacionária implica um metabolismo equilibrado, pois permite cumprir os ciclos de absorção de resíduos – o que também responde ao fato de não haver fratura entre o campo e a cidade – e de recuperação de nutrientes. Saito aponta que as respostas preliminares a Zasulich não foram uma expressão isolada, mas parte de uma reavaliação mais global da comuna agrícola.

Na década de 1880, Marx reconheceu que a estabilidade persistente das comunas sem crescimento econômico é a base subjacente para alcançar uma interação metabólica sustentável e igualitária entre humanos e natureza. Isso marca um forte contraste com os comentários negativos anteriores de Marx sobre o estado estacionário e a invariabilidade das comunas asiáticas na década de 1850 e até mesmo no Volume I de O Capital [30].

Embora já conhecêssemos a intuição de Marx sobre as possibilidades que, determinadas pela globalização capitalista em curso, poderiam surgir de um “desenvolvimento desigual e combinado” – embora ele mal pudesse intuir este conceito que Trotsky desenvolveria várias décadas depois – na Rússia, Saito o inscreve num quadro de reflexões mais amplo e profundo, e isso é novo e interessante. O mesmo pode ser dito da conexão que ele encontra entre as investigações que Marx desenvolveu sobre as sociedades pré-capitalistas e as das ciências naturais, abordando autores como Carl Fraas e também o já citado Liebig. A confluência das duas agendas em Marx demonstra, na opinião de Saito, o esforço que ele fez para pensar a "sustentabilidade" de uma futura sociedade pós-capitalista.

Saito afirma que o comunismo decrecionista é uma sociedade pós-escassez, ou seja, caracteriza-se pela abundância da riqueza. Mas é uma riqueza que não significa simplesmente mais bens materiais ou maior consumo per capita. Saito se baseia em uma discussão de Marx nos Grundrisse para apoiar outra noção de riqueza. Nesse rascunho de 1857, Marx declarou:

... se a riqueza é despojada de sua forma burguesa limitada, o que é a riqueza senão a universalidade das necessidades individuais, capacidades, prazeres, forças produtivas etc., criadas na troca universal? [E se não] o pleno desenvolvimento do controle humano sobre as forças naturais, tanto sobre as da assim chamada natureza quanto sobre sua própria natureza? [E se não] a elaboração absoluta de suas disposições criativas sem outro pré-requisito senão o desenvolvimento histórico prévio, que faz dessa plenitude total de desenvolvimento o objetivo, ou seja, o desenvolvimento de todas as forças humanas como tais, não medidas por um padrão pré-estabelecido? [O quê, senão uma elaboração como resultado] da qual o homem não reproduz em seu caráter determinado, mas produz sua plenitude total [31]?

O capitalismo, que se baseia na alienação entre a força de trabalho dos meios de produção, para a qual a primeira só acessa o consumo dos frutos da produção vendendo-se como mercadoria em troca de um salário, impõe uma noção restrita de riqueza. Nega qualquer possibilidade desse pleno desenvolvimento das potencialidades humanas. Saito observa que “Marx problematizou essa tendência do capital como o empobrecimento da riqueza social sob a acumulação de uma ’imensa coleção de mercadorias’” [32].

Marx também incorporou a noção de “riqueza natural”, igualmente ameaçada pelo desenvolvimento do capitalismo [33].

Saito observa que o capitalismo, que se caracteriza pela produção crescente de mercadorias (a forma como, como aponta Marx no início de O Capital, a riqueza "se apresenta" nesse modo de produção) e que é apresentado por seus apologistas como um produção locomotiva da abundância, caracteriza-se ao mesmo tempo por certas formas de produção da escassez. A escassez no capitalismo é diferente daquela das sociedades que o precederam, no sentido de que "é uma escassez social" [34].

Essa escassez social também é “artificial” porque a riqueza da riqueza social e natural era originalmente abundante no sentido de que era sem valor e acessível aos membros da comunidade. A escassez deve ser criada pela destruição total dos bens comuns, mesmo que isso crie uma situação desastrosa para muitos no sentido econômico e ecológico. Lauderdale forneceu casos em que os comestíveis foram intencionalmente desperdiçados e a terra arável foi desperdiçada deliberadamente, de modo que a oferta do mercado pudesse ser restringida para manter altos os preços dos alimentos básicos. Aqui se manifesta a tensão fundamental entre riqueza e mercadoria, e este é o “paradoxo da riqueza” que marca a peculiaridade histórica do sistema capitalista [35].

Para Saito, fartura de riqueza e o comunismo decrecionista podem ser compatíveis, pois é uma negação da riqueza no sentido restrito que o capitalismo permite. Trata-se de abrir um horizonte que possibilite alcançar a riqueza social e natural em sentido amplo, o que é negado pela mercantilização capitalista.

Superada a escassez artificial do capitalismo, as pessoas, agora livres da pressão constante de ganhar dinheiro com a expansão da riqueza comum, teriam uma opção atraente de trabalhar menos sem se preocupar com a degradação de sua qualidade de vida. [...] Sem a competição do mercado e a pressão interminável pela acumulação de capital, o trabalho de associação livre e a produção cooperativa poderiam reduzir a jornada de trabalho para apenas três a seis horas. Só assim as pessoas terão tempo suficiente para atividades não consumistas, como lazer, exercício, estudo e amor. Em outras palavras, é possível reduzir o escopo da necessidade não aumentando as forças produtivas, mas reabilitando o luxo comunitário, o que permite que as pessoas vivam de forma mais estável sem a pressão de serem subjugadas ao sistema de trabalho assalariado [36].

Saito tem razão quando aponta que uma crítica central de Marx ao modo de produção capitalista se encontra no empobrecimento que ele impõe à força de trabalho ao estabelecer uma relação alienada com ela, como mercadoria, e obrigando-a a se colocar à disposição serviço do capital para sustentar a roda constante de acumulação. A dinâmica da produção pela produção, que visa a extensão máxima possível ou socialmente tolerável do tempo de trabalho em busca da valorização, nega todas as possibilidades de desenvolvimento da riqueza social no sentido amplo enunciado na citação que reproduzimos acima dos Grundrisse. Da mesma forma, essa dinâmica devasta a riqueza da natureza. Lançar as bases para a recuperação de uma noção mais ampla de riqueza, que só pode se iniciar a partir da “expropriação dos expropriadores” capitalistas para iniciar uma reorganização da produção social com outros critérios, é um ponto nodal dos critérios de Marx.

Também é correto sugerir que Marx visava estabelecer um metabolismo equilibrado entre sociedade e natureza, como pode ser visto em O Capital:

Assim como o selvagem deve lutar com a natureza para satisfazer suas necessidades, para preservar e reproduzir sua vida, o mesmo deve acontecer com o homem civilizado, e deve fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis. Com seu desenvolvimento, este reino de necessidade natural se expande, porque suas necessidades se expandem; mas ao mesmo tempo as forças produtivas que os satisfazem são expandidas. A liberdade neste domínio só pode consistir no fato de o homem socializado, os produtores associados, regularem racionalmente o seu metabolismo com a natureza, colocando-a sob o seu controle coletivo, em vez de serem por ela dominados como por um poder cego; que o façam com o mínimo uso de forças e nas condições mais dignas e adequadas à sua natureza humana. Mas isso sempre permanece um reino de necessidade. Além dele começa o desenvolvimento das forças humanas, consideradas como um fim em si mesmo, o verdadeiro reino da liberdade, que no entanto só pode florescer nesse reino da necessidade como seu fundamento. A redução da jornada de trabalho é a condição básica [Karl Marx, O capital…, Tomo III, vol 8, ob. cit., p. 1044.]].

Embora Marx não tenha ido muito longe na prefiguração da sociedade comunista como tal, além dos esboços de como ele pensava sobre os primórdios da transição para ela, podemos concordar com Saito que ele a entendia como uma formação caracterizada por uma reprodução bastante estacionária. Ou seja, em oposição à sistemática reprodução ampliada que caracteriza o capitalismo. A economia do tempo de trabalho gasto na reprodução social, para conquistar o tempo livre, e não o aumento da produção, seria seu norte.

Dito isso, pode-se dizer que tudo o que foi dito acima é suficiente para afirmar a existência de uma noção de comunismo decrecionista em Marx? Tal como acontece com a "ruptura epistemológica" que Saito afirmava encontrar nos textos inéditos de 1868, também neste caso as evidências apresentadas não são suficientes para sustentar o caso. O que Saito reforça com suas indagações é que a visão comunista de Marx não era produtivista ou “comunismo de luxo automatizado”, como alguns pós-capitalistas a interpretam hoje. Algo que outros autores já haviam mostrado, mas que é bom reforçar.

Mas entender Marx como um comunista decrecionista é querer reescrever suas propostas à luz das discussões do século XXI e de acordo com as propostas em voga. Atualmente, embora dominem por um lado as posições de fetichismo tecnológico criticadas por Saito, também se generalizou a noção de que o “decrecionismo” é a única saída para a emergência climática. Como o próprio nome indica, o decrecionismo sustenta que a única forma de cumprir as metas de redução de emissões de gases e alcançar uma perspectiva sustentável é reduzir a escala de produção, alterando drasticamente os padrões de produção e consumo. Um aspecto problemático é que sua ênfase em um aspecto técnico ou em um objetivo econômico, em vez de visar as relações sociais, tende a torná-la uma afirmação abstrata. Resumir os debates sobre o decrecionismo ultrapassa os objetivos e possibilidades deste artigo, mas por ora digamos que nos parece que o decrecionismo, embora devido a sua abordagem tende inevitavelmente a colidir com os imperativos do capitalismo, e nesse sentido é incompatível com este A produção, porém, é uma abordagem que evita colocar as estratégias no centro da questão para dar uma resposta sistêmica. Muitos de seus expoentes nem são anticapitalistas, muito menos socialistas. Há até setores que adotam argumentos “decrecionistas”, em sentido neomalthusiano, argumentando que a emergência ecológica obriga a classe trabalhadora e os setores populares a “diminuir” suas aspirações, como se o consumo excessivo desses setores fosse a raiz do problema, sem afetar as prerrogativas da classe dominante.

Saito fala não apenas de decrecionismo, mas de comunismo, ligando-o a uma liquidação do regime capitalista liderada pela classe trabalhadora, o que distingue sua posição de muitos decrecionistas contemporâneos. A proposição do comunismo sem crescimento não é nova, já foi proposta por autores como Wolfgang Harich na década de 1970. A novidade de Saito é que ele não se limita a reivindicar essa posição como sua, mas "descobre" que Marx foi, em seus últimos anos, um comunista decrecionista.

Isso, além de anacrônico, nos parece que pode dar uma ideia distorcida dos problemas da transição para o comunismo como Marx os pensou. Saito não consegue provar que Marx deu indícios de ter reconsiderado profundamente as pistas que deixou em seus textos. Seria impressionante que o "novo Marx" que Saito afirma ter encontrado nos livros inéditos não tivesse avisado com mais clareza que estava fazendo uma reconsideração tão profunda de problemas tão fundamentais, se isso realmente tivesse acontecido. A pré-condição para chegar ao comunismo é cruzar o limiar do desenvolvimento desigual e combinado, legado pelo capitalismo. Isso significa que, ainda que de forma imediata, a classe trabalhadora no poder pode aplicar rapidamente o decrescimento a algumas produções completamente supérfluas que caracterizam esse sistema, e que se esforce ao máximo para colocar um freio de emergência nos desequilíbrios criados pelo capitalismo, buscando um equilíbrio. Ao mesmo tempo, serão impostos na transição esforços de investimento em infraestruturas sociais necessárias e adiadas em muitas áreas. Se pensarmos em nível planetário, com as desigualdades e distorções impostas pelo sistema imperialista, podemos ter uma ideia dos desafios dessa transição.

Embora, como dissemos, Saito esteja correto em muitas de suas críticas aos fetichistas das soluções tecnológicas, ele é unilateral ao descartar enfaticamente o papel que um maior desenvolvimento das forças produtivas pode desempenhar em uma sociedade comunista, na qual o metabolismo equilibrado com a natureza é um objetivo central. Saito tende a identificar qualquer aumento de produtividade com aumento do volume de produção e, como tal, rejeita-o, enfatizando que a abundância ainda pode ser alcançada diminuindo a produtividade. Mas Saito vira as costas para uma possibilidade importante, que é que novas tecnologias mais produtivas podem continuar a ser desenvolvidas em uma sociedade comunista, mesmo que nem sempre ela busque produzir cada vez mais como um fim em si mesma – como ocorre em capitalismo–, mas com o objetivo de produzir cada vez mais, aumentar o desempenho do trabalho para economizá-lo. Ou seja, certos desenvolvimentos tecnológicos podem ser aliados de uma sociedade que busca reduzir o trabalho necessário, desde que tenha sempre em mente o objetivo de manter uma relação racional ou equilibrada com o metabolismo natural. Nesse sentido vai a citação de Engels, sobre conhecer e aplicar as leis da natureza, que reproduzimos acima, que Saito menciona negativamente por considerar que contém uma ideia de "domínio" sobre o mundo natural.

Ao mesmo tempo, as "soluções tecnológicas" para os problemas ambientais que o capitalismo está deixando como legado para qualquer formação econômica social que o suceda, que podem ser falaciosas como estratégia de mitigação proposta pelo capitalismo verde para continuar crescendo desenfreadamente ou na que são confrontados pelos pós-capitalistas com seu fetichismo tecnológico, podem fazer parte do arsenal necessário em uma sociedade em transição para o comunismo. A tecnologia sozinha não pode ser confiável para resolver as convulsões do desenvolvimento capitalista; a tecnologia nunca é neutra, mas seus desenvolvimentos dependem da sociedade da qual fazem parte. Mas também não devemos virar as costas à possibilidade de introduzir, sob o controle de outras relações sociais baseadas no desenvolvimento pleno das pessoas e na busca do equilíbrio com o metabolismo natural, melhorias tecnológicas que vão no sentido de alcançar esses objetivos, ou reverter os ônus legados pelo capitalismo.

Por tudo isso, nem o comunismo nem a transição para ele, como pensou Marx e como devemos pensar hoje, podem ser reduzidos ao problema ou ao objetivo do "decrecionismo".

Para finalizar, digamos que apesar das críticas de Saito às correntes pós-capitalistas por seu “realismo capitalista”, o roteiro político que ele propõe não é muito diferente de fato. Em Capital no Atropoceno, Saito reivindica a experiência do municipalismo do governo de Ada Colau Ballano, que desde 2015 chefia a prefeitura de Barcelona, ​​que alcançou com a formação da coalizão Barcelona en Comú (BC) com a confluência de Iniciativa per Catalunya Verds, Esquerra Unida i Alternativa, Equo, Procés Constituent, Podemos e a plataforma Guanyem. Para Saito, a Comissão de Emergência Climática é exemplar pela ampla participação de inúmeras organizações nas deliberações e desenvolvimento de propostas. Em outras palavras, um dos projetos neo-reformistas mencionados acima. Saito menciona neste livro a necessidade de “expandir a democracia para fora dos parlamentos, expandindo o escopo do comum até atingir a dimensão da produção”; o último não seria alcançado por "expropriar os expropriadores" capitalistas, mas por meio de "cooperativas, propriedade social ou cidadania" [37] todas as questões que aparecem como a criação de espaços "comuns" sem uma ruptura do regime capitalista e seu Estado, mas como processos que ocorrem dentro de sua estrutura. Embora se mencione a importância de atingir o campo da produção, isso não parece estar relacionado a uma estratégia de hegemonização da classe trabalhadora em uma perspectiva de profundas transformações, mas a ênfase aparece nas "assembléias cidadãs" e outras iniciativas semelhantes para "renovar" a "democracia parlamentar" em combinação com o municipalismo personificado por exemplos como Barcelona en Comú. Ou seja, o mesmo “realismo capitalista” que ele criticava parece permear a perspectiva de Saito.

Comentários finais

Além das controvérsias que levantamos, Saito incorpora novos elementos sobre a visão de Marx sobre o metabolismo entre sociedade e natureza sob o capitalismo, e também sobre a reformulação das noções de riqueza, social e natural, envolvidas em sua perspectiva comunista. Ainda que em sua busca por um “novo Marx” faça algumas leituras questionáveis ​​e possa exagerar algumas constatações, é uma obra estimulante que contribui com questões candentes para se discutir uma perspectiva ecossocialista hoje.


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FOOTNOTES

[1Aqui no Brasil essa obra foi lançada pela Boitempo como O ecossocialismo de Karl Marx: Capitalismo, natureza e a crítica inacabada à economia política

[2Kohei Saito, Natureza contra o capital. O ecossocialismo de Karl Marx, Buenos Aires, Ediciones IPS, 2023, p. 18.

[3Ibídem, p. 77.

[4Ibídem., p. 109.

[5Ibídem, p. 95.

[6Foster, John Bellamy, A Ecologia de Marx. Materialismo e natureza, Buenos Aires, Edições IPS, 2022, entre outros.

[7Karl Marx, O Capital. Crítica da economia política. Volume 3, vol 8, México, Siglo XXI, 1981, p. 1034.

[8Kohei Saito, Marx in the Anthopocene. Towards the Idea of ​​Degrowth Communism, Cambridge, Cambridge University Press, 2022, p. 119.

[9Ibídem, p. 123

[10Ídem

[11Citado por Saito em Ibídem, p. 35

[12Ibídem, p. 47

[13Ibídem, p.48

[14Ibídem, p. 82.

[15Ibídem, p. 55.

[16Ibídem, p. 56

[17Ibídem, p. 57

[18Liebig, citado em Ibídem, pp. 56-57.

[19Ídem

[20Citado por Saito em Ibídem, p. 53.

[21Ibídem, p.56

[22Em 1881, Marx escreveu um rascunho de resposta a Vera Zasulich, então membro do grupo Naródnaia Volya (Vontade do Povo), que pediu sua opinião sobre o papel que a comuna camponesa poderia desempenhar na revolução russa. Nos rascunhos que Marx finalmente não enviou, considerou que, em confluência com a revolução operária e socialista na Europa, a comuna russa poderia ser um veículo para que o reino dos czares chegasse diretamente ao socialismo, evitando a tortuosa passagem pela acumulação primitiva capitalismo que havia atravessado a Europa Ocidental.

[23Citado em Kohei Saito, La naturaleza…, ob. cit., p. 304.

[24Kohei Saito, Marx in…, ob. cit., p. 138.

[25Karl Marx, O capital. Crítica da economia política, Tomo I, Vol 1, México, Siglo XXI editores, 1975, p. 7.

[26Kohei Saito, Marx in…, ob. cit., p. 137.

[27Ibídem, p.160

[28Ídem

[29Ídem

[30Ibídem, p. 208

[31Karl Marx, Grundrisse. Elementos fundamentais para a crítica da economia política], México, Siglo XXI Editores, 1971, p. 447-448.

[32Kohei Saito, Marx in…, ob. cit., p. 222.

[33Ídem

[34Ibídem, p. 226

[35Ídem

[36Ibídem, p. 234

[37Kohei Saito, El capital en el antropoceno, Barcelona, Penguin Random House Grupo Editorial, 2022, p. 302.
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Esteban Mercatante

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