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SEMANÁRIO

Leninismo às avessas

André Barbieri

Leninismo às avessas

André Barbieri

Um sincericídio autocondenatório. Valério Arcary, do Resistência/PSOL, exibe uma amargura cada vez mais intolerante à independência de classes. Está perdido no próprio labirinto reacionário, de alguém desesperado por vestir com farrapos de marxismo a condenação de qualquer estratégia socialista independente, que busque reordenar o tabuleiro político em termos de luta de classes.

A vida política para Arcary se reduz ao voto, e nessa dimensão, a salvação contra os “movimentos de inspiração neofascista” vem do apoio eleitoral a qualquer fração burguesa que se autointitule “democrática”, por mais neoliberal que seja. É isso que vemos em seu mais recente ataque à esquerda argentina - em especial ao PTS, setor majoritário da Frente de Esquerda Unidade (FITU) - , que nas palavras do próprio Arcary é “o melhor da esquerda marxista mundial”. O motivo é ainda o das eleições presidenciais de 2023, que deram a vitória a Javier Milei. Sobram acusações de abstencionismo e sectarismo ao PTS, uma vez mais caricaturizado como uma espécie de responsável pelo triunfo mileísta. A lição que Arcary tira de sua desastrada alusão à Revolução Russa é que…se deveria ter chamado voto em Sérgio Massa, o neoliberal, pró-imperialista e amigo dos sionistas que foi candidato do peronismo, apoiado pelo Resistência.

Pretendendo ser o campeão do combate à extrema direita, Arcary favorece toda política reformista ou nacionalista burguesa que colaborou com seu ascenso nos últimos anos. Dizendo se opor à idealização da estabilidade dos regimes democráticos, semeia todas as ilusões nos mecanismos e instituições da democracia liberal que foram e são as incubadoras da extrema direita. Tudo está sempre a serviço do apoio ao governo de conciliação Lula-Alckmin, de que o PSOL é parte, compartilhando a Esplanada dos Ministérios com bolsonaristas do PP e do Republicanos de Tarcísio de Freitas. Fato é que essa campanha permanente de adaptação visceral a uma ala dita “democrática” das forças burguesas busca se cristalizar num fantasioso leninismo das frentes amplas, oposto ao leninismo historicamente existente, que luta pela hegemonia dos trabalhadores contra a burguesia.

Quem enfrenta Milei, e quem lhe dá governabilidade?

É preciso ter um prazer pelo ridículo para, em abril de 2024, ainda repercutir uma fórmula já tradicional da burguesia peronista contra a esquerda, usada para esconder seu próprio papel em fortalecer a extrema direita. Sérgio Massa, candidato apoiado pelo Resistência e pelo MES/PSOL em outubro, foi derrotado por 12% de diferença, o que contabiliza 4,7 milhões de votos. Trata-se de um rechaço de massas indeclinável ao governo catastrófico de Alberto Fernández, Cristina Kirchner e Sérgio Massa. No âmbito do programa econômico, Milei radicalizou o programa que estava sendo levado adiante pelo governo peronista-kirchnerista: subordinação ao FMI, congelamento de salários e aposentadorias, ajustes, preparação de uma nova reforma trabalhista, aumento nas tarifas dos serviços públicos e desvalorização da moeda. Massa chegou a desvalorizar o peso em 22% depois do 1º turno das eleições. Em uma medida decisiva, esse programa do peronismo-kirchnerismo não apenas abriu caminho à extrema direita, mas garantiu que Milei triunfasse com o discurso da “novidade” (que não era nada mais que o da guerra ultraliberal contra a população pobre). Mas, como ouvimos, não ter chamado voto em Massa seria “antileninista”... Em termos diretos políticos, isso diz muito sobre a orientação atual da Resistência. Em nome de “enfrentar a direita” (eleitoralmente), não se perturba em aprovar uma variante brutal do ajuste econômico contra as massas trabalhadoras e populares.

Uma observação pertinente: essa posição não é adotada apenas no plano internacional, no qual essa corrente não existe. No Brasil, o Resistência é entusiasta do governo Lula-Alckmin, do qual é parte, quando este vem perdendo apoio em função dos ataques econômicos operados, como o Arcabouço Fiscal neoliberal de Lula-Haddad, que significa submeter o reajuste do funcionalismo público às metas fiscais - pressionando o reajuste zero em 2024 - contra o qual vemos greves de professores nas redes públicas de ensino, nas universidades e institutos federais. O próprio PSOL enfrenta uma greve em Belém, governada pelo seu prefeito Edmilson Rodrigues, opondo-se ao reajuste e melhores condições laborais exigidos pelos trabalhadores. No Ceará, a diretoria do sindicato dos professores estaduais, que o Resistência compartilha com PT e PCdoB, buscou impedir a deflagração de greve contra o governo estadual petista. Os professores se insurgiram contra tal decisão. Restou ao sindicato composto pelo Resistência/PSOL chamar de “criminosos com práticas de banditismo” os professores que querem lutar.

Arcary não consegue explicar que tipo de enfrentamento à extrema direita é esse. Diz que vem de uma geração que não idealiza a estabilidade dos regimes democráticos. A pior ilusão na estabilidade da democracia liberal é separar o econômico do político, e ignorar que o autoritarismo bonapartista - inclusive do Judiciário - se alimenta dos ajustes econômicos aplicados (e preservados), com a cumplicidade de certa esquerda.

Voltando à Argentina, vale perguntar: o tempo parou nas eleições de 2023, ou Arcary padece de uma séria síndrome de “realidade seletiva”? O que aconteceu com o peronismo desde então? Descartada a hipótese de que tenha perdido acesso à internet, Arcary não pode ter deixado escapar que Cristina Kirchner abraçou sorridente Javier Milei durante a posse presidencial, em sinal de defesa da “paz social”. Provavelmente deve saber que, leal a isso, Cristina desincentivou junto a Sérgio Massa as manifestações de rua contra a Ley Ómnibus nos dias 20 de dezembro - em que o PTS e a esquerda tiveram um papel fundamental, abrindo caminho aos panelaços e ao primeiro embate ao governo - e 24 de janeiro (paralisação nacional imposta às centrais burocráticas). E não deve ignorar que, em longa carta oficial depois de dois meses em silêncio, propôs um sistema de acordo parlamentar com a extrema direita, além de uma “atualização laboral” (leia-se reforma trabalhista) que acomodasse os anseios de Milei. Arcary sabe disso, ou ao menos deveria saber, não?

Pouco importa: depois de dizer que o peronismo “cometeu um erro de estratégia política fatal ao descartar Cristina” (que foi a fiadora dos ajustes de Massa e dos acordos de Fernández com o FMI), Arcary não se deu ao trabalho de revisar sua entrega aos encantos do neoliberalismo progressista. Não por outro motivo é membro do PSOL, que em resolução do Diretório Nacional abriu a possibilidade de selar acordos políticos com partidos de direita para as eleições municipais, dentre os quais podem figurar o PSDB, o MDB e outros mais (além dos partidos burgueses que já aceita, Rede e PSB).

Apesar da única unidade métrica da vida que importa a Arcary, o calendário eleitoral, ter cumprido seu curso em outubro, algumas coisas se passaram até aqui em 2024. Qual foi o papel dos peronistas no parlamento? Cumprir à risca o sistema de acordo parlamentar que Cristina ofereceu a Milei. Apesar do fato de que a Ley Ómnibus acabou caindo quando o governo retirou o projeto de lei - com grande efeito dos combates de rua desprezados pelo peronismo-kirchnerismo - muitos governadores peronistas compartilharam e apoiaram grande parte do plano central de Milei, como o governador de Tucumán, Osvaldo Jaldo, que impôs aos deputados peronistas da província o apoio ao ajuste ultraliberal. Isso sem falar que Daniel Scioli, candidato a presidente pelo peronismo em 2015, foi consagrado Ministro do Turismo de Milei. Como afirmou Christian Castillo, deputado federal do PTS na FITU, ao analista político argentino Diego Genoud,“Milei é filho das políticas pró-FMI que o peronismo aplicou em quatro anos, e avança porque o peronismo lhe dá bastante espaço”.

A luta na Argentina está apenas começando. Há problemas estruturais que não estão resolvidos, com a alta da pobreza, elevação da inflação, a subordinação aos ajustes do FMI. Existe inconformismo em setores de massas ante a precariedade e a miséria. Não estamos diante de ações históricas independentes de massas, tendo as mobilizações a influência controladora do peronismo. Da mesma maneira, não estamos diante de um triunfo acabado de Milei, que tem grandes dificuldades em estabilizar o país, com seu plano refundacional para converter a Argentina em um país sojeiro e extrativista, atacando todos os direitos dos trabalhadores. A dinâmica vai ser decidida na luta. A relação de forças não é um dado estatístico fixo, imutável; deve servir de ponto de partida para que uma organização revolucionária intervenha para mudá-la a favor dos trabalhadores.

Então, qual é o objetivo de Arcary em exercitar o “eterno retorno” nietzschiano a outubro de 2023? Esconder o papel da esquerda, a força política que de fato enfrentou intransigentemente, no parlamento e nas ruas, a extrema direita, e que incrementou seu reconhecimento nacional nos últimos meses. O PTS mobilizou suas forças, junto à Frente de Esquerda e setores do sindicalismo combativo, das organizações de direitos humanos e movimentos sociais, no 20 de dezembro para enfrentar Milei e o criminoso “Protocolo Anti-manifestação Social” de Patricia Bullrich, quando o peronismo chamou a não mobilizar. Na paralisação nacional do 24J, convocada de maneira controlada pelas burocracias, participou exigindo um plano de luta rumo à greve geral contra o governo. Impulsionou na medida de suas forças as assembleias de bairro, organismos de autoorganização e coordenação da luta, que buscam unificar as estruturas econômicas com os moradores das regiões, que combateram a repressão de Bullrich, tiveram feridos, e se temperaram na batalha. O PTS esteve presente também nas greves e mobilizações operárias contra os ajustes, como a importante luta dos trabalhadores aeroviários contra a privatização das Aerolíneas Argentinas. Esse ponto de apoio na luta de classes, organicamente vinculado à vanguarda, repercutiu no crescimento do peso parlamentar da esquerda. Nunca antes na história argentina a esquerda trotskista teve uma participação tão grande no cenário nacional. A chegada de Myriam Bregman às redes, por exemplo, está no nível dos principais políticos do país e, junto com Nicolás del Caño, possui um conhecimento que ultrapassa 80% da população. Com 800 mil votos nas presidenciais, e cerca de 1,4 milhão nas legislativas, a esquerda é uma força minoritária, mas significativa na vida política argentina, proporcionalmente muito maior do que o PSOL no Brasil (sem falar na incomparável organicidade em setores da vanguarda).

Como diz Emilio Albamonte, “é a primeira vez que o trotskismo forja política e ideologicamente um setor com o qual depois converge na luta de classes”. A novidade é que os eleitores da FITU estão começando a se tornar politicamente ativos, e começam a se aproximar da esquerda. Ainda são contingentes pequenos, mas estão se aproximando da esquerda por meio da sua agitação política, dos discursos de Myriam Bregman, Del Caño, Christian Castillo, Vilca. Há um estado de ânimo propício para engajar-se ativamente nas assembleias de bairro. Isso pode ser um ponto de apoio na luta contra os ajustes.

Arcary precisa tentar esconder isso. Porque a hipótese estratégica do crescimento de uma esquerda revolucionária na América Latina é um choque demasiado direto à adaptação reformista do PSOL a um governo Lula-Alckmin que preserva a reforma trabalhista e da previdência, aplica um ajuste fiscal neoliberal, faz elogios amistosos com o sucessor de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas, sela uma segunda anistia com os militares rejeitando o direito à memória das vítimas da ditadura, ou elabora projetos de lei que legalizam a escravidão da uberização do trabalho. A degradação bonapartista das democracias ocidentais se dá justamente pela adoção cada vez maior da agenda da extrema direita por parte do neoliberalismo progressista - mais neoliberal que progressista, diga-se de passagem. O curso à direita do governo Lula-Alckmin, abandonando em boa medida inclusive a demagogia diante dos valores de esquerda, é patente. Esse deveria ser um alerta para toda a esquerda. O lulismo senil nesse regime degradado aceita a herança do golpe institucional e dos governos da direita que o antecederam. Com isso, está incubando uma nova direita com sua própria linha de conduta. Não há nada predeterminado na história. Reverter o curso da escalada autoritária não depende do apoio político às variantes não extremistas de um ajuste brutal, e sim na oposição dos métodos da luta de classes ao conjunto dos ataques dos capitalistas.

A luta na Argentina pode ter uma influência sumamente benéfica sobre o combate à direita no Brasil. Por que esse fator deve ser colocado de lado? Mais que isso, pode dar uma nova perspetiva à esquerda latinoamericana. Na Argentina, a esquerda trabalha estrategicamente para a superação do peronismo para fazer emergir uma força socialista revolucionária. No Brasil, Arcary e o PSOL trabalham para que o PT siga sendo a tumba da esquerda e dos movimentos sociais. Não se pode enfrentar a direita de verdade com a esquerda de mentira.

Mais uma vez sobre o “neofascismo”

Com a compreensão do caso argentino, é mais fácil entender o que está politicamente em jogo. Arcary reza novamente o mantra de que o principal critério é reconhecer o “perigo real e iminente de vitórias de movimentos inspirados pelo neofascismo”. A extrema direita vem ganhando força em muitos países, fruto da crise capitalista, e apresenta ameaças graves aos trabalhadores. É evidente que uma política de esquerda deve não só reconhecer, como combater, a extrema direita que se fortalece no mundo. O caso da esquerda argentina é um exemplo categórico de como fazê-lo. Entretanto, o que nunca se vê na política do Resistência é a crítica às forças políticas reformistas e nacionalistas burguesas ditas “democráticas”, nem mesmo quando são governo. Apoiam recorrentemente os partidos nacionalistas-democráticos ou frentes amplas burguesas como instrumentos de combate à extrema direita, e no único lugar em que essa organização existe, no Brasil, são parte do governo de Frente Ampla. A verdade é que, em todo o ciclo político dos últimos dez anos, essas forças nacionalistas e frentes amplas burguesas abriram caminho à direita: em Portugal, na Hungria, na França, entre outros. Os neorreformistas europeus do Syriza e do Podemos, ao levarem adiante o “antiautoritarismo dentro dos marcos do capitalismo”, fortaleceram o Aurora Dourada e o Vox na Grécia e no Estado espanhol.

Isso é assim porque tais partidos oferecem amplo espaço para a demagogia da extrema direita. Nas Teses de Lyon (1926), Gramsci considerava que os autointitulados partidos democráticos da burguesia são um dos mais firmes pilares da ordem capitalista e, como tais, compartilham o poder alternadamente com os grupos reacionários, quando estes partidos estão ligados a estratos importantes da classe trabalhadora, ou quando é iminente um grave perigo reacionário. Diante disso, o marxista italiano considera fundamental levar adiante uma luta consequente pelas liberdades democráticas contra os partidos ditos democráticos da burguesia, a fim de “desmascará-los ante as massas e fazerem com que percam sua influência sobre elas”. Para alguém tão orgulhoso de não ter ilusões na democracia liberal, deveria ser um choque entender que colaborar com esses mesmos pilares políticos da democracia liberal em crise, que oxigenam as forças autoritárias de extrema direita, não tem nada de marxista.

Dentro disso, a terminologia do “neofascismo” é um espantalho conceitual que busca obscurecer o papel trágico das forças nacionalistas e reformistas burguesas em alentar a extrema direita. As chamadas "novas direitas" estão geralmente à direita dos liberais e conservadores tradicionais, mas estão integradas à estrutura do consenso neoliberal. Elas surgem no contexto do agravamento da crise do “extremo centro”, assim como no outro extremo do espectro político - e mais moderado do que suas contrapartes de direita - ocorreu o desenvolvimento do neorreformismo e do "populismo de esquerda". Isso é assim porque o sistema capitalista não consegue encontrar vias para recuperar seus níveis de acumulação prévios à crise de 2008. É claro que, na base social tanto de Trump, quanto de Milei e Bolsonaro, encontramos setores com ideologia fascista ou fascistóide. Diante de um acirramento da luta de classes, eles podem ser a base para o desenvolvimento de movimentos fascistas mais amplos e, com uma derrota da classe trabalhadora, dar origem a novos governos fascistas no século XXI. Mas, como dissemos em outras oportunidades, o que se expressa hoje, em termos de governo e regime, são variantes de governos bonapartistas débeis na estrutura de regimes democrático-burgueses com características cada vez mais autoritárias.

A ideia de etiquetar qualquer fenômeno de extrema direita de “fascismo” ou “neofascismo” é geralmente usada por forças neorreformistas ou populistas de esquerda a fim de reduzir as aspirações das massas, desmobilizar qualquer esforço de combate (“a relação de forças reacionária não permite”) e folclorizar a luta de classes como um fator utópico, inexistente. Nesse quadro, só nos restaria aceitar todo tipo de acordos com forças burguesas, seus planos de ajuste ou interesses imperialistas, em busca de um “mal menor”. Não existe um “neofascismo” (mais pacífico) que tenha substituído o fascismo “clássico” (de guerra civil). A possibilidade desse último ainda está à nossa frente, assim como a da revolução.

Tratar as coisas como “neofascismo” é desarmar a preparação para os cenários mais graves que podem se dar na dinâmica entre revolução e contrarrevolução. E isso, numa política que desprestigia ao máximo a tarefa preparatória da construção de um partido revolucionário independente, algo pelo qual o PTS e as organizações que são parte da Fração Trotskista batalham diariamente.

Nessa equação, o que fica sempre de fora é a luta de classes e seus métodos, como a frente única operária e a batalha pela auto-organização. Em outras palavras, a luta pela unificação do conjunto dos trabalhadores no terreno da ação contra o conjunto da burguesia, em aliança com as mulheres, os negros, a juventude e os povos oprimidos. Esse é o método elaborado pela direção de Lênin e Trótski na Internacional Comunista, já que, se do que se trata é derrotar a extrema direita (nem dizer se estivéssemos diante de um fenômeno fascista), o decisivo é o conflito aberto entre classes. Criticando a política dos socialistas e stalinistas da Áustria, que propugnavam a aliança com as “forças antifascistas” nacionais contra Hitler, Trótski dizia: “Toda sua política se baseia na seguinte idéia: o principal inimigo dos trabalhadores austríacos e russos é Hitler. Portanto, a primeira tarefa é golpear Hitler. Por isso é necessário que o proletariado se alie às ‘forças antifascistas’, um termo vergonhoso que inclui a burguesia ‘democrática’ dentro e fora da Áustria. Logicamente, esta aliança não pode ser formada sem o adiamento da luta de classes. A aliança do proletariado com a burguesia é inconcebível em qualquer outra base. Mas, como mostramos, esta política facilita a vitória dos nazistas”.

Essa lógica do “inimigo principal”, contra a qual Trótski argumenta, é muito semelhante à de Arcary. Lamentavelmente, a realidade é mais complexa que certos esquemas dogmáticos. Afinal, se deveria ter aprendido melhor com Lênin.

Um “leninismo das frentes amplas”?

Uma última observação. Não é a primeira vez que Arcary escolhe perder todas as proporções, e reduzir os acontecimentos da Revolução Russa a anedotas comparáveis com um processo eleitoral (o alvo preferido é o levante de Kornilov em agosto, convertido na fantasia de uma alegre confraternização política dos bolcheviques com Kerensky “contra a direita”). A frente única operária que se deu no interior dos sovietes se transforma, como por mágica, em uma frente política com Kerensky. Assim, tudo se confunde de maneira atrapalhada, e acabamos nos deparando com o voto em Sérgio Massa como conclusão do “empirismo leninista”.

Lênin foi quem construiu o bolchevismo para acabar com a hegemonia da burguesia liberal sobre o campo. A luta à morte contra o menchevismo esteve vinculada ao combate sem quartel a qualquer tipo de apoio político à burguesia. Contra Kornilov, a política de Lênin foi a frente única entre as massas trabalhadoras e camponesas, mesmo as que apoiavam o governo, contra o levante militar, ao mesmo tempo em que castigava politicamente Kerensky e o governo provisório, explicando ao povo sua “incapacidade, fraqueza e vacilação” na luta contra Kornilov. Arcary cita uma carta de Lênin ao Comitê Central dos bolcheviques, de 30 de agosto de 1917, sobre esse momento específico de conflito com Kornilov. “Esquece” de incluir na citação uma parte decisiva, que depõe contra seu apreço às frentes amplas. Diz Lênin: “Formar um bloco com os socialistas revolucionários, sustentar o governo provisório, supõe o erro mais crasso ao mesmo tempo em que dá prova de uma falta absoluta de princípios [...] Sequer agora devemos apoiar o governo de Kerensky. Seria faltar com os princípios. Alguém fará uma objeção: não será preciso combater Kornilov? Claro que sim; mas entre combater Kornilov e apoiar Kerensky existe um limite, e este limite o ultrapassam alguns bolcheviques caindo no ’conciliacionismo’, deixando-se arrastar pela torrente dos acontecimentos”. Sem dar nenhum apoio político a Kerensky, chamaram a combater Kornilov, armando o proletariado através das guardas vermelhas.

Fato é que Arcary vem sugerindo há algum tempo haver pouca esperança para as revoluções socialistas na nossa época, questionando o protagonismo do sujeito proletário, indicando “processos revolucionários em duas ondas” (a semietapista teoria da revolução democrática, de Nahuel Moreno) sem se refrear em falar da possibilidade de “uma passagem pacífica e democrática ao socialismo”. Aflições kaustkyanas, como discutimos certa vez. Não admira, portanto, que nessa ocasião de ataque à esquerda argentina nosso autor apresente uma separação entre Lênin e Trótski, os dois dirigentes da Revolução de Outubro.

Batendo na tecla de que o “neofascismo” aparece mesmo sem o perigo de ascensos revolucionários à burguesia, diz: “Não será que agora deveríamos abrir a cabeça e arejar a mente, ou seja, abraçar um saudável empirismo leninista? Trotsky apreciava demais as fórmulas e modelos teóricos. Lenin era mais lento em retirar conclusões e cuidadoso com as previsões”. Se não podemos lutar com a mesma intensidade em todas as frentes, conclui perguntando “um leninismo para o nosso tempo não deve priorizar a emergência da luta contra a extrema-direita?”.

Não seria a primeira vez que, na história do movimento operário, correntes tentam opor o “saudável empirismo leninista”, concreto, do “apreço às fórmulas” por parte de Trótski. Sabemos onde isso levou. Separar Lênin e Trótski, entretanto, é uma necessidade quando se quer revisar a história e criar “algo novo”, um fantasioso “leninismo das frentes amplas”. Um leninismo que abandona a luta anticapitalista e revisa a estratégia da revolução socialista, alegadamente em nome de “enfrentar a extrema direita”. Na difícil posição do Resistência, deve ser contagiante a ideia de misturar Lênin com Lula-Alckmin, leninismo com a integração a um governo burguês de conciliação de classes. Em verdade, mostra quão lamentável é a tentativa de erguer um leninismo às avessas no Brasil.

O leninismo que enfrenta a extrema direita é aquele que não colabora com o neoliberalismo progressista das frentes amplas burguesas. Aliás, valha a obviedade! esse é o único leninismo de que se pode falar, quando não estamos dominados pela vertigem.


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André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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