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Libelu: quando o trotskismo encontra a contracultura

Luno P.

Libelu: quando o trotskismo encontra a contracultura

Luno P.

Os processos de luta de classes que rompiam a arena mundial durante toda a década de 50 e 70 produziram um caldo disruptivo e um sentimento geral na juventude de profunda contestação à exploração capitalista e ao conservadorismo.

1. Contra a camisa de força do stalinismo na cultura

A juventude das décadas de 50 e 70 foi moldado sob a panela de pressão da luta de classes, onde chiava o calor intenso da Revolução Chinesa, da Revolução Boliviana, da Revolução Cubana, de Stonewall e do Maio Francês, com os ascensos de massa dando novas caras ao “ser jovem”. E como parte desta convulsão política internacional, crescia o questionamento à burocracia stalinista, contra o restauracionismo capitalista nos estados operários e em defesa do socialismo, com a juventude e os trabalhadores à frente, como na Alemanha Oriental em 53, Hungria em 56 e a Primavera de Praga em 68. Já no Brasil, vivíamos um processo de ascensão da luta de classes, das ligas camponesas, greves operárias e uma agitação na juventude que colocaram o país de ponta cabeça, mas que culminaram no golpe de 64 e na ditadura militar pela derrota construída pela política das direções de massa, como era o PCB na época.

Um cenário assim, deu espaço para o surgimento de novas experiências no campo cultural, o que não poderia ser diferente, com a arte cumprindo um papel de sismógrafo das instabilidades sociais profundas, de expressão de mudanças. Nascia a contracultura, dando seus primeiros passos com a Geração Beat, o movimento hippie, Woodstock, ao som de Jimi Hendrix e Janis Joplin, os festivais de Rock e posteriormente o movimento Punk. No Brasil, tínhamos o CPC da UNE, o Cinema Novo, Tropicália, Tim Maia, o aflorar do sentimento “é proibido proibir”, os bailes black brasileiros, etc.

Mas se de um lado, a juventude enraivecida com a desilusão por um futuro capitalista de melhores condições de vida que nunca chegou a acontecer queria mudar as normas comportamentais estabelecidas, pisando sobre o conservadorismo autoritário das fardas militares, das botas bem lustradas e da hipocrisia da igreja e sua “moral e bons costumes”, de outro, o stalinismo e suas matrizes (como os maoístas e guerrilheirismos) se juntava as forças conservadoras, com a sua defesa da estética nacional-popular, inspirada no realismo socialista.

Tão torpe suas concepções que o medo (mais propriamente a falta de) que tinham das alianças com a burguesia não era ⅓ do medo e ojeriza que nutriam em relação ao fantasma do imperialismo no som das guitarras elétricas, no funk, soul e rock, que viam como alienantes e despolitizados, contrapondo com o samba de raiz e a canção de protesto. Mas para a juventude que experimentava a arte num pleno aflorar no interior de convulsões da realidade, Chico Buarque e The Rolling Stones não eram antagônicos.

Mas se dentro dessas concepções havia um combate direto e aberto contra estas novas expressões da juventude, o mesmo não se via em relação à ditadura. Organizações como o PCB e PCdoB limitavam as consignas da luta apenas à defesa das “liberdades democráticas”, defendendo que levantar a bandeira de “abaixo à ditadura” nas ruas significava atrair mais repressão dos militares como em 1968.

2. O nascimento da Liberdade e Luta

É neste contexto que nasce a Liberdade e Luta, mais conhecida hoje como Libelu. Uma corrente do movimento estudantil brasileiro nascida e forjada a partir da experiência da greve da Escolas de Comunação e Artes da USP, ocasionada pelo assassinato de Wladimir Herzog. Uma corrente que se reivindicava trotskista e era o braço da OSI (Organização Socialista Internacionalista) no movimento estudantil. Essa foi a corrente da qual Paulo Leminski escreve o poema “Para a Liberdade e Luta” e a IstoÉ dedica em 1979 a capa de sua revista para desvendar o “charme de ser Libelu”, e que foi responsável por popularizar a consigna do “abaixo a ditadura”, rompendo com o guerrilheirismo que era o padrão da esquerda brasileira. E fez isso em grande estilo, na defesa da aliança operária-estudantil e de um Partido Operário Independente (ambos nunca chegaram a se concretizar) enquanto grande parte da esquerda se mantinha dentro do MDB em 1978.

Esta radicalidade da Libelu marca seu nome na história do movimento estudantil brasileiro e dos combates centrais da juventude contra a ditadura. Uma radicalidade que não era só na política, mas também no campo das ideias sobre arte e cultura. Com o Literatura e Revolução de Trotsky, os textos surrealistas de Breton, junto dos clássicos marxistas embaixo do braço, os libelus entoavam em sua prática política o que concluía o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente: "o que queremos: a independência da arte para a revolução. A revolução, para a libertação definitiva da arte". É essa subversão que caracteriza a possibilidade do encontro entre o trotskismo e a contracultura, e que guiou a juventude Libelu na sua atuação cotidiana, como aponta Rubens Machado Júnior, hoje professor da ECA-USP, no seu texto Picadinho de Libelu à la carte, sem pimenta, pouco sal:

“o Literatura e revolução que, traduzido no Brasil em 1969, foi adotado, por exemplo, como um dos dez livros obrigatórios no curso de Teoria Literária do Antonio Candido na usp; onde Valentim Facioli preparava um livro sobre o manifesto mexicano e a recepção das ideias de trotskistas na arte brasileira, incluindo textos de Mário de Andrade, Pagu, Geraldo Ferraz, Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Edmundo Moniz.[...] Líamos (em castelhano, sobretudo) textos xerocados e mimeografados que editávamos em coletâneas grampeadas e vendidas nos Centros Acadêmicos, lado a lado artigos de Lukács, Benjamin, Adorno, Biñuel, Vertov, Godard, Jerry Rumin, Caetano Veloso, John Cage, Antonio Risério, Luiz Rosemberg Filho”
(MACHADO, R., 2021)

Era presente também na Libelu sua intrínseca ligação com os cineclubes e revistas de arte, assim como a sua participação na revista Cine-Olho. Seus militantes, como o próprio Rubens Machado Junior, fizeram parte da criação do Cineclubefau, da Federação Paulista de Cineclubes, do Circuito de Cineclubes “Cinusp”, etc. Ferrenhos em oposição as camisas de força stalinistas da cultura, não é de se espantar que sua atividade militante também se expressava na oposição aos cineclubes conservadores liderados pelo PCB, expressão disso foi a votação da diretoria executiva do Conselho Nacional de Cineclubes, em 1978, onde os militantes da Libelu perderam por apenas dois votos num total de cento e poucos.

“Éramos acusados de anarquistas, assembleistas, politizadores, extremistas, porra-loucas; ou até de “biombo”, frentistas de engajamento político, atiçadores da Polícia, provocadores da Censura. Entretanto preferíamos, como até era comum entre trotskistas em geral, de fato a qualidade artística à política nas fitas, muito inversamente aos pseudoburocratas e stalinistas que nos detratavam. Ao menos no Cineclubefau ou no Bandido da luz vermelha, da eca, não seria absurdo numa enquete se ficassem parelhos, ou se preferissem a Godard, o Antonioni; a Eisenstein, o Vertov; ao Cinema Novo, o Marginal; à Batalha de Argel de Pontecorvo, o Mash de Altman; a 1900 de Bertolucci, O incrível exército de Brancaleone de Monicelli. Confesso que entre os filmes inesquecíveis que fizeram parte dessa vida de cineclubes está um que não vi na época (e ninguém viu, pois só chegou nos anos 1980 por aqui), exceto a Clara Ant, que o viu nos eua e nos descrevia com pompa e circunstância: o Zabriskie Point (1970), de Antonioni.” (MACHADO, R., 2021)

3. Da Libelu ao coletivo de arte independe “Viajou Sem Passaporte”

A relação da Libelu com a OSI era, por muitas vezes, um tanto contraditória, principalmente por dois fatores: 1. A amplitude do “ser Libelu” e 2. O dogmatismo ainda presente na OSI.

Como diz Fernanda Pompeu no documentário Libelu - Abaixo a Ditadura (2020), do estreante Diógenes Muniz “para ser da Libelu era só ir chegando numa reunião e participar!”. Essa amplitude da organização (da qual Rubens chama de “as franjas da Libelu”) a permitiu chegar num espectro amplo da juventude, não só em São Paulo como em outras grandes capitais do país. Era só chegar numa festa, numa reunião política (clandestina) na universidade, num sarau ou cineclube para ser identificado e se identificar com a Libelu. E por trás disso, a própria cabeça dirigente da OSI ficava nas sombras, desconhecidos:

“por vezes não lhe sabíamos o timbre de voz (em última instância seria a osi, Organização Socialista Internacionalista, e sediada na França?). Ou raramente abriam a boca, falavam só no miúdo da conversa. Seriam por certo os que mais se digladiavam nas reuniões preparatórias? Não necessariamente os oradores dos encontros e assembleias que levantavam a mão pedindo a palavra? Eram por vezes os que saíam comedidos em busca de um orelhão, um mesário circunspecto anotando inscrições de fala, os observadores mais atentos que se demoravam no fim dos meetings, ou nos agrupamentos prévios? Transpirava-se de todo modo um clima antiburocrático.” (MACHADO, R., 2021)

As franjas da Libelu chegavam até os setores mais impactados pelos movimentos de contracultura à nível internacional, que faz com que hoje essa organização seja lembrada como a organização das “grandes festas”, que foi contra a caretice moralista e do combate ao conservadorismo em relação às drogas, onde “o trotskismo convivia com o rock, com o fuminho e com as meninas do pós-queima-dos-sutiãs”, como diz a Folha de São Paulo. Mas essa relação muitas vezes entrava em choque com as perspectivas ainda dogmáticas presentes nos mais dirigentes da juventude, ligados a OSI, organização que hoje se tornou a corrente “O Trabalho”, uma das mais conservadoras na sua política anti-drogas e no seu obreirismo em relação às questões de gênero e sexualidade.

Esses fatores foram fundamentais para que setores rompessem com a Libelu, um deles sendo o grupo de arte independente “Viajou Sem Passaporte ", nascido dez anos após o Maio de 1968, a partir de críticas que tinham em relação ao dogmatismo da OSI. Seu primeiro trabalho foi no teatro Eugênio Kusnet, desenvolvendo, posteriormente, intervenções urbanas e, por fim, passando a invadir espetáculos teatrais. Devido a sua experiência anterior com a Libelu, o grupo manteve as formas de pensar apreendidas no movimento estudantil, como a disciplinas de encontros regulares e a discussão de ideias, e também seus referenciais teóricos e estéticos, como o trotskismo que se misturava como o surrealismo e o dadaísmo, buscando reinventar o cotidiano por meio de intervenções urbanas disruptivas nos últimos anos da ditadura. Sua marca principal era o que chamavam de trajetórias, como a Trajetória da Árvore (março de 1979), Trajetória do Curativo (abril de 1979) e Trajetória do Paletó (maio de 1979).

A história do Viajou Sem Passaporte está mais esmiuçada no trabalho de Patrícia Morales Bertucci Intervenção Urbana, São Paulo (1978-1982): o espaço da cidade e os coletivos de arte independente Viajou Sem Passaporte e 3Nós3, mas é inegável as influências anteriores da Libelu, marcadas na produção artística disruptiva e contracultural do grupo. Além do mais, o grupo se guiava pelas perspectivas de total liberdade a arte, como na apresentação do grupo na revista Arte em revista:

“Aqueles que procurarem desvendar nosso “conteúdo”, nossa mensagem para o mundo, que se virem de (de costas): nos taxarão de loucos irrecuperáveis: a aqueles que procurarem aplicar emboloradas leis estéticas ao nosso trabalho se sentirão ridículos (que inventem outras)” (Viajou Sem Passaporte APUD Bertucci, P. M., 2016)

4. Os caminhos após Libelu

O fato é que hoje os ex-libelus se constituem numa vastidão de experiências distintas e nada homogêneas de uma geração que sonhava com um futuro socialista mas que sofreu uma verdadeira derrota. Uns descambaram na vida política para a direita (vide Reinaldo Azevedo), outros ocupam cargos na folha, outros seguiram sendo militantes críticos, já outros se mantiveram no PT após a entrada da OSI no partido.

“Triste perspectiva para a juventude revolucionária seria essa: se adaptar passiva ou ativamente ao sistema, ou vegetar como militantes testemunhais e impotentes dentro de um partido que caminha no sentido oposto aos de seus ideais.” (FLÁME, Thiago, 2020)

Ainda assim, hoje, aqueles que olham com olhares críticos a essa experiência, verão que a potencialidade na forma e no conteúdo da Libelu, sua subversão e não conformação com a miséria do possível, podem ser verdadeiras fontes de inspiração para a atuação na realidade de hoje. É nesse sentido que a Juventude Faísca Revolucionária retoma a ousadia estética da Libelu na concepção de suas chapas comunistas rumo ao CONUNE, retomando a força da aliança operária-estudantil, batalhando contra as burocracias e o stalinismo, por uma fração revolucionária no movimento estudantil que luta pela independência política de nossas entidades.

LEIA MAIS EM: Libelu, uma história que vale a pena ser conhecida


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Luno P.

Professor de Teatro e estudante de História da UFRGS
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