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Maria Firmina: um novo olhar na literatura abolicionista

Miguel Gonçalves

Maria Firmina: um novo olhar na literatura abolicionista

Miguel Gonçalves

A segunda metade do Século XIX no Brasil foi profundamente marcada pela difusão de romances e peças teatrais cujo enredo perpassava centralmente pela questão da escravidão. O movimento abolicionista, na esteira dos processos de luta e resistência dos escravizados, se fortalecia e ganhava peso na cena política nacional. Foi justamente estes processos de luta em que negros, escravizados e livres, foram protagonistas que impuseram a abolição pela força da luta, oficialmente respaudada em 13 de maio de 1888.

Os diferentes projetos de país em relação à escravidão ganharam destaque na cena cultural do Brasil, particularmente em cidades como Rio de Janeiro e São Luís do Maranhão, marcadas pelo efervescente cenário artístico. Dentre as obras que retrataram o tema da escravidão, comentaremos sobre o romance Úrsula escrito e publicado por Maria Firmina dos Reis em 1859 pelas suas particularidades que serão desenvolvidas ao longo do texto. Para adiantar: os registros indicam que a primeira escritora negra a ser publicada no Brasil foi Maria Firmina dos Reis, especialmente em uma obra cujo enredo gira em torno da defesa da abolição. Justamente pela potencialidade que apresentavam, seus escritos foram silenciados e invisibilizados por mais de 100 anos até que uma edição de sua obra foi encontrada em um sebo e a autora foi retomada e virou tema de estudos. Justamente por isso, buscaremos comparar com o romance Vítimas Algozes de Joaquim Manuel de Macedo para contrapor uma romancista que se colocava contra o racismo e pela emancipação dos escravizados com um romancista que reforçava a visão e a perspectiva dos senhores de engenho e da elite proprietária.

Não é à toa que este romance ficava em segundo plano dentre a literatura deste gênero: Maria Firmina dos Reis foi uma mulher livre mas era negra e escrevia a partir desta perspectiva, o que com certeza causava incômodo entre grande parcela das elites escravistas da época. Também não é à toa que o livro tenha sido encontrado justamente em um momento em que se aumentou a inclinação de estudar a história da abolição a partir da perspectiva e da contribuição dos negros, se contrapondo à falsa visão de que o Movimento Abolicionista era majoritariamente dirigido por brancos.

Maria Firmina e Joaquim Manuel de Macedo: perspectivas opostas

Maria Firmina dos Reis não inventou a literatura abolicionista. Antes dela, romances e peças teatrais já haviam tocado na defesa da abolição - explícita ou implicitamente - como tese central de sua obra, mas seu olhar sensível de quem, apesar de mulher livre, experimentava o profundo racismo da sociedade escravocrata brasileira oferece uma nova perspectiva para a literatura abolicionista.

Para efeito de comparação, apresentaremos brevemente Joaquim Manuel de Macedo. Assim como Maria Firmina, Macedo é um reconhecido escritor da Literatura Abolicionista que ganha destaque nos estudos sobre o tema. No entanto, a perspectiva apresentada por este é profundamente carregada pelo racismo e pelo diálogo de que a abolição seria o melhor caminho a ser seguido para os próprios senhores. Precisamos brevemente compreender o que era o haitianismo para compreender o diálogo empreendido por Macedo. Haitianismo foi o termo cunhado pela Historiografia ao fenômeno de difusão do medo entre os senhores e as elites escravistas de que estes realizassem uma revolução negra tal qual a Revolução Haitiana que extinguisse a Escravidão e atacasse físicamente os ex-senhores.

Mais do que escrever a partir da perspectiva dos proprietários de terra e escravizados, o livro de Macedo buscava convencer os próprios senhores a apoiarem o fim da escravidão, não pela via de buscar estimular a sensibilidade pela posição do negro na sociedade frente a brutal exploração do trabalho ou aos maus tratos dos senhores, mas pelo contrário, afirmando o quão seria perigoso para os senhores manter os escravizados nesta posição justamente pelo medo de uma Revolução Escrava no Brasil. Ou seja, na visão de Macedo, as vítimas (os escravizados) podem se tornar algozes dos próprios senhores pela revolta que a escravidão causaria nos negros, o que é expresso no título Vítimas Algozes. Macedo não busca esconder estas premissas em nenhuma parte de seu romance. Logo no prefácio, cita um dos grandes dirigentes da Revolução Haitiana, Toussaint Louverture, em tom de temor, além de colocar abertamente que sua obra busca dialogar com os proprietários de escravizados, cuja descrição assim faz: “Nunca em parte alguma do mundo houve senhores mais humanos e complacentes do que no Brasil, onde são raros aqueles que nos domingos contem presos no horizonte da fazenda os seus escravos; em regra todos fecham os olhos ao gozo amplo do dia santificado.” [1]

Como dito anteriormente, o romance de Maria Firmina inaugura uma nova perspectiva em relação aos romances abolicionistas por defender a abolição pela chave de ver a igualdade entre negros e brancos. Não por perspectivas econômicas (como de uma parcela dos abolicionistas de que a escravidão impediria o desenvolvimento de uma economia mais sofisticada nos moldes do livre-mercado europeu), mas sim sociais e humanas. Firmina apontava para a semelhança entre os seres humanos:

“Túlio, meu amigo, eu avalio a grandeza de dores sem lenitivo que te borbulha na alma, compreendo tua amargura, e amaldiçoo em teu nome ao primeiro homem que escravizou a seu semelhante. [...] Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?”

 [2]

Quanto aos castigos aplicados aos escravizados, os dois autores enxergavam a partir de perspectivas diametralmente opostas. Macedo vê o escravizado como um perverso que é responsável por merecer castigos, com o senhor na condição de vítima que precisa ficar atenta para não ser “dissimulado” pelos escravizado: “Ninguém dissimula melhor do que o escravo: sua condição sempre passiva, a obrigação da obediência sem limite e sem reflexão, o temor do castigo, a necessidade de esconder o resentimento para não excitar a cólera ameaçadora do senhor, o habito da mentira, emfim, fazem do escravo o tipo da dissimulação.” [3] Além disso, Macedo ainda reivindica os castigos que deveriam ter sido aplicados, e que o senhor, por sua bondade, teria poupado o escravizado: “Simeão protegido por Florinda escapou á justo castigo, que Domingos Caetano devia infligir-lhe. Para o escravo a repreensão não é pena, porque a repreensão falia ao brio, ao sentimento do pondunor, que a escravidão não pôde comportar.” [4]

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Já em Úrsula, a visão do negro em relação ao senhor que aplica a pena é a de pavor, medo, não porque o negro seria perverso por natureza e os castigos o fariam amedontrado como insinua Macedo, e sim porque sentiam na pele as crueldades dos castigos aplicados pelos senhores: “O comendador P. foi o senhor que me escolheu. Coração de tigre é o seu! Gelei de horror ao aspecto de meus irmãos... os tratos por que passaram doeram-me até o fundo do coração! O comendador P. derramava sem se horrorizar o sangue dos desgraçados negros por uma leve negligência, por uma obrigação mais tibiamente cumprida, por falta de inteligência! E eu sofri com resignação todos os tratos que se dava a meus irmãos, e tão rigorosos como os que eles sentiam. E eu também os sofri, como eles, e muitas vezes com a mais cruel injustiça.” [5]

Em uma passagem excepcional, Firmina demonstra não só a compaixão e solidariedade em relação à opressão racial sentida pelos negros, mas também pela opressão de gênero sofrida pelas mulheres, adiantando uma discussão que só ganha maior destaque no final do século seguinte: “Não sei por quê; mas nunca pude dedicar a meu pai amor filial que rivalizasse com aquele que sentia por minha mãe, e sabeis por quê? É que entre ele e sua esposa estava colocado o mais despótico poder: meu pai era o tirano de sua mulher; e ela, triste vítima, chorava em silêncio, e resignava-se com sublime brandura.” [6] Maria Firmina dos Reis não descreve as personagens negras como sedutoras e mal intencionadas, visão muito difundida pelos romancistas brancos da época, descrevendo a personagem Susana não com um glamour inatingível [7], mas com uma naturalidade humana que no contexto em que foi escrito, é de tamanha beleza. Firmina não via o negro como inferior aos brancos e sim como um ser humano, por fora de estereótipos físicos e sociais, combatendo a visão difundida, sobretudo ao longo do século XIX a partir do “racismo científico” e as teorias eugenistas.

Uma outra África

A obra de Firmina oferece a contribuição de apresentar uma perspectiva ímpar a respeito da visão que os romances construíam do continente africano. Naquele momento, grande parte dos escritores brasileiros se apoiavam em argumentos parecidos com os da extrema-direita na atualidade de que a escravidão já era praticada na África, e portanto, o homem branco fazia favores ao retirar os negros da condição de escravizados em meios as guerras do continente africano, afinal, se tratava de “salvar a sua alma”.

Macedo tinha uma visão completamente pejorativa da África. O preconceito da sua visão se explicitava tanto na descrição física e do caráter dos personagens, quanto ao associar os males contemporâneos da sociedade brasileira daquele momento como advindos da África: “O feitiço como a syphilis veio d’Africa. Ainda nisto o escravo africano sem o pensar vinga-se da violência tremenda da escravidão.” [8]. Em outra passagem, Macedo de forma extremamente racista diferencia o negro já nascido do Brasil com o negro vindo da África : “Os creoulos são muito mais intelligentes e maliciosos que os negros da África [...] O escravo africano mata o senhor, e se afasta do cadáver : o escravo creoulo antes de matar atormenta e ri das agonias do senhor, e depois de matar insulta e esquarteja o cadáver.” [9]

Firmina, pelo contrário, apontava que os homens exerciam sua liberdade na África, e como os brancos, na realidade, eram os que privavam os negros da liberdade com a vida no cativeiro. Os africanos no romance Úrsula não viam a África como o inferno, pelo contrário, a viam como a terra da liberdade, anterior ao inferno que agora viviam sob a condição de escravizados:

“Cadeia infame e rigorosa, a que chamam “escravidão”?!... E entretanto este também era livre, livre como o pássaro, como o ar; porque no seu país não se é escravo. [...] Oh! A mente! Isso sim ninguém a pode escravizar! Nas asas do pensamento o homem remonta-se aos ardentes sertões da África, [...] vê a tamareira benéfica junto à fonte, que lhe amacia a garganta ressequida: vê a cabana onde nascera, e onde livre vivera! Desperta porém em breve dessa doce ilusão, ou antes sonha que a engolfara, e a realidade opressora lhe aparece: é escravo e escravo em terra estranha!” [10]

Se por um lado, Firmina apresenta uma visão embelezada e essencializada da África, como um espaço em que os seres humanos poderiam expressar sua liberdade passando por fora da necessária crítica à divisão do trabalho e da organização política hierárquica vigente em sociedades do continente africano, por outro a sua perspectiva buscava se contrapor ao racismo de parte da elite intelectual brasileira. Ainda que essa idealização da terra africana, não era nada mais nada menos que a representação concreta de que naquele continente os povos africanos raptados já tinham disso livres um dia. Essa é um ideia que percorreu a literatura de Maria Firmina, mas também se encontram em relatos historiográficos de negros livres e libertos que tentaram de alguma forma retornar à África ou ir para o Haiti.

Conclusões

Macedo em sua obra inverte o papel de vítimas e vitimizadores, colocando sempre o negro como sujeito ativo da perversidade, e o branco como passivo que agoniza frente ao risco de assassinato, de mal comportamento que podem sofrer pelos negros. Por isso, caberia aos brancos liberarem os negros dos grilhões porque em última instância, os brancos estariam se protejendo de futuros crimes .

Por outro lado, Maria Firmina dos Reis apresenta outra perspectiva que deve ser cada vez mais estudada: como os negros enxergavam e almejavam pelo fim da escravidão. Em geral, nas escolas e na literatura é apresentada uma visão do movimento abolicionista onde os negros não apenas não são protagonistas, como quase não são personagens. Úrsula pode ser analisado não só como um lindo romance que fala da escravidão com a sensibilidade de enxergar o negro como sujeito de sentimentos, como se transforma num documento histórico para entender a invisibilidade que a Historiografia impôs aos negros dentro do movimento abolicionista.

Nesse sentido, nas últimas décadas, há um resgate fundamental do papel cumprido pelos negros na abolição. Análises recentes mostram este papel sendo cumprido através da política na formação de quilombos, na organização de fugas, fundação de entidades e organizações políticas e greves, mas também na cultura através de folhetos de propaganda, textos, músicas e romances. Não é atoa que por anos a burguesia brasileira buscou esconder os escritos de uma mulher negra que apontava para a necessidade do fim da escravidão a partir da perspectiva de personagens escravizados. Retomar Maria Firmina dos Reis é retomar o anseio de que sejamos sujeitos de nossa história, para almejar um futuro em que sejamos verdadeiramente livres, se emancipando das amarras que a exploração e a opressão capitalista impõe, buscando desenvolver livremente as potencialidades humanas que só podem ser alcançadas através da revolução.


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FOOTNOTES

[1(1869, p.131)

[2(2019, p. 21)

[3(1869, p.123-124)

[4(idem, p.85)

[5(2019, p.71)

[6(2019, p.39-40).

[7(2019, p.71)

[8(1869, p.149)

[9(1869, p.122)

[10(2019, p;27-28).
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