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Marxismo: método, teoria e prática

Tatiana Cozzarelli

Marxismo: método, teoria e prática

Tatiana Cozzarelli

Uma questão central para aqueles que despertam à vida política hoje em dia é: o que é marxismo e o que ele significa para a nossa análise política e nossa prática? Para começar a responder a essa questão, devemos ver o marxismo não apenas como uma teoria, mas como um método de análise e uma prática política.

Texto publicado originalmente em inglês no Left Voice, integrante estadunidense da Rede Internacional de Diários La Izquierda Diario.

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No ensaio final que escrevi no ensino médio, argumentei que Marx foi o pensador mais importante da história moderna - uma afirmação ousada que todos na minha escola católica zombaram. Lembro-me de alguém me dizendo que o marxismo logo seria esquecido e apagado. Isso foi em 2004.

Hoje, até a mídia capitalista tem que lidar com a relevância "renovada" de Marx, em artigos como esse, esse e também esse do New York Times intitulado "Feliz Aniversário, Karl Marx. Você estava certo!”.

Embora “socialismo” não seja mais um palavrão, seu significado está sendo muito disputado. Existem acadêmicos escrevendo inúmeros livros sobre diferentes facetas do marxismo, mas eles geralmente prestam pouca atenção no seu papel no avanço da luta de classes. Também temos os Socialistas Democratas da América [DSA], que citam Marx enquanto apoiam um dos dois partidos capitalistas mais importantes do mundo - o Partido Democrata. Há também a Alexandria Ocasio-Cortez que causou comoção no establishment político, forçando Nancy Pelosi a anunciar que o socialismo não é "ascendente" no Partido Democrata. E há o infame vídeo da Al-Jazeera, intitulado "5 maneiras pelas quais a América já é socialista" (!?), porque temos alguns mínimos serviços públicos. Marx deve estar se contorcendo em seu túmulo.

Então, uma questão central para aqueles que despertam para a vida política hoje é a seguinte: o que é o marxismo e o que ele significa para nossa análise política e nossa prática? Para começar a responder a essa pergunta, devemos ver o marxismo não apenas como uma teoria, mas como um método de análise e uma prática política.

Marxismo como método

Como método de análise, o marxismo é baseado no materialismo dialético. Isso significa que, longe de ser um conjunto dogmático de verdades escritas no "O Manifesto Comunista", o marxismo é um modo de analisar o mundo em seu momento atual, levando em consideração vários elementos. Distinto de outros métodos de análise, incluindo métodos religiosos, pós-modernos e empiristas, o marxismo é baseado no entendimento de uma realidade material que está em constante movimento.

O materialismo pode ser resumido pela ideia de que, em última análise, é a nossa realidade material - não Deus, nem ideias, nem a linguagem – que molda a nossa existência. Marx, profundamente influenciado por Hegel, criticou os jovens hegelianos (um círculo intelectual do qual uma vez fora associado). Esse círculo acreditava que as ideias e a linguagem eram os sujeitos das mudanças sociais. Muito similar ao pós-modernismo de hoje. Em "A ideologia alemã" (1846) Marx diz: "Totalmente ao contrário da filosofia alemã, que desce do céu à terra, aqui se eleva da terra ao céu. Quer dizer, não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam, tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens de carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.” [1]

Em outras palavras, existimos em corpos materiais que têm necessidades materiais atendidas pela produção, e é esse processo de produção e o "processo da vida" que produz nossa consciência. Em "A Ideologia Alemã”, Marx afirma que "Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente, e o ser dos homens é o seu processo de vida real. [2]

Nossas ideias não surgem do nada; elas são um produto da maneira como vivemos. O que pensamos, o que imaginamos, o que queremos e o que acreditamos é condicionado pelo fato de vivermos no capitalismo, que por um lado conecta as pessoas ao redor do mundo como nunca antes e, por outro lado, produz condições miseráveis para a grande maioria da humanidade. Essa forma de produção abriu imensas possibilidades criativas para a humanidade pensar, criar e imaginar, em contraste com o provincialismo do pensamento feudal, ao mesmo tempo em que fecha muitas dessas possibilidades para a classe trabalhadora.

Embora Marx tenha críticas importantes a Hegel, ele não rompe com todo o pensamento hegeliano. Em vez disso, Marx adotou a dialética de Hegel, baseada na ideia da contradição - tese e antítese entrando em conflito e formando uma síntese. Da mesma forma, Marx vê a sociedade caracterizada por conflitos e tensões, em constante movimento. Mas, para Marx, essas tensões estão enraizadas no caráter material da sociedade, não nas ideias. Marx pegou Hegel e "o virou de cabeça para baixo" - usando um método dialético semelhante ao de Hegel, mas argumentando que a realidade material move a sociedade.

É nesse sentido que a economia política marxista é considerada uma ciência - não porque lida com o reino das verdades absolutas, mas porque lida com o reino do mundo material e mensurável. Marx usa esse método para desenvolver teorias do capitalismo, mais-valor e socialismo. O último, ele não vê como um ideal utópico, mas como uma possibilidade material que resolverá as contradições do capitalismo. De fato, ele rejeita o socialismo utópico, divorciado das condições reais da sociedade. Como Engels argumenta em “Socialismo: utópico e científico” (1880), “Daquele momento em diante, o socialismo não era mais uma descoberta acidental desse ou daquele cérebro engenhoso, mas o resultado necessário da luta entre duas classes desenvolvidas historicamente - o proletariado e a burguesia. Sua tarefa não era mais fabricar o sistema de sociedade o mais perfeito possível, mas examinar a sucessão histórico-econômica de eventos a partir da qual essas classes e seu antagonismo necessariamente surgiram. E descobrir nas condições econômicas criadas o fim desse conflito”.

O objetivo de Marx não era sonhar com uma sociedade perfeita. Era examinar a sociedade tal como ela é e apontar para a possibilidade de uma sociedade socialista nascer a partir do que existe. Em nítido contraste com os socialistas utópicos, Marx procurou entender o funcionamento interno do capitalismo, a fim de "dominá-lo" e encontrar o mecanismo para derrubá-lo. Nesse sentido, Marx argumenta que não se pode começar a luta contra o capitalismo nas condições que se deseja - se começa nas condições que existem. Essa é a base da teoria marxista.

Marxismo como teoria

Usando o método científico do materialismo dialético, Marx explora os fundamentos do sistema capitalista. Como o famoso começo de "O Manifesto Comunista" (1848) diz, "A história de toda a sociedade até então existente é a história da luta de classes". Nesse sentido, Marx vê o conflito entre as diferentes classes sociais como uma constante ao longo da história, provocando revoluções e mudando a estrutura da sociedade. As causas dessas mudanças, segundo Marx e Engels, estão enraizadas nas mudanças ocorridas na produção e na troca.

No "Manifesto", Marx e Engels argumentam que as mudanças na tecnologia permitiram o crescimento do modo de produção capitalista – junto com a divisão do trabalho e a centralização da produção nas fábricas das cidades que criaram massivos lucros para a burguesia. Marx e Engels argumentam que porque o feudalismo "não era mais suficiente para as crescentes necessidades de novos mercados", deu lugar ao capitalismo, com revoluções que levaram a burguesia ao poder. A escravidão e o racismo ajudaram a fortalecer a classe capitalista europeia, bem como a formar a base do capitalismo emergente nas Américas. O colonialismo e depois o imperialismo garantiram a expansão do capitalismo em todo o mundo.

Paradoxalmente, a expansão do capitalismo cria as bases para o socialismo. A base do socialismo não é apenas que o capitalismo seja "ruim" ou opressivo, embora isso certamente seja verdade; a base do socialismo é encontrada no fato de que as forças produtivas do capitalismo criaram condições para que todos possamos ter mais do que suficiente. Como Engels diz em Socialismo: utópico e científico, “Os meios de produção e a própria produção tornaram-se socializados em essência. Mas eles foram submetidos a uma forma de apropriação que pressupõe a produção privada dos indivíduos, sob a qual, portanto, todo mundo possui seu próprio produto e o coloca no mercado. O modo de produção está submetido a essa forma de apropriação, embora ela abole as condições sobre as quais repousa.

O capitalismo torna a produção mais eficiente, mais rápida e capaz de fornecer subsistência para todo ser humano. Na sociedade capitalista, no entanto, a produção existe com o objetivo de gerar lucro, e não de produzir o bem estar comum, criando a contradição absurda de comida sendo jogada fora enquanto as pessoas passam fome ou, como ocorreu durante a Grande Depressão, comida sendo queimada em nome do bem do mercado.

Embora Marx certamente pudesse (e fez) escrever sobre os efeitos horríveis do capitalismo - a desigualdade e as péssimas condições de trabalho do proletariado -, seu foco estava na descrição dos mecanismos internos do capitalismo. Como funciona? No primeiro volume de "O Capital", Marx começa discutindo sobre o bloco de construção do capitalismo - a compra e a venda de mercadorias. Embora isso pareça ser essencialmente um processo que ocorre entre as coisas - trocar dinheiro por uma mercadoria. Tanto a mercadoria quanto o dinheiro escondem as relações sociais de produção dentro delas.

Marx desmascara uma mercadoria que o capitalista compra, mas que produz mais lucro que seu preço: força de trabalho. O que isso significa? Significa que os trabalhadores são pagos o suficiente para permanecerem vivos - para trabalhar no dia seguinte e continuar produzindo. O trabalhador pode produzir o suficiente para garantir sua subsistência para esse dia em apenas algumas poucas horas - ou menos. Mas “o valor da força de trabalho e o valor que essa força de trabalho cria no processo de trabalho são duas magnitudes completamente diferentes; e essa diferença dos dois valores era o que o capitalista tinha em vista quando estava comprando força de trabalho.

As horas de trabalho que produzem lucro para o capitalista são chamadas de mais-valia. Nesse sentido, todos os capitalistas estão roubando seus trabalhadores - forçando-os a trabalhar mais horas do que são pagos para obter lucro. Esse é o coração da produção capitalista.

Na busca por lucros, os capitalistas individuais têm um grande incentivo para tornar a produção mais eficiente e inovar os meios de produção. Engels diz: “Vimos que o crescente aperfeiçoamento das máquinas modernas é, pela anarquia da produção social, transformada em uma lei obrigatória que força o capitalista industrial individual a sempre melhorar suas máquinas, a sempre aumentar sua força produtiva. A simples possibilidade de ampliar o campo de produção é transformada para ele em uma lei igualmente obrigatória.”

Os constantes avanços revolucionários e tecnológicos criam condições objetivas para o comunismo. A produção já é socializada e tirada do alcance de famílias e cidades. Já existe o mecanismo para garantir que cada pessoa no mundo tenha mais do que suficiente. Uma revolução comunista tirará a produção das mãos dos capitalistas, que se preocupam apenas com o lucro, e a colocará nas mãos da classe trabalhadora como um todo, que controlará a produção com base no que é bom para toda a sociedade.

O marxismo como prática

“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de diferentes maneiras; a questão, porém, é transformá-lo.”

Hoje, oito pessoas acumulam metade da riqueza do mundo e a sede de lucros levou à destruição ambiental maciça, com consequências irreparáveis. No país mais rico do mundo, alguns estudantes frequentam a escola apenas quatro dias por semana porque "não há dinheiro" para abrir a escola no quinto dia. Os trabalhadores da Amazon lutam para pagar aluguel, enquanto o CEO da empresa, Jeff Bezos, é a pessoa mais rica da história. A tecnologia parece ser inimiga da classe trabalhadora, retirando os empregos dos trabalhadores em vez de lhes proporcionar mais tempo livre. As razões para se fazer a revolução são abundantes.

Então, como podemos promover o socialismo? Para começar, Marx deixa claro que o sujeito revolucionário é a classe trabalhadora - a classe cuja própria existência está em eterno conflito com a classe capitalista e com o estado que protege os capitalistas. Ele argumenta que o capitalismo cria seus próprios coveiros, reunindo a classe trabalhadora para se organizar contra os capitalistas.

Embora existam condições objetivas para o socialismo, não há nada automático ou determinístico na teoria marxista - o socialismo não ocorrerá espontaneamente. Nos “Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844”, Marx diz: “É preciso uma ação comunista real para abolir a propriedade privada real. A história levará a isso; e esse movimento, que em teoria já sabemos ser um movimento auto-transcendente, constituirá, de fato, um processo muito difícil e prolongado.”

Não importa o quanto se faça teorização sobre o capitalismo e o socialismo, e não importa quão apodrecidas estejam as condições do capitalismo, é apenas a ação dos comunistas - à frente do movimento dos trabalhadores - que pode acabar com esse sistema irracional. Como Marx e Engels dizem no Manifesto, “os comunistas (...) são, por um lado, praticamente a seção mais avançada e resoluta dos partidos da classe trabalhadora de todos os países; aquela seção que empurra todos os outros; por outro lado, teoricamente, eles têm sobre a grande massa do proletariado a vantagem de entender claramente a linha da marcha, as condições e os resultados gerais finais do movimento proletário.”

Nesse sentido, os comunistas (muitos que deveriam ser líderes orgânicos em seus locais de trabalho) são responsáveis por um plano claro; somos responsáveis por usar a teoria marxista para analisar a sociedade e impulsionar a classe trabalhadora a realizar seus interesses de classe. Para isso, argumenta Marx, o proletariado precisará de um partido político, independente de todos os capitalistas, para construir uma força material capaz de esmagar o capitalismo. Em “Mensagem do Comitê Central à Liga Comunista”, Marx e Engels argumentam que a união de um partido da classe trabalhadora com a pequena burguesia democrática seria “apenas para vantagem deles e para a completa desvantagem do proletariado. O proletariado perderia toda sua posição independente conquistada com muito esforço e seria reduzido mais uma vez a um mero apêndice da democracia burguesa oficial. Portanto, essa unidade deve ser resistida da maneira mais decisiva. Em vez de se abaixarem ao nível de um coro de aplausos, os trabalhadores e, acima de tudo, a Liga, devem trabalhar para a criação de uma organização independente do partido dos trabalhadores...”

A nossa grande tarefa é construir uma organização desse tipo, com raízes profundas na classe trabalhadora e temperada na luta de classes. Assim, ser marxista significa empregar o método dialético para analisar os problemas atuais, convencer a classe trabalhadora de que o capitalismo só pode levar à “ruína comum das classes rivais” e, o mais importante, lutar, independentemente de todas as organizações capitalistas, para criar uma sociedade comunista.


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FOOTNOTES

[1ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007

[2Idem.
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