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Crônica | Meu coração gela e desliza a tela

Crônica sobre o capitalismo desenfreado que matou Ana Clara Benevides Machado no show da Taylor Swift. Por uma sociedade que derrote a exploração do meio ambiente e de nossas vidas.

Julia CardosoEstudante de Ciências Sociais da USP

sábado 18 de novembro de 2023 | Edição do dia

Hoje de novo eu acordei no mundo acelerado. primeiro instinto: celular. desliza a tela e o coração gela. sabe aquele show que você queria tanto ir e não foi porque o orçamento tava vermelho? uma jovem, Ana, ela conseguiu. mas nem os famigerados fogos de taylor ela viu, seu coração parou antes.

Coração gela e desliza a tela. uma morte e mais de mil passando mal no show mais aguardado. desmaios e pressão caindo depois de dívidas para chegar. chegou? garrafa de água barrada. a temperatura? até então batia 40º. você entrou. ufa chegou e entrou no show que você esperou anos. entrou e agora a sensação bate 60º. o corpo amolece. água sua mente grita, preciso de água. 10 reais, um copo. mas não tem escolha. teme cair nos próximos minutos.

Vai começar, corre pra grade, é o momento, o peito grita. é o momento! passa uma música, meu deus é real, ouvi essa música pela adolescência inteira. segunda música, a perna amolece, o coração dói e dói muito. o suor escorre pelo rosto. e cai.

Enquanto a tela eu deslizava e as notícias me bombardeavam e meu coração gelava foi essa cena que se passou na minha cabeça. eu visualizei nesse show que eu tanto quis ir, visualizei o corpo da Ana no chão.

Meu coração gelou e minha mente paralisou por segundos porque eu era a ana. eu era a ana que sonhava em ir no show da taylor swift e que pensou em viajar de estado, como ana viajou, e que não podia ser que essa menina de 23 anos está morta. junto dela milhares se sentiram mal e com a saúde frágil para poder ver um show. para escutar músicas! e os sonhos dela? um ela tinha de ver taylor, esse o capitalismo destruiu em horas e destruiu todos os demais.
Mas a paralisia não durou em mim porque eu sei o que matou a ana: o capitalismo. e que a dor seja motor para destruir quem nos destrói.

Tem tantas pontas nessa história e o capitalismo é o que une todas elas. é o preço fora do comum para chegar no show. é os gastos da viagem porque a arte só chegou às grandes e poucas capitais. já aí me dá raiva, porque isso é arte é música. os trabalhadores não tem o direito nesse sistema nem de ouvir música? essa lógica de restringir o acesso da cultura a poucos não vemos apenas no preço dos ingressos. esse evento fechou a circulação de ar para que as pessoas não assistissem a taylor de fora do estádio. tamanha a exclusão para o capitalismo: coloca a restrição ao show acima de permitir ter ar no estádio para que as pessoas possam respirar. te corto até o ar, sou o capitalismo e sou irracional.

Seguimos: não tem ar. tapume espremem uns nos outros. garrafas barradas. dívidas feitas para sobreviver com um copinho de água. pessoas se escoram umas nas outras com fileiras e fileiras com a saúde debilitada. afinal, o que mais importa? colocar pessoas para dentro sob qualquer que seja a circunstância para que lucremos mais. lucremos mais, esse é o lema. mesmo que custe uma morte? não importa, nós somos o capital e matamos todo dia. nas favelas nas chacinas nas tragédias ambientais. pelo lucro tudo fazemos.

Falando em ambiente, da onde vem tanto calor? os capitalistas escondem sob panos verdes mas eu vos falo. hoje estamos sobre crise, crise climática, alguns foram pegos de surpresa pelo calor que parece que mata, e ora as vezes mata mesmo. mas os capitalistas já sabiam que ela viria. afinal, são séculos passando por cima de tudo que é verde, arrancando todo minério de todo o mundo. explorando tudo que é possível para fazer jus ao lema ‘lucremos mais’. mas isso nunca foi lugar de preocupação nas cabeças dos capitalistas, explorar mais sim era.

Agora, nós e nossa classe, nos preocupamos com nossas crianças que passam mal nas escolas sem ventilação suficiente. que estão vulneráveis a ser vítimas da próxima grande chuva, como está previsto hoje, preocupados de ver um reprise de mariana e brumadinho. preocupados com próximo apagão. preocupados com o ônibus metrô trem lotado que faz o desmaio ameaçar. porque enquanto o capitalismo o ambiente destrói, destrói nossas vidas. enquanto cresce seus bolsos cresce o estresse e adoecimento mental pela péssima qualidade dos serviços. nem no lazer é possível descansar. quem dirá nos metrôs lotados de todo dia. e essa é a ponta do iceberg de como é a nossa classe que está pagando com a vida o preço dessa crise que vocês criaram.

Não é possível todo dia minha cabeça grita. não é possível. que todo dia irei sentir meu coração gelar quando a tela deslizar e ver uma nova notícia. me dói de esmagar o peito as crianças palestinas vítimas desse mesmo capitalismo. me dói ver os corpos negros aos montes que se junta no meu país, vítimas da bala da polícia. me dói ver uma jovem que é impedida de ver um show. nem a experiência de um show o capitalismo consegue não contaminar. apenas não é. não é possível continuar sob o mundo que coleciona corpos gelados para lucrar. é possível uma sociedade sem o coração gelado de angústia. essa sociedade só pode ser construída por nós, jamais por eles.




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