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OBSERVATÓRIO | Novas tecnologias e @s mesm@s espoliad@s: luta e memória

Na quarta-feira (01 de julho de 2020), vimos uma grandiosa paralisação dos/as entregadores/as em todo o Brasil. Ela explicita a extrema precarização e o controle algorítmico da gestão da força de trabalho, como também o monitoramento total da nossa vida.

sábado 4 de julho de 2020 | Edição do dia

Na quarta-feira (01 de julho de 2020), vimos uma grandiosa paralisação dos/as entregadores/as em todo o Brasil. Ela explicita a extrema precarização e o controle algorítmico da gestão da força de trabalho, como também o monitoramento total da nossa vida. Instrumento fundamental para auxiliar a produção e a realização do mais-valor, além de outras funções político-ideológicas estratégicas para a garantia do poder empresarial e manipulação das classes trabalhadoras.

A luta por condições dignas de trabalho, por estes/as entregadores/as, mostra o rebaixamento do valor histórico e moral do conjunto da classe trabalhadora. Porque as suas exigências são mínimas, dentro do patamar de dignidade, tal como: Equipamentos de Proteção Individual, o fim dos bloqueios injustificados, por parte das corporações, e aumento dos valores repassados para os/as trabalhadores/as, que atualmente estão em R$ 0,70 por quilômetro rodado . A ausência de direitos básicos é justificada pelas corporações ao afirmarem que os/as entregadores/as não são seus empregados/as, mas são apenas “parceiros/as”, “colaboradores/as” ou “mandatários/as” e possuem liberdade de escolha para executar as “missões” no tempo que desejam.

Como a maior parte dos/as trabalhadores/as informais, os/as entregadores/as, em sua maioria, são negros e jovens, não possuem seguro de vida e/ou plano de saúde, auxílio alimentação. Como também arcam com os custos para poder trabalhar e se endividam, além de serem obrigados a devolver o equipamento de trabalho caso sejam desligados [1].

Retomar a memória da história do trabalho, no Brasil, traz elementos importantes para a análise das condições de trabalho, como também para as lutas sociais. No caso dos/as entregadores/as, nos referimos à pesquisa do historiador Paulo Terra sobre o convívio na cidade do Rio de Janeiro, do século XIX (1824-1870), entre os escravizados, libertos e livres, no setor de transporte. A partir da sua pesquisa, identificamos algumas semelhanças na hierarquização e num “perfil” predominante dos/as trabalhadores/as, deste setor, com o caso dos/as entregadores/as ciclistas ou aqueles/as que entregam a pé as mercadorias, no cenário do capitalismo contemporâneo.

Quando Terra destaca que os trabalhadores imigrantes portugueses “parecem ter reservado para si essa parcela do setor de transporte, representando a maioria dos condutores de veículos, como as carroças. [E] O transporte manual de cargas e pessoas, por sua vez, estava a cargo principalmente dos escravizados e libertos, os carregadores” [2]. Afirmamos que, ao longo do processo heterogêneo da hegemonização da mercantilização do trabalho, as formas de penalização da Casa Grande amoldaram-se sob novas roupagens. Realidade ilustrativa de como a precariedade se estruturou no “mercado de trabalho” brasileiro.

No estudo ressaltado, percebemos semelhanças entre os carroceiros e carregadores com um “perfil” predominante de hoje entre os/as entregadores/as das plataformas digitais. Porque existem aqueles tradicionais motoboys convivendo com os/as entregadores/as ciclistas, com os/as de patinete e até mesmo aqueles/as que entregam a pé, como os escravos de ganho da cidade do Rio de Janeiro, no século XIX.

Conforme destaca a pesquisa da Aliança Bike (2019), na cidade de São Paulo, a maioria dos/as entregadores/as ciclistas é negra (71%). Nesse sentido, destacamos a precariedade e o racismo estrutural compondo esses elementos constitutivos da nossa formação social. Esses elementos se restabelecem se renovando, mesmo com as possibilidades do avanço das forças produtivas, tal como foi a introdução, no setor de transportes, da carroça, no século XIX.

Hoje, com carros, motos, bicicletas e a inovação tecnológica, nota-se que aqueles/as disponíveis para fazer entregas a pé ou de bicicleta se assemelham aos escravos de ganho e aos trabalhadores de ganho (os libertos) [3]. Na Rappi, com um “perfil” semelhante, realizam entregas das mais variadas espécies. Os/as entregadores/as compram a bag e a jaqueta/colete, se endividam e buscam, por meio de jornadas exaustivas, subir ao topo da hierarquia do aplicativo [4]. Além disso, estão suscetíveis a maiores possibilidades de acidentes de trabalho. Porque, no caso da Rappi, a corporação envia pedidos sem levar em consideração o meio de transporte utilizado pelo/a entregador/a. “Há problemas de dimensão da compra, que colocam em risco a vida de motociclistas e das demais pessoas que circulam no trânsito” [5]. Situação semelhante aos dos carregadores (escravos de ganho) que carregavam desde objetos pequenos até pianos [6] e móveis nos ombros ou sobre as cabeças [7].

A partir de dados da Pesquisa Aliança Bike (2019) notamos a prevalência de jornadas prolongadas para os/as entregadores/as ciclistas. São longas horas de trabalho e extensos quilômetros percorridos durante o dia. Condições de trabalho que podem se aproximar das tipificações do artigo 149 do Código Penal Brasileiro, relacionado principalmente à jornada exaustiva. Em relação à escravidão contemporânea no Brasil, também destacamos a semelhança do "perfil" da maioria ser homem, jovem e negra [8].

Quando falamos da aproximação das condições de trabalho desses/as entregadores/as com as tipificações do artigo 149 do CPB, acrescidas pela Lei 10.803/2003. Destacamos a jornada exaustiva como “toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social.” E a condição degradante de trabalho como “qualquer forma de negação da dignidade humana pela violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os dispostos nas normas de proteção do trabalho e de segurança, higiene e saúde no trabalho” [9].

Desses/as entregadores/as ciclistas, ao realizarem as entregas, 30% pedalam mais de 50 km por dia. A média dos/as entregadores ciclistas trabalha de domingo a domingo, de 9 a 10 horas por dia com rendimento mensal de R$ 992,00. Esses/as trabalhadores têm sua dignidade negada. Como pôde ser visto, no cotidiano, nas pesquisas e em suas reivindicações, não possuem proteção do trabalho e de segurança, nem remuneração digna e tampouco a garantia de higiene e saúde no trabalho, em tempos de pandemia.

Como Ricardo Antunes afirma, a “industrialização do setor de serviços” [10] direciona os/as trabalhadores/as para uma escravidão digital. E nós ressaltamos esse trabalho digital como muito próximo das características da escravidão contemporânea mencionadas na lei acima.

No século XIX, apesar da hierarquia e conflitos existentes entre os livres, libertos e cativos, os vínculos de solidariedade existiram nas lutas cotidianas [11]. A história não se repete, a realidade é totalmente diferente.

No entanto, chamamos atenção para os laços de solidariedade explícitos na paralisação dos/as entregadores/as na quarta-feira passada. Embora vivenciem hierarquias e competitividade no dia a dia, eles/as se uniram para denunciar a falácia do empreendedorismo e reivindicar direitos para pôr limites na exploração da sua força de trabalho. Esta mobilização nacional evidenciou a força das classes trabalhadoras e a centralidade do trabalho para a manutenção do modo de produção capitalista.

A lição desta paralisação é que hoje são eles/as, amanhã poderemos ser todos/as nós. Digitalizados/as e plataformizados/as, sem direitos e sem controle algum sobre nossas vidas.

Marcela Soares é professora da Escola de Serviço Social e do Programa de Pós-graduação em Serviço Social e Desenvolvimento Regional da UFF.

*Notas*

[1] Esse é o caso da Rappi, de acordo com seus “Termos e Condições de Uso da Plataforma Entregador Rappi”.

[2] Terra, Paulo. Hierarquização e segmentação: carregadores, cocheiros e carroceiros no Rio de janeiro (1824-1870). In: GOLDMACHER, M. et al (orgs.) Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói/RJ: EDUFF, 2010, p. 78.

[3] “[...] uma das principais ocupações dos escravos ao ganho na cidade do Rio de Janeiro no século XIX foi a de carregador. Existem inúmeros relatos sobre a importância desses trabalhadores na primeira metade daquele século e, ao que tudo indica, eles continuaram a ser maioria entre os escravos ao ganho em sua segunda metade. Nesse período, no entanto, foi possível encontrar também trabalhadores livres como carregadores.” (idem, p.76).

[4] Porém, por esta via, nunca alcançarão o status dos/as “personal shoppers”que são aqueles/as trabalhadores/as com vínculo empregatício com a Rappi, responsáveis pelas compras nos supermercados conveniados e remetem aos/às entregadores/as. (RIGO, Bárbara; ABREU, Larissa. Relatório análise preliminar - aplicativo Rappi. SIT/RJ, 2019.).

[5] Idem, p.28.

[6] Moura, Clóvis. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Revista Afro-Ásia, n.14, 1983, p. 130

[7] Terra, 2010, p.77.

[8] Ver Aliança Bike. Pesquisa de perfil dos entregadores ciclistas de aplicativo, 2019. p.6 Disponível em: http://dx.doi.org/10.5027/psicoperspectivasvol18-issue3-fulltext-1674 Acesso em dezembro de 2019
e Ver: https://reporterbrasil.org.br/2019/11/negros-sao-82-dos-resgatados-do-trabalho-escravo-no-brasil/ Acesso em janeiro de 2020.

[9] Conforme Instrução Normativa da Secretaria de Inspeção do Trabalho nº 139/2018. Ver: https://www.legisweb.com.br/legislacao/?id=355915 Acesso em julho de 2020.

[10] Antunes, Ricardo. O privilégio da servidão. o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.

[11] “Embora palco de contendas, o serviço de transporte também foi um espaço de construção de redes de solidariedade.[...] É possível que os laços de solidariedade tenham também transposto diferenças de cor e de ofício.” (Terra, 2010, p.79).




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