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SEMANÁRIO

O Estado chinês coloca um limite aos gigantes da alta tecnologia

Juan Chingo

Ilustración: Marito Ce

O Estado chinês coloca um limite aos gigantes da alta tecnologia

Juan Chingo

A concentração da atenção mundial nas eleições nos Estados Unidos ao longo do mês de novembro ofuscou um fato não menor: a suspensão pelas autoridades chinesas da cotização prevista da filial do Alibaba Group Holding, Ant Group, nas bolsas de Xangai e Hong Kong.

Ant Group (Grupo Formiga), propriedade do magnata chinês Jack Ma, que quando jovem estudou língua inglesa e engenharia eletrônica e mais tarde teve uma crescente atividade empresarial desde os anos 1990 até a atualidade, converteu-se no maior conglomerado empresarial de finanças e comércio digital da China. Caso houvesse sido concluída sua oferta pública inicial de ações de 35 bilhões de dólares, prevista para o dia 5/11, teria destronado a oferta recorde de 29,4 bilhões da Saudi Aramco, o gigante petroleiro da Arábia Saudita, constituindo-se como a maior da história. A mesma teria representado a consagração ou validação de mercado do novo mundo da inovação financeira e da tecnologia financeira.

O acordo teria dado à empresa chinesa uma valorização maior que a da maioria dos principais bancos do mundo, encarnando as expectativas do mercado de que a nova tecnologia acabará por se impor ao sistema financeiro tradicional.

Um crescimento vertiginoso

O domínio dos pagamentos eletrônicos se desenvolveu a toda velocidade na China. Segundo o jornal El País:

O volume de transações alcançou em 2018 os 227,4 trilhões de yuans (cerca de US$ 33,1 tri) segundo dados do Banco Popular da China, uma cifra 28 vezes superior à de cinco anos atrás. A instituição prepara para este ano aquela que será a primeira divisa nacional digital. O app da Ant, Alipay, foi um dos atores chave nesse processo; junto a seu grande rival, WeChat, propriedade da Tencent.

Como diz o mesmo jornal:

O Alipay nasceu em 2004 como uma ferramenta para facilitar a confiança mútua entre os consumidores e os vendedores de Taobao, a plataforma de comércio eletrônico da Alibaba. Desde então, seu crescimento tem sido imparável: o app tem mais de 900 milhões de usuários na China e os QR codes com os quais os pagamentos são realizados já podem ser vistos em comércios do mundo todo. Uma vez que se popularizou o uso do Alipay para pagar por produtos de consumo e acumular poupanças, isso abriu a porta para que a Ant começasse a oferecer a seus usuários produtos financeiros como empréstimos, investimentos e seguros, todos eles altamente personalizados, graças à informação acumulada sobre o comportamento do usuário depois de milhares de transações.

Para se ter uma ideia do seu tamanho, no ano passado manejou pagamentos na casa dos 110 trilhões de yuanes (US$16 tri), quase 25 vezes mais do que o PayPal, a maior plataforma de pagamentos online fora da China. Porém como afirma The Economist:

Mais importante do que o seu tamanho é o que a Ant representa. Ela tem uma importância global não alcançada por nenhuma outra instituição financeira chinesa. Os bancos chineses são imensos porém ineficientes, com a carga que representa para eles a propriedade estatal. Em contraste, os financistas estrangeiros veem a Ant com curiosidade, inveja e ansiedade. Alguns falcões da Casa Branca, segundo se comenta, querem conter a companhia ou travar a sua IPO [lançamento público de ações -N.T.]. A Ant é a plataforma tecnológica financeira mais integrada do mundo: uma combinação de Apple Pay para pagamentos offline, PayPal para pagamentos online, Venmo para transferências, Mastercard para cartões de crédito, JP Morgan Chase para financiar consumo e iShares para investimentos, com um broker de seguros agregados, tudo em um aplicativo para celular.

Primeira mensagem, na China de Xi o partido manda

Com tudo o que foi dito, não surpreende que quando o presidente Xi Jinping detalha os planos da China para eclipsar os Estados Unidos, nenhum rosto venha mais rápido à mente do que o de Jack Ma. Então, quais os motivos de sua defenestração pública?
Para a maioria dos meios ocidentais, Jack Ma extrapolou ao dizer a verdade sobre as falhas do sistema financeiro da China. Efetivamente, dias antes da cotização pública recorde, Ma pronunciou um discurso em Xangai instando à reforma das regulações financeiras: “A China não enfrenta um risco financeiro sistêmico, e sim um risco que ainda carece de sistema financeiro saudável. Hoje em dia, os bancos ainda operam com uma mentalidade de casa de penhores…”. Criticando que havia demasiados controles nas regulações financeiras, “demasiados documentos que não lhe permitem fazer algo” apesar da falta de políticas de apoio, e arrematou dizendo que: “O que eu mais temo é que depois de tal supervisão, os riscos desapareçam, e os riscos relativos do departamento, porém toda a economia corre o risco de não se desenvolver”. Nesse mesmo fórum, Ma afirmou que o Acordo de Basileia, o grande consenso de regulação financeira dos principais países imperialistas e também adotado pelo G-20, era um esquema antiquado, mais interessado no controle de risco das instituições financeiras do que em promover o desenvolvimento das novas gerações e dos mercados emergentes.

Segundo o megaempresário chinês, o sistema financeiro deveria se apoiar menos nos grandes bancos e mais no conjunto de “lagos, lagoas, rios e riachos” que levem os recursos a todos os confins da economia.

Porém o orador principal da reunião de cúpula, no entanto, lançou uma mensagem diferente. Em sua primeira aparição pública em quase um ano, o vice-presidente da China, Wang Qishan, enfatizou a importância da estabilidade financeira: “Deve haver um equilíbrio entre o fomento da inovação financeira, a dinamização do mercado, a abertura do setor financeiro e a criação de capacidade reguladora”, disse ele. “A segurança é sempre o primeiro”. Não esqueçamos que Wang se converteu no segundo homem mais poderoso do país, como tsar da luta contra a corrupção do presidente Xi Jinping de 2012 a 2017. Para um alto executivo de um grande banco internacional de Hong Kong citado pelo Financial Times, o adiamento regulatório a Jack Ma aponta que Pequim “… quer amarrar a Ant antes que o monstro se torne incontrolável”. Como diz esse mesmo executivo, não esqueçamos que “os bancos na China não são somente o núcleo do sistema financeiro tradicional, são uma extensão da política monetária”. Poderíamos dizer que ao suspender a oferta pública inicial de ações da Ant no último minuto e repreender publicamente seu presidente e fundador Jack Ma, os reguladores financeiros da China demonstraram que ainda há uma força mais poderosa que a próxima onda de inovação financeira: o Estado. Como afirma Duncan Clark, autor do livro de 2016 Alibaba: The House that Jack Ma Built:

O partido comunista está empurrando de volta. Está mostrando sua negativa a permitir que os empresários saiam do seu trilho. O comércio é uma coisa. As finanças são claramente outra. Jack abraçou o poder da internet para potencializar o setor privado, porém aplicar esta química ao setor financeiro parece estar em outro nível.

Por trás do “Pare”, o temor a uma crise financeira

Até o dia de hoje, e apesar dos augúrios negativos, a China conseguiu evitar que a enorme acumulação de dívida gere uma crise financeira de grandes proporções. Porém os riscos estão mais presentes do que nunca. É que com uma dívida que alcança os 279% do PIB no primeiro trimestre de 2020, as autoridades chinesas estão decididas a limitar os riscos que esta dívida implica para a economia nacional.
Desde 2017, o governo vem tentando fechar a torneira financeira, porém este esforço se viu questionado pela crise sanitária, que poderia conduzir finalmente a um nível de dívida de 300% do PIB. Como afirma o jornalista residente em Tóquio William Pesek, autor de Japanization: What the World Can Learn from Japan’s Lost Decades:

Xi está rodeado de estrategistas muito inteligentes. Porém toda nação industrializada tem uma grande crise em algum momento. Pensemos no Japão em 1990, México em 1994, o sudeste asiático em 1997, Wall Street em 2008 e a Europa em 2010. Talvez a China possa vencer o destino. No entanto, as segundas ondas de Covid-19 poderiam devasta as exportações ou a demanda interna. Um aumento nos descumprimentos da dívida é um risco, aquilo que Rosealea Yao, da Gavekal Research, chama “O efeito Evergrande”. A referência é a China Evergrande Group, o desenvolvedor mais endividado do mundo que deve a ser credores mais de $ 120 bilhões de dólares. Aberração, ou canário na mina de carvão? Veremos. Se for este último caso, o ano de 2021 para Alibaba e muitos outros poderia tornar-se de repente muito perigoso.

Nesse contexto, as políticas creditícias agressivas de Jack Ma e do Ant Group arriscam provocar uma crise financeira. Para muitos, poderia surpreender que uma oferta de crédito de 300 dólares em média dê lugar a crises desse tipo. Porém se saímos da visão da China da qual só se fala no Ocidente, isto é a consumidora de produtos de luxo da nova classe média emergente, e olhamos com mais amplidão, veremos a existência de outra china de quase 1 bilhão de pessoas que em seu conjunto tem rendimentos anuais de 15 mil dólares; ou visto de outra maneira, o fato de que a média de rendimentos reais disponíveis é inferior a 300 dólares mensais para dois terços da províncias chinesas a partir de 2015. Dito isso, até mesmo míseros 300 dólares de crédito é muito para muitas partes da China. Existe uma preocupação real de que os produtos da Ant estejam indo além da “solvência” e se transformem num “subprime" à moda chinesa.

Não esqueçamos que as finanças na China foram sempre consideradas importantes demais para serem deixadas nas mãos do setor privado. Xi Jinping foi além, deixando claro em 2017 que a estabilidade financeira era tão crítica que deveria ser considerada como um aspecto da segurança nacional, em especial depois da queda da bolsa de valores de 2015, que colocou à prova o firme controle do partido sobre a economia.

Num mundo turbulento, o crescente alinhamento das empresas monopolistas aos interesses del Estado

Porém o contexto financeiro interno descrito se dá ao mesmo tempo no marco de uma economia mundial que depois do trumpismo - expressão e subproduto político da crise de 2008-2009 - alterou de forma radical as coordenadas da economia internacional deixando para trás a “globalização harmoniosa” de finais do século XX e começo do século XXI, com um processo desigual e combinado de desacoplamento das cadeias de valor em nível mundial.

Alibaba e seu patrão Jack Ma (que é membro do Partido Comunista) assim como outros gigantes tecnológicos chineses como Bytedance e Tencent, ainda que dependam do aval do PCCh para seus negócios, são ao mesmo tempo empresas que alcançaram certo grau de autonomia com respeito a ele, como demonstram suas ambições globais. Um primeiro golpe para essa visão ocorreu em 2018 quando os Estados Unidos bloquearam a aquisição pela Ant da MoneyGram, uma firma de transferências de dinheiro, o que teria estabelecido o grupo chinês como uma potência nos envios globais. Mais perto de casa, Pequim presta muita atenção o tempo todo à lealdade de Ma à pátria-mãe, em especial desde a compra feita por ele em 2015 do South China Morning Post, cuja sala de redação em Hong Kong é um microcosmo alentado por Ma entre a idiossincrasia de Pequim e a abertura ao mundo exterior.

Nesse marco turbulento da economia internacional, Xi Jinping vem enfatizando a importância de que os empresários chineses se concentrem mais nas oportunidades domésticas. Estas diretrizes se chocam com os apetites e ambições dessas firmas. Mas o agravamento do contexto internacional com a intensificação do intento dos EUA de destruir a Huawei, em conjunto com a conduta do governo estadunidense em tentar adquirir, numa espécie de suborno, a Bytedance, não vão a favor das ânsias globalizantes nutridas por elas. Em especial, o Partido Comunista fez em setembro um chamado para que se promovesse uma melhor educação ideológica para as pessoas que trabalham no setor privado, que se intensificassem os esforços de construção do partido nas empresas privadas, e se aumentasse a participação das empresas privadas nas estratégias nacionais.

Ou seja, o novo contexto internacional empurra a uma relação mais estreita entre as empresas chinesas e o governo chinês por necessidade geopolítica. Então, de um ponto de vista mais estratégico e de longo prazo, nos inclinamos centralmente a ver o intento de Pequim de aumentar o controle sobre o Grupo Ant não tanto como uma medida que busca esmagar o espírito empresarial de Jack Ma, nem tampouco dar ao Ant Group um golpe fatal (a companhia possuía 71 bilhões de yuans em efetivo e equivalentes no mês de junho, e é uma das instituições de maior importância sistêmica na China), mas sim como um forte chamado de atenção para mostrar ao grande capital privado a questão vital de que entre as empresas chinesas e o PCCh existe uma relação em que ambos se necessitam mutuamente. A última coisa que as autoridades querem é uma perda de confiança desestabilizadora em um negócio com um papel chave nas finanças do país. Porém é um tapa na cara de Jack Ma, que há alguns dias se jactou de que “sua introdução na Bolsa está ocorrendo fora de Nova York”. Este argumento, com seus matizes nacionalistas, não foi suficiente para satisfazer as autoridades chinesas. É que a enorme tensão da competição no mercado mundial e em nível interestatal exige do Estado, seguindo os termos da teoria clássica do imperialismo, um máximo de centralização e de poder. Isso pesa ainda mais no domínio tecnológico, onde ou bem as empresas digitais passam a se subordinar ao complexo burocrático-militar em sua disputa com os Estados Unidos, ou caso contrário seu futuro pode ser posto em questão. Jack Ma foi advertido. Aparentemente, pelo próprio presidente da China, Xi Jinping, que fez naufragar pessoalmente o lançamento do grupo Ant na Bolsa, segundo informa o Wall Street Journal. Tudo isso mostra o muito que há em jogo.

Traduzido do original por Edison Urbano


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Juan Chingo

Paris | @JuanChingoFT
Integrante do Comitê de Redação do Révolution Permanente (França) e da Revista Estratégia Internacional. Autor de múltiplos artigos e ensaios sobre questões de economia internacional, geopolítica e lutas sociais a partir da teoria marxista. É coautor, junto com Emmanuel Barot do ensaio "A classe operária na França: mitos e realidades. Por uma cartografia objetiva e subjetiva das forças proletárias contemporâneas (2014) e autor do livro "Coletes amarelos: A revolta" (Communard e.s, 2019).
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