A mobilização na França se insere em um contexto internacional marcado por contestações populares que colocam em questionamento as desigualdades e a exploração. Razões mais do que suficientes para preocupar os capitalistas franceses.
quinta-feira 5 de dezembro de 2019 | Edição do dia
Há alguns dias, a imprensa nacional [francesa] evidencia a preocupação do governo francês em relação à greve que se inicia hoje. As diversas tentativas de Macron [presidente da França] e seus ministros de limpar o terreno se mostraram um verdadeiro fracasso. O mesmo pode ser dito das tentativas de dividir a opinião pública apresentando o movimento de greve como uma luta “corporativista”.
Na verdade, a insatisfação por parte dos trabalhadores, da juventude precarizada, das classes populares frente às suas condições de vida, às desigualdades, mas também à degradação de direitos democráticos elementares é tão forte que o ódio destilado pelo governo e pelos periodistas acabou por cumprir a função de alimentar ainda mais essa radicalidade.
Assim, o governo e as patronais se preparam para um conflito social de grande magnitude, forte e massivo, mas que eles esperam que não se prolongará para além do final de semana. Mesmo assim, o nervosismo é palpável. A França experimentou no último ano a expressão de uma ampla crise social com [a mobilização] dos Coletes Amarelos, que questionam o caráter rotineiro e adaptado ao regime de exploração capitalista francês.
Este movimento deixou vestígios na vida política e social do país e começamos a detectar sintomas de “coleteamarelização” no centro das organizações operárias. Este é um elemento muito preocupante para o governo e, principalmente, para as patronais. É o que fica bastante claro no último editorial do jornal [burguês] Les Echos: “Enfim, é inadmissível, e talvez o mais grave em relação ao que pode vir futuramente, ver as organizações sindicais perdendo força e arriscando a se envolver em um conflito social no qual ninguém sabe de fato até que ponto conduzirá seus atores. Não é um mistério pra ninguém (...) que as organizações em questão já perderam o controle de suas bases para alguns setores ultra-radicalizados”.
No entanto, seria impreciso pensar que esse nervosismo da parte das classes dominantes francesas e de seu governo seja uma resposta apenas a fatores nacionais. Há vários meses e especialmente neste segundo semestre, em diferentes países em várias regiões do mundo, mobilizações populares abalaram ou estão abalando governos e regimes.
Essas mobilizações são desencadeadas algumas vezes como resultado de medidas parciais, como o aumento do preço da gasolina ou do ticket de metrô como no Equador e no Chile; como resultado da imposição de um imposto injusto como no Líbano; como em decorrência de medidas de austeridade (Colômbia). Às vezes, a contestação foi provocada por decisões políticas antipopulares, como na Argélia e no quinto mandato, sentenças de prisão contra líderes políticos como no processo de independência da Catalunha, a lei sobre a extradição de presos políticos em Hong Kong, a resistência contra o golpe de Estado na Bolívia ou ainda as declarações homofóbicas de um político odiado como em Porto Rico. Também podemos mencionar as mobilizações da juventude precarizada contra o desemprego e a pobreza, como no Iraque e, em certa medida, no Irã.
Todos esses processos de lutas populares têm pelo menos um ponto em comum: o gatilho é rapidamente "esquecido" e os manifestantes começam a questionar todo o conjunto do regime, "do sistema". É essa dinâmica que assusta Macron, mas também os vários governos que enfrentam o risco da explosão de descontentamento popular. Para dar apenas mais um exemplo, na semana passada o Financial Times noticiou como o governo Bolsonaro no Brasil decidiu adiar um conjunto de medidas anti-sociais por medo de ver um movimento como estes que se explodiram na região se desenvolver no Brasil.
Nesse contexto, fica claro que o movimento de greve na França a partir de hoje, 5 de dezembro, não está sozinho e pode se tornar uma nova frente da luta de classes em nível internacional. Este contexto internacional certamente influencia na determinação de trabalhadores, jovens, mulheres, ativistas ambientais que entrarão em greve e se manifestaram hoje e nos dias seguintes.
As lutas em regiões tão diversas (com contradições significativas) criam um contexto de legitimação da luta dos trabalhadores e popular. Ao mesmo tempo, a mobilização na França por sua parte serve para dar mais força às lutas em andamento em todo o mundo; não apenas porque a França é um dos países imperialistas mais importantes do mundo, mas também porque sempre foi palco de importantes lutas e mobilizações que inspiraram outros povos ao redor do mundo.
No entanto, existe uma diferença muito importante entre a mobilização na França e as outras que estão ocorrendo atualmente, mesmo nos processos mais avançados e profundos como o do Chile: enquanto em todos esses países os movimentos assumiram um caráter essencialmente "cidadão", onde os trabalhadores intervêm diluídos na massa e não organizados como força social, na França o movimento coloca no centro a ação da classe trabalhadora, especialmente alguns de seus principais bastiões de organização, como a SNCF [Sociedade Nacional Ferroviária Francesa, uma das principais empresas estatais da França, responsável pela exploração comercial dos serviços de transporte ferroviário tanto de passageiros quanto de mercadorias] e a RATP [Empresa pública autônoma dos Transportes Parisienses, responsável por todos os transportes públicos de Paris e arredores], com os métodos próprios e tradicionais da classe trabalhadora, a greve. Esses métodos e a centralidade da ação dos trabalhadores, em um contexto de luta de classes internacional e uma tendência à "coleteamarelização", são uma combinação muito perturbadora para a burguesia, mas muito encorajadora para os trabalhadores, os jovens e as classes populares na França e no mundo.
Nesse sentido, se o movimento de greve conseguir se prolongar para mais dias e conquistar outros setores do setor público e privado na França, assumindo um caráter de uma greve geral política contra a política de Macron, isso poderá se tornar um elemento central da situação mundial e inspirar outros trabalhadores em todo o mundo, começando por aqueles que já estão mobilizados agora, mas diluídos em movimentos “cidadãos”.
Esse elemento é central porque a classe trabalhadora continua sendo o sujeito social capaz de não apenas unificar os vários setores explorados e oprimidos da sociedade, mas também de atingir os capitalistas no ponto onde podem de fato serem profundamente abalados, e criar as bases para colocar todo o sistema em questionamento. Essa é uma das fontes de preocupação das classes dominantes na França frente ao movimento que começa hoje. Depende de nós fazer com que seus pesadelos se tornem realidade.