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Os militares e a república 60 anos depois

Thiago Flamé

Os militares e a república 60 anos depois

Thiago Flamé

É muito grave a imposição de Lula de proibir atos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar de 1964. Significa o avanço do revisionismo histórico, a aceitação oficial da versão dos militares como um relato válido, e não mais criminoso. Se trata do ponto culminante de um pacto que, por tudo que envolve, podemos dizer que se trata de uma segunda anistia.

É muito grave a imposição de Lula de proibir atos oficiais sobre os 60 anos do golpe militar de 1964. Significa o avanço do revisionismo histórico, a aceitação oficial da versão dos militares como um relato válido, e não mais criminoso. Se trata do ponto culminante de um pacto que, por tudo que envolve, podemos dizer que se trata de uma segunda anistia. Se a primeira perdoou os crimes do golpe militar de 1964, a segunda vem para impor duplo esquecimento. Ao mesmo tempo que nega até mesmo o direito à memória em relação aos crimes da ditadura, pretende passar uma borracha em tudo o que aconteceu antes do 8 de janeiro de 2023 na história do Brasil. Incluída a aceitação de toda a obra do golpe institucional de 2016 e o perdão para todos os crimes cometidos nos seus desdobramentos.

Em que sentido podemos ver o silêncio imposto por Lula como expressão de uma segunda anistia aos militares? Tomado em si mesmo, não tem mais do que um caráter simbólico, mas se o tomarmos como o resultado do golpe institucional de 2016, de toda a avalanche de ataques durante o governo Temer e continuada no governo Bolsonaro, em que os militares assumiram um papel protagonista, é que se revela em toda a amplitude o seu significado histórico reacionário. A ofensiva golpista provocou um choque à direita nas relações entre as classes. Em todas as esferas, nas relações econômicas, raciais, de gênero e ambientais.

Essa segunda anistia de Lula aos militares, parte da tentativa de estabilizar um novo regime político, não é ainda um pacto consolidado. Está atravessado por inúmeras tensões, internas e externas. O processo do STF, sob comando do ministro Alexandre de Moraes, sob o pretexto de defender a democracia, avança no fortalecimento dos poderes bonapartistas do judiciário. Não é um acaso que o processo sobre os militares segue o mesmo roteiro da denúncia que o Financial Times publicou em junho do ano passado, e ameaça além de Bolsonaro, integrantes da cúpula militar mais comprometidos com Bolsonaro, um caminho que Lula deu todas as sinalizações de que preferia evitar. O mesmo STF que inocentou o general Richard Nunes de qualquer suspeita de envolvimento do acobertamento do caso Marielle e ignorou a responsabilidade dos interventores federais sobre a segurança pública carioca. Não se pode inclusive descartar que a prisão de Bolsonaro e de alguns militares de alta patente no processo do 8 de janeiro, seja o custo pago por um pacto que preserve o conjunto das forças armadas. As coordenadas geopolíticas em disputa são um dos fatores que dificultam sua consolidação. A falta de um novo ciclo de crescimento econômico e a influência que Bolsonaro conserva nas forças armadas e em setores de massas reacionários são outros dificultadores.

Uma breve cronologia do nascimento e da crise da Nova República

O período da história brasileira a partir da crise da ditadura talvez possa ser dividido em três grande fases. De 1979 até 1988 foi o período de ascenso operário e popular e da transição da ditadura para o regime de 1988. As grandes greves operárias de 1978/80, que tiveram como epicentro o ABC paulista, colocaram em crise o regime militar e abriram a possibilidade de concretizar a palavra de ordem lançada pela juventude e pela vanguarda operária em 1968, massacrada pelo AI-5: Abaixo a ditadura. O período de transição está marcado pelo ascenso operário e pelas tentativas da burguesia de retomar o controle do processo político, que culminaram na constituinte de 1988. Para desviar o ascenso foram concedidos uma série de direitos sociais, preservando os militares e os órgãos de repressão da ditadura, a manutenção da dívida pública e abrindo caminho para o início da ofensiva neoliberal e a aceitação do chamado “consenso de Washington” em 1992.

O segundo período é o da estabilização e crise do pacto social que deu origem à Nova República. A derrota do movimento operário criou as condições para a estabilização monetária através do plano real e a imposição das privatizações e de todo o receituário do FMI. Ao mesmo tempo, as conquistas sociais de 1988, a existência de um partido operário de massas legalizado pela primeira vez na história brasileira, um certo consenso social em torno de questões elementares como a preservação da Amazônia e os direito dos povos indígenas, ajudaram a conformar uma visão otimista em relação ao futuro, de que apesar dos fortes correntes que ainda nos prendem ao passado escravagista e ditatorial do Brasil, estávamos lenta e gradualmente avançando. O PT e Lula foram fundamentais para que a crise do neoliberalismo no Brasil, que provocou revoltas de massas em toda a América do Sul, fosse desviado por via institucional. O primeiro governo Lula abriu um período de maiores expectativas em relação ao futuro. Favorecido pelo boom das commodities, os governos petistas fortaleceram a confiança de que gradualmente avançaríamos. Foi o momento em que se dizia que o Brasil não era mais o país do futuro, mas do presente.

Só que o avanço foi se mostrando lento demais e no contexto da crise econômica mundial e sob influência das mobilizações de massas em várias partes do mundo, as expectativas de melhorias se chocavam cada vez mais diretamente com a realidade do sistema capitalista e explodiram com as revoltas de junho de 2013 que tinham como característica fundamental a luta por direitos universais. No seu sentido mais profundo, junho de 2013 foi um questionamento pela esquerda da juventude e de setores da classe trabalhadora, aos elementos conservadores do pacto de 1988, exigindo a realização prática das promessas da Nova República e uma abriu uma terceira fase: de crise da Nova República. Na medida em que o PT havia se constituído como um partido de defesa da ordem, e na ausência de um partido de esquerda independente do PT que pudesse organizar essa revolta, quem se aproveitou foi a direita através da operação lava-jato. A crise da Nova República se abriu pela esquerda, mas foi aproveitada pela direita. Os anos do golpe foram os anos de destruição dos direitos assegurados pela constituinte de 1988. É verdade que muitos deles já haviam sido amputados por sucessivas reformas constitucionais durante os governos FHC e durante os próprios governos petistas. Mas as condições da crise capitalista mundial exigiam uma ruptura mais profunda. Seguindo essa cronologia, que certamente não é a única possível, estaríamos agora na transição para um quarto período, de estabilização de um novo regime político pós golpe institucional. No seu nome, ainda se auto proclama como a Nova República, como saudação a bandeira ainda está vigente a mesma constituição, mas pelo seu conteúdo social, pelo choque à direita de todas as relações de classe que ele busca institucionalizar, vão no sentido de um novo arranjo político.

A primeira anistia significou um perdão aos crimes cometidos pelos militares e pelos empresários que apoiaram o golpe. A Constituição de 1988 preservou os militares, as instituições de repressão e parte da legislação autoritária. Porém, frente ao ascenso operário, o Estado foi obrigado a reconhecer oficialmente os crimes cometidos, o direito à reparação e a memória, tratando a anistia abertamente como fruto de um pacto político de impunidade, um mal necessário para a superação sem novos conflitos dos crimes do passado. A posição que Lula adotou desloca ainda mais a direita a posição oficial sobre a ditadura. Perdoados os crimes e preservadas as instituições, agora os militares devem ser perdoados em pensamento. Privadas do direito à justiça, agora as vítimas do golpe não têm sequer o direito à memória reconhecido oficialmente.

Um triunfo da casta militar, que nunca aceitou na prática os termos do pacto de 1988, legitimando uma posição muito maior de protagonismo político do que aquela que teve no regime de 1988. Uma demonstração prática de que a conservação do artigo 142 da Constituição, que atribui às forças armadas o papel de conservação da ordem interna (mesmo mediada que seja a pedido dos outros poderes) foi a barricada ideológica que os militares usaram para agora alcançar novas posições.

Essa teoria tão favorável aos militares e ao conjunto da classe dominante que os apoiou soterra um dos mais importantes direitos democráticos das massas populares, o de se rebelar contra a tirania, legitima os próprios atos ditatoriais, tornando igualmente criminosos os atos de resistência contra o governo ditatorial. Lula, que nunca foi de esquerda ou socialista, e pelas circunstâncias históricas muito mais do que pelas suas concepções, se tornou o grande líder de um partido de esquerda e da classe trabalhadora, sempre esteve muito mais próximo da teoria dos dois demônios.

Algumas coordenadas do novo pacto reacionário

A posição adotada por Lula no seu terceiro governo tenciona ainda mais à direita a posição oficial da anistia e do pacto de 1988, que fora adotada tanto pelos anteriores governos do PT como pelos do PSDB, ou seja, todos os governos anteriores ao golpe institucional de 2016 e o governo Bolsonaro. Um retorno àquelas posições do sindicalismo oficial, do qual Lula fazia parte, anteriores ao ascenso operário.

É resultado de todo o processo anterior, marcado pelo retorno gradual dos militares à política, uma das expressões mais reacionárias do golpe de 2016 e do pacto costurado em base a aceitação da obra do golpe. Ao se quebrar pela direita o pacto social de 1988, a burocracia sindical diminuiu o seu papel político na construção da hegemonia burguesa e o aparato de repressão, judicial e militar se ampliou. Com menos elementos de consenso, menos capacidade de impor uma aceitação para condições de dominação apoiadas num nível qualitativamente maior de exploração, os aparatos de coerção assumem um maior protagonismo.

A grande tarefa histórica do governo de Lula e Alckmin é a de consolidar uma nova hegemonia burguesa estável sobre as bases de um avanço histórico nos níveis de exploração. Os sindicatos, a partir da aceitação da reforma trabalhista e da reforma da previdência, foram chamados de volta à mesa, mas não com a mesma força de décadas atrás. Com um lugar de destaque muito maior estão os mesmos generais da ativa, mas também da reserva, que comandaram toda a ação de participação política dos militares, primeiro como força de retaguarda da operação lava-jato e depois como espinha dorsal do governo Bolsonaro. Se posicionam para cumprir um papel ainda maior no futuro, na medida em que os níveis de exploração e de pobreza forem também se expressando num aumento da presença do crime organizado internacional e da violência social. Legitimadas como forças de manutenção da ordem contra o crime organizado, as forças armadas no comando das polícias militares e seus batalhões especializados em contra-insurgência como a ROTA paulista, também estarão fortalecidas e à postos para reprimir com a maior violência toda a expressão de descontentamento que questione os estreitos limites desse novo pacto reacionário. O que está em curso agora através da incorporação de setores inclusive da extrema direita militar no pacto com a Frente Ampla exacerba os seus elementos mais reacionários.

As bases estruturais débeis nesse novo pacto conservador

Ao contrário das grandes esperanças populares que as diretas já, a constituinte e a eleição de Lula em 2002 representaram, o novo pacto não está ancorado na esperança, mas no ceticismo. Sua base é a traição histórica do PT, que se converteu num partido visto como igual aos demais e, agora, aliado a Geraldo Alckmin avança ainda mais a direita, para ocupar o espaço deixado pela crise do PSDB. A ideia que sustenta a frente ampla não é a de melhorias lentas e graduais, mas o de conter o ritmo da piora. O “menos pior" não é um alicerce sólido para legitimação de um pacto social, e, por isso, a direita militar vai cumprir um papel superior.

A Frente Ampla prometeu uma melhoria nas condições econômicas, mas a dinâmica da economia internacional não aponta para uma recuperação sustentada, nem falar de um novo boom. No atual momento, o governo comemora o menor índice de desemprego desde 2015, último ano de governos petistas. Só que a inflação dos alimentos aumentou desde dezembro e pode ser um dos fatores que pressiona a popularidade de Lula. Nessas condições, o novo regime em construção não só é mais conservador, como mais instável que o regime de 1988.

Se do ponto de vista interno a Frente Ampla tem pouco a apresentar, as contradições geopolíticas cada vez mais agudas também não ajudam o plano de estabilização política da Frente Ampla. No primeiro ano de governo Lula deu um grande peso para reconstituir os laços geopolíticos com China, Argentina e outros países do Sul Global. Os resultados até econômicos foram até agora pequenos apesar das grandes promessas e a vitória de Milei na Argentina trouxe dificuldades adicionais. As pressões vindas da geopolítica mundial dificultam ainda mais a construção de uma hegemonia estável.

Desde os primeiros dias de governo, inclusive nos dias seguintes ao ato de 8 de janeiro, Lula mostrou uma firme intenção de blindar os militares e abrir caminho para a pactuação. Em troca de um novo pacto de esquecimento, e de vultosos projetos na indústria bélica, Lula garantiu apoio para sua reorientação geopolítica. Trouxe uma enorme comitiva militar da China e promessas de compras e parcerias em áreas militares. Recentemente também vieram à tona as negociações secretas com a França, apesar dos atritos em relação ao Acordo Econômico UE-Mercosul, que não só reafirmaram os acordos do submarino nuclear, como também abriram a possibilidade de colaboração na área de combustíveis atômicos, além da construção dos submarinos. Essas movimentações tensionam as relações com os EUA e adicionam um complicador para o pacto de impunidade.

O envolvimento de militares e inclusive do próprio alto comando com as ameaças golpistas de bolsonaro, por mais que nunca tenham seriamente planejado um golpe, são uma arma que os EUA utilizam para ameaçar a tentativa de uma pactuação de Lula com os militares que implique da consolidação de um novo realinhamento geopolítico do Brasil e na reversão da subordinação mais profunda com os EUA implementada a partir do governo Temer. Foi pela via da colaboração com a justiça brasileira que os EUA, durante os governos do Partido Democrata, ajudaram a impulsionar a lava-jato e não é possível ignorar a enorme influência e pressão, aberta e descarada, que a administração Biden, vem fazendo para interferir na política interna brasileira, através da CIA, da embaixada e por múltiplas vias de relações diretas entre o judiciário e forças armadas brasileiras e estadunidenses. Essa interferência se equilibra entre dois objetivos, que por vezes podem ser contraditórios dentro do cenário político brasileiro, combater os aliados de Trump e evitar uma maior aproximação do Brasil com a China.

Como agravante deste quadro de tensionamentos e disputas em potencial, a incerteza sobre as eleições dos EUA em novembro se conecta profundamente com a situação política brasileira, e na medida em que Trump se fortalece, mais encorajada a extrema direita bolsonarista se sente para tentar reagir contra a ofensiva do bonapartismo judicial apoiada pela administração Biden. Começam a surgir setores das cúpulas militares que buscam contrapesar os acordos com China e França mantendo portas abertas para a colaboração com os EUA na Amazônia.

Diante deste quadro complexo em que avançam os pactos reacionários por cima, ao mesmo tempo que apesar de atacado e isolado, o bolsonarismo mantém relativamente sua base de massas, as contradições para uma estabilização do novo regime são enormes. A história, como provamos amargamente nos últimos anos, não se move linearmente, mas através de giros à direita e à esquerda que tendem a ser cada vez mais convulsivos. O pacto social em curso, que estamos chamando neste aniversário do golpe de uma segunda anistia, para frisar a profundidade do seu significado reacionário, não significa que a possibilidade de construção de uma esquerda revolucionária à altura dos desafios esteja mais distante do que 20 anos atrás. A desmoralização das instituições políticas, o surgimento de uma extrema-direita radicalizada, a falta de perspectiva de uma juventude a qual só oferecem uberização, novo ensino médio e repressão, podem ser os combustíveis que alimentem o ressurgimento do inconformismo de esquerda.


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Thiago Flamé

São Paulo
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