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Patti Smith, a artista criada em fábrica e o relato de uma geração

Gabriela FarrabrásSão Paulo | @gabriela_eagle

segunda-feira 11 de junho de 2018 | Edição do dia

Patti Smith nasceu em 1946, em Chicago. Conhecida como a precursora do movimento punk, foi criada em abrigos operários até sua partida para Nova York atrás do sonho de ser artista. Esse período da sua infância ao estrelato, com o lançamento de seu disco de estreia, Horses, é narrado em seu livro Só Garotos, que tem como foco sua relação com o fotógrafo Robert Mapplethorpe.

A garota magrela, que se vestia como rapaz, com os cabelos sempre desgrenhados, canta como se recitasse suas longas letras que ficam entre a poesia e o rock sobre a fábrica que cheira a mijo, onde trabalhou aos 19 anos para ajudar os pais no sustento da casa com quatro filhos e pagar seus estudos. Estudava para se formar professora a pedido de seu pai que a considerava feia para conseguir arranjar um marido e via a formação para professora como um plano seguro para a filha. Essa é Patti Smith e a denuncia biográfica da condição da mulher, que mesmo estudando era privada de todo conhecimento e engravidava sem saber nem sequer que o que tinha feito era sexo, como foi o caso da cantora que deixou seu primeiro filho com uma família que o queria e teve que seguir sua vida.

Sixteen and time to pay off
I got this job in a piss factory inspecting pipe
Forty hours thirty-six dollars a week
But it’s a paycheck, Jack

Sua partida para Nova York em busca do sonho de ser artista se dá também pela falta de perspectivas que encontra em Nova Jersey. Depois de ser demitida de uma gráfica, onde era perseguida pelas outras trabalhadoras por ser considerada comunista ao ser vista lendo Illuminations, de Rimbaud, ela se vê na fila de espera para trabalhar na fábrica de prensagem da Columbia Records e na fábrica de sopas Campbell (marca que mais tarde viraria a icônica obra de Andy Warhol, à qual Patti fazia criticas dizendo que a única coisa que a arte de Warhol fazia era espalhar coisas de seu próprio tempo, quando ela sempre tentou transcender o presente). Com a certeza de que não queria voltar à fábrica, parte para Nova York, a cidade grande onde os sonhos eram possÍveis.

Patti Smith chega em Nova York em 1967, auge do movimento hippie e beatnick, efervescência cultural, onde ela era mais uma jovem dormindo nas ruas à espera de alguma coisa que não sabia bem o que era. Nas palavras de Patti encontramos uma geração que só tinha como certeza o desejo de liberdade, a vontade de não voltar para as fábricas onde foram criados e para as igrejas onde foram educados á obediência. O desejo de se libertar era maior que o desejo de contestação.

O encontro com Robert Mapplethorpe - que viria a ser um grande fotógrafo e mais uma vítima fatal da AIDS, a doença recém descoberta que devastou uma geração que se iniciava na experimentação sexual - é descrito como o encontro com o príncipe que salva Patti e é com quem finalmente consegue um lugar para morar. Ele é quem a salva. É quase impossível ­reconhecer a grande performer, que não deixa nada a dever a grandes artistas como Jim Morrison (sempre uma referência a ela) se colocando na posição de donzela que foi salva por um grande amor. Ela se mostra como a artista que, mesmo em busca de liberdade, recai­ inconscientemente no papel que anos de patriarcado ensinaram-na a ocupar. Não é acaso Patti dizer que passou a experimentar uma libertação maior quando saiu do apartamento que dividia com Robert.

Esse conservadorismo em certo aspecto é reconhecido por Patti quando Robert se revela homossexual. Ela admite ter preconceitos sobre o que era um homossexual e percebe que em realidade nada sabia sobre isso. Smith diz que nada a habilitara a receber a notí­cia da homossexualidade de Mapplethorpe. O despreparo dela serve de analogia a uma geração que passava por profundas mudanças, mas se via perdida diante delas. A morte de John Coltrane, Marthin Luther King, Kennedy, são todas mortes de esperanças prematuras de uma geração que, sem rumo, se refugiava em sua arte.

Até a morte de Robert, ele e Smith foram companheiros. Os anos que se seguiram vivendo no Hotel Chelsea, onde inúmeros artistas sem teto moraram barganhando o pagamento de seus quartos com obras de arte, quadros, poesias, discos, formaram os dois. Mapplethorpe que até então tinha dado vazão a sua arte em pinturas, desenhos e colagens, se descobre na fotografia, onde atingiria seu auge como artista bem dito nos mais altos cí­rculos e onde também conseguiria registrar o submundo LGBT, que experimentava uma libertação nos anos 70 e 80. Patti descobriu a vontade de cantar, de transformar suas poesias em rock. Sua primeira experiência foi essa vontade levada ao pé da letra: ela recitando seus poemas sobre o som de uma única guitarra. Foi esse o caminho que a levou a “Horses” , seu disco de estreia.

Horses é a voz de Patti Smith encontrando uma maneira de ser ouvida, de canalizar toda a sua vida, como experienciou cada acontecimento e sentimento, e como colocou isso em seus poemas e suas histórias cantadas. Quem ouvia Horses pela primeira vez se deparava com a já incrível “Glória” , feita em parceria com Van Morrison. Patti Smith não estava estreando imaturamente, ela sabia exatamente o que queria colocar no disco que gravara a muito custo. “Glória” é referência clara a música de mesmo título dos Doors, fala sobre uma garota chamada Gloria, dona de seu próprio desejo e vontade, delatando uma geração que não obedecia mais as regras dos bons costumes ditadas pela sociedade. Mas Smith subverte ainda mais, pois quando ela, mulher, canta sobre a garota que sobe ao quarto dela, faz alusão ao lesbianismo rompendo ainda mais com as regras em vigor. Horses é também um disco triste, sintomas de uma época de esperanças efêmeras e revoltas que não passavam de um sentimento que não conseguia se realizar de forma concreta. O suicídio, tema sempre caro a Smith, aparece em “Redondo Beach” e “Birdland” . “Redondo Beach” , que se camufla em uma levada ska e se inicia falando sobre um término de relacionamento leva-nos a uma história de suicí­dio. Em “Birdland” é o filho que se mata para encontrar com o pai morto. Nesse disco apontado como o precursor do movimento punk, as musicas que mais apontam para esse caminho talvez sejam “Free Money” e “Break it up”, e também são onde encontramos algo de biográfico sobre Patti. “Free Money” soa como uma ironia, onde ela chama atenção a necessidade do dinheiro e nos remonta as inúmeras cenas relatadas pela cantora em que não teve dinheiro para comer ou morar depois de sua mudança a Nova York. “Break it up” é sobre romper consigo mesmo dolorosa, mas necessariamente; as guitarras acompanham enquanto Smith e outras vozes gritam “break it up”. “Kimberly” traz as lembranças da gravidez inesperada que teve aos 19 anos que a levou a deixar seu filho com uma famí­lia que o queria; a Joana D’Arc olhando-a é a estátua que ela visitou nesse dia e jurou que não voltaria a fábrica onde trabalhava e onde sua vida era desperdiçada na obediência e exploração diária. O disco encerra com “Elegie” , a música mais triste dessa obra, onde a voz de Patti se arrasta sobre uma atmosfera densa falando sobre a solidão, onde tudo o que se deseja são os amigos próximos; a famí­lia não é mais o centro nuclear da sociedade, há agora uma independência individual e as relações se dão por motivos além de uma simples ligação sanguínea.

Patti Smith junto com uma geração rompeu definitivamente com uma vida que reservava o mesmo destino aos jovens: trabalhar nas fábricas, frequentar a igreja aos domingos, constituir famí­lia e repetir esse ciclo garantindo mão de obra obediente para exploração. Porém, se houve a vontade de se colocar em uma nova posição, não houve vontade ou possibilidade de enfrentar o mal que criava esse sistema.


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Música    Cultura



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