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SEMANÁRIO

Revolta e revolução no século XXI

Matías Maiello

Revolta e revolução no século XXI

Matías Maiello

Desde o início da crise capitalista de 2008 aconteceram dois grandes ciclos da luta de classes a nível internacional. No primeiro vimos no “Ocidente” revoltas essencialmente pacíficas, como a dos “indignados” do 15M espanhol. Foram seguidos por movimentos como o da Praça Taksim na Turquia, ou o massivo junho de 2013 no Brasil. Em situações de crise maior, como na Grécia em 2010, tornaram-se processos da luta de classes mais agudos, que foram desviados; enquanto que, nos cenários mais “orientais” da “Primavera Árabe”, que enfrentaram ditaduras, adquiriram uma forma muito mais violenta, como no Egito em 2011, onde o movimento da Praça Tahrir terminou marcando o início de um processo revolucionário que foi fechado rapidamente a sangue e fogo

Imagem: Freepik.

Atualmente atravessamos um segundo ciclo. O sinal de seu início foi a irrupção dos Coletes Amarelos na França no fim de 2018. Diferente dos “indignados”, partiram de um nível de luta de classe superior e mais violenta, com uma repressão que há tempos não se via no interior das democracias imperialistas. Aos setores que tinham sido protagonistas do ciclo anterior, se somaram importantes contingentes das camadas baixas e precarizadas da classe trabalhadora, especialmente das periferias. Apontou contra o governo de Macron exigindo sua queda e inclusive teve elementos de auto-organização, como as “Assembleias das assembleias”, que não chegaram a se desenvolver.

Também vemos atualmente maiores níveis de enfrentamento no segundo levantamento catalão que se encontra em desenvolvimento, ou nos protestos que vêm acontecendo em Hong Kong. Por outro lado, se reativou a “Primavera Árabe” com os levantamentos na Argélia e no Sudão. No Iraque devastado pela guerra aconteceram protestos massivos contra o desemprego e a carestia de vida, com uma repressão que deixou uma montanha de mortos. No Líbano multidões se mobilizam contra o governo. Na América Latina, as jornadas revolucionárias que atravessaram o Chile, ou anteriormente o Equador em menor escala, são parte de um ciclo de luta de classes que inclui Porto Rico, Honduras e Haiti, onde também se mostram enfrentamentos mais agudos e a repressão com o exército nas ruas.

O pano de fundo destes processos não são em geral grandes catástrofes (guerras ou cracks econômicos), como aconteceu, por exemplo, na primeira metade do século XX, mas sim uma crise do capitalismo que se arrasta desde 2008 e que passou por diferentes momentos. Esta particularidade se expressa, em especial neste segundo ciclo, no protagonismo, em termos gerais, de dois setores diferentes.

Um que poderíamos chamar, por falta de uma denominação mais ilustrativa, dos “perdedores relativos” da globalização, aqueles que de alguma maneira conseguiram algum avanço (ainda que não seja mais do que sair da pobreza) e viram suas expectativas de progresso frustradas pela crise. Um amplo espectro de classe que vai, por exemplo, desde os jovens universitários (“superestudados”, para os padrões capitalistas), subempregados e precarizados, que tiveram peso determinante no primeiro ciclo pós-2008 na Europa, até a chamada – eufemisticamente – “nova classe C”, composta em grande medida por assalariados, na América Latina, que (sob o boom das commodities) saiu da pobreza mas se chocou, por exemplo, com o estado decadente dos serviços públicos (Brasil).

O outro grande setor, seguindo os termos anteriores, poderíamos chamar de “perdedores absolutos” da globalização. Setores empobrecidos, precarizados, quando não desempregados, especialmente da classe trabalhadora, muitos deles jovens, que ficaram virtualmente por fora do “pacto social” neoliberal, que em muitos casos foram expulsos para as periferias das grandes cidades, sendo em muitos casos estigmatizados pela burguesia e pelos grandes meios de comunicação. Este segundo grupo é o que vem deixando sua marca especialmente neste segundo ciclo de luta de classes. Os vimos irromper nas ruas do centro de Paris e da França com os Coletes Amarelos. Os vemos atualmente no processo chileno, entre eles muitos dos mais de meio milhão de jovens “nem-nem” [nem trabalham nem estudam – nota do tradutor], que são especialmente reprimidos nos bairros e criminalizados.

Neste segundo ciclo, ambos setores formam a argamassa que dá corpo aos protestos, sendo a irrupção dos “perdedores absolutos” o que dá um carácter mais violento e explosivo a este segundo ciclo de luta de classes, que no entanto compartilha até agora com o primeiro uma característica comum fundamental: a primazia da dinâmica da revolta.

As revoltas e o “Estado ampliado”

As revoltas se compõem de ações espontâneas que liberam as energias das massas e podem ter importantes níveis de violência. Mas diferente das revoluções, não adotam como objetivo substituir a ordem existente senão pressionar para obter algo. Não há um muro entre elas. As revoltas contêm em si a possibilidade de superação dessa fase de ações de resistência ou atos de pressão extrema. Podem ser momentos de um mesmo processo que abra uma revolução ou não. Depende de seu desenvolvimento, especialmente, de se a classe trabalhadora e o movimento de massas podem ir além em sua consciência e organização.

Neste novo ciclo vimos a potencialidade desta dinâmica de revolta assim como seus limites. Mostraram como frear os ataques capitalistas nas ruas, como vimos nas jornadas revolucionárias contra Macron na França, no Equador contra Moreno, agora no Chile contra Piñera, inclusive derrubaram governantes como Bouteflika na Argélia, Bashir no Sudão ou Roselló em Porto Rico. No entanto, as reformas concedidas – como as propostas hoje no Chile – demonstram que são superficiais no marco de uma estrutura capitalista que multiplica constantemente a desigualdade e está atravessada pela crise. Inclusive as quedas de governos acontecem no marco da continuidade de regimes repudiados pelas massas.

Estes limites respondem a uma característica distintiva da revolta que é que o movimento de massas intervém desorganizado, e que na atualidade se expressa especialmente em seu caráter “cidadão”. As redes e as novas tecnologias, que nos recentes processos foram muito úteis desde muitos pontos de vista, especialmente, por exemplo, no caso do Chile ao redor da denúncia da repressão dos Carabineros [polícia chilena – nota do tradutor] e do Exército, também contribuem à lógica da atomização. Grandes convocatórias que viralizam mas sem gerar espaços de deliberação e organização, ou favorecendo uma verticalidade que se transforma em obstáculo para a auto-organização, como o caso do Tusunami Democràtic no levantamento catalão.

Neste marco, a classe trabalhadora que controla as “posições estratégicas” que fazem funcionar a sociedade (o transporte, as grandes indústrias e serviços), se abstém, salvo exceções pontuais, de lançar mão desta força decisiva e intervém como parte da “cidadania” diluída no “povo” em geral. Décadas de ofensiva neoliberal a nível global não passaram em vão. Se, por um lado, a classe trabalhadora se estendeu como nunca antes na história, também se fez muito mais heterogênea e sofreu um amplo processo de fragmentação. Por sua vez, a estrutura sociopolítica do Estado na atualidade está desenhada para consolidar esta fragmentação. Um “Estado ampliado”, que vai muito além da “espera passiva” do consenso e se dedica a “organizá-lo” através da estatização das organizações de massas e o desenvolvimento de burocracias em seu interior (começando pelos sindicatos) que garantem a divisão da classe trabalhadora.

Vimos isso no caso da França, onde não só as burocracias amarelas como a da CFDT, mas a direção supostamente “combativa” da CGT, atentaram-se para manter os setores sindicalizados – que ocupam as “posições estratégicas”– distanciados do movimento dos Coletes Amarelos. Ou no Equador com a Conaie retirando das ruas de Quito o movimento indígena no momento mais crítico dos enfrentamentos contra o governo. Vemos atualmente no Chile, onde as burocracias sindicais, estudantis e sociais da “Mesa de Unidade Social” batalham por entrar em diálogo com o governo, enquanto nas ruas ressoa o “Fora Piñera”.

A ausência de hegemonia operária é determinante para que o movimento se expresse de forma cidadã, apesar de que muitos de seus protagonistas são parte da classe trabalhadora. Sobre este fato é que domina a heterogeneidade dos movimentos, aquela que referíamos em termos de perdedores “absolutos” e “relativos” da globalização. Sobre a mesma se baseiam a burguesia, o Estado e os meios de comunicação, para dividir (e tentar canalizar os protestos) entre os manifestantes “bons”, “legítimos”, e os “violentos” e “incivilizados”. Para os primeiros há a possibilidade de ensaiar algum tipo de concessão mínima buscando tirá-los das ruas. Para poder isolar os segundos e criminalizá-los.

A questão estratégica é como fazer com que estas explosões de ódio e luta de classes que se expressam nas revoltas não terminem se esgotando em si mesmas, a partir de reformas cosméticas que não mudam nada substancial ou sendo canalizadas para o interior dos regimes instituídos através de alguma variante política burguesa (seja pela direita ou pela esquerda), ou possibilitando contragolpes e/ou saídas bonapartistas, senão que desenvolvem sua potencialidade e conseguem abrir passagem da revolta à revolução. O elemento chave neste sentido é, justamente, o desenvolvimento de uma hegemonia operária que consiga unir os diferentes setores em luta.

O processo chileno

No Chile se desenvolve um dos processos mais importantes do presente ciclo de luta de classes. Uma sociedade marcada pela desigualdade onde 50% dos lares mais pobres têm 2,1% da riqueza líquida do país, enquanto o 1% mais rico concentra 26,5%. Onde se encontram aqueles “perdedores relativos”, que são parte dos que saíram apenas da pobreza por renda na última década (que, segundo as estatísticas oficiais, passou de 29,1% em 2006 a 8,6% em 2017) mas que vivem em um país onde tudo está privatizado e o custo da doença de um de seus membros pode levar uma família à ruína. Onde 21% dos jovens entre 18 e 29 anos são devedores morosos. Também estão os “perdedores absolutos”, aquele meio milhão de jovens “nem-nem”, o milhão e meio que apesar da bonança econômica ficou submergido na pobreza.

Vimos como no início foi a juventude secundarista que saiu às ruas contra os aumentos do transporte, despertando a simpatia de milhões e dando início assim às jornadas revolucionárias. Depois aconteceu a resposta repressiva do governo de Piñera, que foi escalando, os militares ocuparam as ruas do país, desatando enquanto isso uma ira popular cada vez mais massiva em Santiago e nas periferias, e depois nacionalmente com barricadas, panelaços, ônibus queimados, uma grande quantidade de saques a grandes estabelecimentos, queima de cabines de polícia e edifícios públicos. Depois começariam a entrar setores do movimento operário organizado, como os portuários e um setor dos mineiros. A burocracia central da CUT, arrastada pelos acontecimentos, tentou convocar uma “paralisação com as ruas vazias”, que depois se transformou em uma paralisação rotineira mas participando das mobilizações.

Depois chegaria um novo momento com a massificação da mobilização na sexta-feira (25), que somente em Santiago superou amplamente o milhão de pessoas ainda que em um clima pacífico e festivo, diferente das mobilizações do primeiro momento. Como resposta, Piñera saudava cinicamente a manifestação redobrando, junto com uma campanha massiva nos meios de comunicação, as tentativas de separar os manifestantes “legítimos” (“as famílias”), dos “violentistas”, ou seja, os pobres da periferia e os jovens que enfrentavam a repressão nas ruas. A burocracia da CUT, nas antípodas da hegemonia operária que poderia ter permitido ligar os setores que o regime quer dividir, como poderia ter se expressado no reforço dos piquetes e da autodefesa frente aos militares que atuavam como virtual exército de ocupação, fechou sua participação rotineira na quarta-feira (30) impulsionando uma paralisação e uma marcha onde tratou de omitir a consigna de “Fora Piñera”.

Mobilização “cidadã” e poder de classe

Atualmente no Chile, junto com a chamada “agenda social” que concede algumas migalhas para proteger o regime herdeiro do pinochetismo, estão em curso toda uma série de manobras institucionais com as quais Piñera aspira a sustentar-se (mudanças no gabinete, negociação parlamentar com a oposição, etc.). Frente à persistência das mobilizações, ainda que com menor intensidade, desde setores do regime começaram a defender algum tipo de constituinte como via de recomposição institucional. O PC e a FA [Partido Comunista e Frente Ampla – nota do tradutor], que já transformaram o “Fora Piñera” em uma mera “acusação constitucional”, também se apegaram à ideia de um “processo constituinte” nos marcos do regime. Assim, está colocada atualmente uma disputa, tanto em torno à demanda de “Fora Piñera”, como da demanda de uma constituinte suavizada para salvar o regime.

Os socialistas revolucionários contrapomos a estas manobras a defesa de uma assembleia constituinte livre e soberana que seja capaz verdadeiramente de expressar a vontade popular e tenha plenos poderes, que só poderá ser imposta pela ação das massas fazendo realidade o “Fora Piñera” e sobre as ruínas do regime atual. Consignas democrático-radicais como “assembleia constituinte” podem cumprir um papel muito importante, não porque haja à frente alguma etapa democrática que o movimento de massas necessariamente deva transitar, senão porque, como dizia Trotsky: “o proletariado pode saltar a etapa da democracia, mas nós não podemos saltar as etapas do desenvolvimento do proletariado”.

Neste sentido, é importante distinguir que uma coisa é que uma constituinte como a que acabamos de descrever seja capaz de expressar a vontade popular e outra muito diferente é que tenha o poder, por si mesma, de impor efetivamente as demandas do movimento de massas. Isto implica necessariamente vencer a resistência dos capitalistas. Como dizia Lassalle em seu clássico folheto O que é uma Constituição?:

o instrumento de poder político do rei [hoje o Poder Executivo], o Exército, está organizado, pode reunir-se a qualquer hora do dia ou da noite, funciona com uma magnífica disciplina e pode ser utilizado no momento que se deseje, por outro lado, o poder que descansa na nação, senhores, ainda que seja, como o é na realidade, infinitamente maior, não está organizado.

A Assembleia Constituinte, nas palavras de Trotsky, é “a forma mais democrática da representação parlamentar”, mas o Estado capitalista está baseado em um exército, em forças repressivas que têm um caráter de classe, burguês, e que ninguém deve esperar que aceitem pacificamente nenhuma decisão que vá verdadeiramente contra os capitalistas. Sem ir mais longe, o golpe de Pinochet de 1973 está aí para provar. Por isso é necessário contrapor um verdadeiro poder alternativo de classe ao poder do Estado.

Neste sentido, a consigna de assembleia constituinte pode cumprir um importante papel pedagógico. Na própria luta por impor estas medidas frente à resistência da ordem burguesa com suas forças armadas (e paraestatais), setores cada vez mais amplos do povo trabalhador podem fazer até o final sua experiência com a democracia representativa e ver a necessidade de superar definitivamente o lugar de “cidadão” atomizado e organizar-se desde as empresas, fábricas, transporte, escolas, faculdades, etc., para desenvolver seus próprios organismos democráticos de poder e suas próprias organizações de autodefesa. Os conselhos ou soviets surgem justamente desta forma.

De fato, os Cordões Industriais nos anos 70 tiveram um desenvolvimento similar, enfrentando a reação. Em outubro de 1972, com o controle e a ocupação de mais de 500 empresas, foram a verdadeira resistência frente à primeira tentativa golpista na ruas pela burguesia. No entanto, não chegaram a se transformar em um verdadeiro poder (armado) alternativo ao Estado burguês e suas forças militares, em boa medida pela política do PC e do PS, que buscaram constantemente limitá-los, e à falta de um partido revolucionário que apostasse em seu desenvolvimento como tais.

O objetivo com a consigna de constituinte é se ao redor dela, ou da defesa de suas resoluções no caso de se concretizar, é possível derrotar o Estado (burguês) com suas forças armadas e desenvolver os organismos de poder da classe operária (soviets e milícias) capazes de substituí-la [1]. Como dizia Trotsky, a questão é elucidar “a possibilidade de transformar a Assembleia Constituinte e os soviets em organizações de uma mesma classe, jamais de combinar uma Assembleia Constituinte burguesa com os soviets proletários”.

Hegemonia e partido

Do que se trata justamente é de não assimilar acriticamente as formas “cidadãs” que a revolta adota na atualidade mas sim de lutar para que a classe trabalhadora possa intervir como tal e articular em torno de si os diferentes setores em luta. Daí a importância do desenvolvimento de coordenações e organismos de auto-organização, que em perspectiva possam ser o germe de futuros conselhos, de um poder alternativo da classe trabalhadora e dos oprimidos. Assim como do combate contra a burocracia sindical que, como vimos em seu momento na França com os Coletes Amarelos ou como vemos atualmente no Chile, busca confinar o movimento operário organizado na luta sindical, por um lado, e na política “cidadã” por outro, separando-se assim do resto da classe trabalhadora e limitando a possibilidade de que cumpra um papel hegemônico.

Seria equivocado pensar que a hegemonia operária e aqueles organismos de tipo soviético se desenvolverão de forma puramente espontânea ao se agudizar a luta de classes. É necessário que exista uma organização política revolucionária com suficiente peso que seja capaz de moldar a vanguarda nesta perspectiva “soviética” sob um programa para se enfrentar não somente contra este ou aquele governo, mas ao regime burguês de conjunto. Que forje, como dizia Trotsky em seu História da Revolução Russa, o equivalente a aqueles “operários de Lênin” educados em um programa transicional revolucionário através da agitação política dos bolcheviques, e que na revolução russa de fevereiro de 1917 foram fundamentais para derrotar ao czarismo.

No Chile, justamente, se sente a ausência de um partido revolucionário destas características com presença nacional. Nossos companheiros e companheiras do PTR lutam por construí-lo. Na Argentina, a recente campanha do FIT-U [Frente de Esquerda e dos Trabalhadores - Unidade – nota do tradutor] , chegando às mais amplas massas com um programa transicional para enfrentar o conjunto do regime, contribuiu para que a esquerda revolucionária esteja em melhores condições frente a eventuais processos de luta de classes como o que hoje acontece do outro lado da cordilheira, ou similares. Essa é a questão.

Tradução: Francisco Marques.

NOTAS:

[1] Há afirmações que parecem passar por cima de nada menos que esta grande questão do caráter de classe do Estado, como por exemplo a de Jorge Altamira, quem defende que é preciso lutar por “uma assembleia constituinte soberana que assuma a direção política do Estado”, que não se sabe de que classe.


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Matías Maiello

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