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Revolução e o novo filme "Meu País Imaginário" de Patricio Guzmán

Dominique Valda

Imagem: Meu País Imaginário, de Patrício Guzmán

Revolução e o novo filme "Meu País Imaginário" de Patricio Guzmán

Dominique Valda

Um filme de Patricio Guzmán, diretor do icônico "Batalha do Chile", é sempre um acontecimento. Com seu recente "Meu País Imaginário", lançado este ano, Guzmán retorna às ruas de paralelepípedos da capital Santiago, após a revolta, para oferecer um afresco refazendo os acontecimentos que abalaram o Chile entre a explosão de outubro-novembro de 2019 e a campanha eleitoral pela nova Constituição.

Alguns artistas constroem toda a sua obra como uma longa variação ou digressão em torno de um mesmo tema. É o caso de Patricio Guzmán, cineasta chileno exilado em Cuba e depois na França após o golpe de 1973 e que divide sua vida, desde o final dos anos 1980, entre Paris e Santiago. No cerne de seus filmes, encontramos a questão da ruptura e do crime inaugural, articulada em torno da dor da memória. Há, portanto, por um lado, essa ruptura na história e em sua história pessoal, em particular em relação à Unidade Popular (coalizão política de Salvador Allende no Chile) e à ascensão revolucionária, operária e popular que a acompanhou entre 1970 e 1973. Por outro lado, há o golpe de Estado de Pinochet e suas consequências de longo prazo.

Enquanto os primeiros filmes de Guzmán, incluindo a icônica trilogia Batalha do Chile, giram em torno de questões de transformação e resistência, seus longas-metragens dos anos 1990 se dividem entre uma homenagem nostálgica ao passado que nunca deixa de existir e a realidade prosaica e vulgar do neoliberalismo triunfante, do qual o Chile foi a vitrine por excelência. Guzmán admite em seu último filme ter tido dificuldade em reconhecer seu país, ao longo desses anos, já que o Chile havia se transformado em um "vasto centro comercial". Assim, sobre A cordilheira dos sonhos", lançado em setembro de 2019 e que evoca a continuidade entre o golpe de Estado, o neoliberalismo e sua sobrevivência após 1990, Guzmán dizia o quanto o "medo" que anda de mãos dadas com o modelo econômico particularmente excludente posto em prática pelo pinochetismo tinha conseguido paralisar o país. "Um país que vive com medo, um medo que continua até hoje e com governos [de centro-esquerda, em particular] que chegaram ao poder, mas não resolveram o problema da memória."

Já não temos medo

Mas aos 81 anos hoje, com forte "nostalgia" de uma ruptura possível, Guzmán nunca desistiu ou perdeu a esperança. E esse “medo” que ela evoca, a juventude chilena o perdeu em poucos dias, em outubro de 2019. A partir desse momento, como mostram as primeiras imagens de Meu País Imaginário, as manifestações não mais visam simplesmente as catracas do metrô da capital, cujos bilhetes subiram, mas todo o sistema e a classe política ao seu serviço. E a juventude, logo, é seguida pelos mais velhos. O cara a cara com os "pacos", os policiais, na gíria chilena, é extremamente violento. Guzmán acompanha em seu documentário o confronto, no nível do solo, no nível das pedras e paralelepípedos que se espalharam pelas avenidas durante as mobilizações. Apesar da extrema brutalidade da repressão que carrega consigo mortos, torturados e cegados, os manifestantes não têm mais medo.

Depois de testemunhar o processo revolucionário da década de 1970 no Chile há meio século, Guzmán nunca esperou testemunhar "a segunda revolução chilena" em sua vida. O cineasta não estava no Chile quando os estudantes do ensino médio iniciam o movimento nos corredores do metrô e descobrem, ao subir à superfície, "um país diferente", mais de acordo com seus sonhos e esperanças, para usar a expressão de um dos protagonistas do documentário. Guzmán, portanto, não pode aplicar a máxima de Chris Marker que serviu de bússola para A Batalha do Chile: "Se você quer filmar um incêndio, deve estar onde a primeira faísca cair". Para superar essa limitação, Guzmán usa o trabalho de jovens videomakers e fotógrafos e, assim, oferece uma reconstrução de eventos e lições da história social e política e das esperanças chilenas, entre outubro de 2019 e o referendo constitucional em setembro de 2022.

Histórias femininas

Em contraponto à voz narrativa lenta do cineasta em tom sério e poético, uma série de vozes e rostos de mulheres se entrelaçam para contar a história da revolta chilena: uma manifestante da "linha de frente", mãe de uma criança de nove anos, com uma balaclava com flores, e que se recusa a viver constrangida como fora até agora; Nona Fernández, escritora, que descreve a "revolta" chilena como um "alívio"; Nicole Kramm, uma jovem fotógrafa gravemente ferida no olho pelos carabineros, que fala sobre o poder das imagens; uma voluntária das equipes de resgate, que fala sobre coragem e determinação; Monica González, jornalista, que diz que as mulheres não vão mais recuar como María José Díaz, dirigente de um comitê popular improvisado de bairro ("población"), que fala de sua raiva, ódio e esperanças; como Sibila Sotomayor, do Coletivo Las Tesis, mas também Damaris Abarca, Alondra Carrillo, Valentina Miranda e Elisa Loncón, deputadas constituintes que também intervém com outras pessoas no documentário. Todos abordam um ou mais aspectos do processo, construindo assim um vasto mosaico coletivo que ganha forma pela soma de pedaços sucessivos, participando do que Guzmán chama de "sinfonia do movimento" e que se opõe ao ritmo grave das balas atiradas contra os manifestantes e o barulho dos paralelepípedos caindo sobre os capôs ​​dos blindados dos carabineiros que pontuam o filme.

A partir destas narrativas femininas, Guzmán reconstrói o processo e os seus principais momentos, numa espécie de percurso circular que é simultaneamente político e autobiográfico. O documentário, de fato, começa com imagens de Allende durante a campanha de 1970, termina provisoriamente com o discurso de vitória de Gabriel Boric , na La Alameda, principal avenida de Santiago, em dezembro de 2021, e conclui com a campanha pelo “sim” à nova Constituição antes de repetir, nos créditos finais, trechos de O Primeiro Ano, um filme sobre os primórdios da Unidade Popular chilena.

Patricio Guzmán filmando os protestos em Santiago para Meu País Imaginário. Ao fundo, o estandarte do cortejo do Partido Revolucionário dos Trabalhadores. Créditos La Tercera

Continuidades simbólicas problemáticas

Além de sua cinematografia impecável, sequências épicas e momentos altamente pessoais e comoventes de entrevistar as atrizes da "explosão chilena", o mais recente documentário de Guzmán apresenta vários vieses políticos e pontos cegos estratégicos que merecem destaque, serem discutidos e que ilustram, cinematograficamente, algumas das deficiências e impasses da "fenomenologia da época do povo" que Jean Luc Mélenchon, líder da France Insoumise, propõe em sua leitura dos acontecimentos chilenos.

A circularidade do filme assenta em duas continuidades e duas rupturas. Muito explicitamente, Guzmán traça um paralelo entre Allende e Boric, este último seguindo os passos do primeiro. A nova Constituição e o entusiasmado e resoluto "sim" pelo qual Guzmán faz campanha - o filme estreou no Chile em agosto, duas semanas antes de se saber que seria o "rechazo", o "não", que venceria nas eleições - fazem parte da continuidade que o cineasta traça entre, por um lado, a explosão social, os confrontos com o governo Piñera e a herança pinochetista e, por outro, o projeto de uma nova Constituição e a eleição de Boric que são, para o roteirista a saída natural da revolta. Estes dois elementos se assentam em mecanismos de equivalência que se esboçam ao longo do filme e que são profundamente discutíveis: equivalências entre diferentes épocas e figuras, as de Allende e Boric, ou entre as jornadas revolucionárias de Outubro e Novembro de 2019 e a canalização institucional representada pela Convenção Constituinte, que em nada representou a "saída natural" do processo, muito pelo contrário.

Descontinuidades políticas e ausência de classe

Guzmán absolutiza a horizontalidade que caracterizou a revolta, transformando esse aspecto em uma virtude em si. Assim, o igualitarismo que reina nas manifestações, a sensação de se achar sujeito coletivo, a rejeição à política e aos políticos e seus partidos são colocados no mesmo patamar do fato de a explosão não ter tido líder ou direção, ao contrário do "esquema clássico dos anos 1970" apresentado pelo cineasta. Ao fazê-lo, Guzmán faz um apelo à luta desde a base simplificado, que não responde a uma contradição, embora patente, que estrutura o seu filme e que celebra com entusiasmo: sem capacidade de auto-organização dos trabalhadores e do movimento popular, para além das assembléias de bairro ("cabildos"), às quais o cineasta dedica apenas alguns momentos do documentário, e sem direção revolucionária, são os velhos mecanismos de direção e representação bem como o velho reformismo (apesar dos 35 anos de Boric ), que acabou prevalecendo. E que falhou, como mostra o resultado do referendo de 4 de setembro.

O outro elemento descontínuo sobre o qual Guzmán insiste implicitamente é a ausência absoluta da classe trabalhadora e do tema do trabalho em seu documentário, ao contrário, é claro, de A Batalha do Chile. Sabemos o quanto a classe trabalhadora foi um fator absolutamente decisivo para reverter a situação, em 2019, principalmente a partir da greve geral de 12 de novembro que poderia ter derrubado o governo Piñera. Mas os trabalhadores representam para Guzmán uma época passada. Significativamente, eles são evocados apenas na modalidade da nostalgia, através das imagens em preto e branco dos mineiros e trabalhadores manifestando-se em Santiago em 1970 enquadrando Meu País Imaginário durante a abertura do filme e nos créditos. Ou nas memórias de infância de Mónica González, que evoca os tempos em que acompanhava o pai, ferroviário, nos piquetes da década de 1960. Para Guzmán, há uma descontinuidade absoluta do sujeito revolucionário. Em A Batalha do Chile, foi a classe trabalhadora que encarnou esse sujeito, sendo Allende apresentado, em última instância, como seu agente ou intérprete. A classe trabalhadora, por outro lado, nem sequer é um ator entre outros no movimento de 2019 em Meu país imaginário. Desaparece completamente do documentário, apesar do peso e do protagonismo que teve durante o processo de 2019. Uma ausência surpreendente, mas que diz muito sobre o pressuposto estratégico ao redor do qual gira o filme e que se encarna em Boric e alguns dos componentes da Frente Ampla chilena.

Guzmán é um artista que toma partido e isso é mérito seu. Ele é um cineasta comprometido que, em seus filmes, se preocupa em dar ao espectador fragmentos de poesia e política para que cada um possa se posicionar. A principal limitação de Meu País Imaginário reside nas ausências e descontinuidades escolhidas e nessas reviravoltas voluntárias da realidade que fazem com que o documentário, em alguns aspectos, deixe de ser esse filme engajado com o qual Guzmán (e antes dele Marker ou Godard) está familiarizado, se tornando mais um agit-prop didático que se transforma em material de campanha eleitoral para Boric. É uma escolha política, ao serviço da qual Guzmán coloca a sua estética. Provavelmente não é o melhor que pode haver se pretendemos fazer ecoar a "segunda revolução chilena" e retomar sua bandeira.


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