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Sobre os Retratos Fantasmas

Pedro Costa

Sobre os Retratos Fantasmas

Pedro Costa

Neste artigo é discutido e analisado alguns aspectos do último filme de Kleber Mendonça Filho, que ao abordar a história do centro da cidade de Recife a partir de seus cinemas de rua, consegue também captar e elaborar questões interessantíssimas para se pensar o contemporâneo brasileiro.

Retratos fantasmas é antes de mais nada um filme belíssimo, de grande sensibilidade e tino histórico. Tem tom melancólico, não obstante este tom, o humor tem bastante espaço, assim como a ironia, a fantasia e também muito melodrama.

O longa é majoritariamente documental, mas é também muito mais do que isso, é narrado pelo diretor e dividido em 3 partes: “O apartamento de Setúbal”, “Os cinemas do centro de Recife” e “Igrejas e espíritos santos”. Não é o primeiro documentário de Kleber Mendonça Filho, porém é com certeza bem mais pessoal que “A copa do mundo no Recife” (2014), que é sobretudo documento e elaboração históricos daquele momento, e “Crítico” (2008), no qual a voz do recifense mal aparece e trata-se muito mais de entrevistas com cineastas e críticos em festivais e salas de cinema.

É um longa feito sem pressa ao longo de 7 anos, reunindo mais de 30 anos de arquivos pessoais, além de contar com um bom trabalho de pesquisa realizado pelo próprio Kleber, por Karina Nobre e Pedro Coelho. Como dito acima, é um filme bastante pessoal, mas não mais do que algumas outras produções do diretor, como “O som ao redor” ou “Aquarius”.

Sobre o título do longa

Uma boa maneira de começar a analisar qualquer obra é olhando mais detidamente para o seu título, comecemos com o primeiro termo: a principal definição de Retrato no Oxford Languages é “imagem de uma pessoa (real ou imaginária), reproduzida por pintura, desenho, fotografia etc.”. Ora, retrato é, portanto, antes de mais nada uma cópia ou tentativa de cópia, no caso da fotografia é uma cópia bastante fidedigna ao real, reproduzindo um momento específico que foi congelado e eternizado. O ato mesmo de fotografar ou filmar (assim como o próprio cinema) sempre tem um quê de revolta contra a passagem do tempo, é uma maneira de retê-lo. Quando olhamos para um retrato vemos o passado presentificado na matéria, quem está longe ou o que foi está ali, paralisado diante de nós.
Com estas definições não é difícil deduzir que no próprio conceito de retrato já há um tanto de fantasmagoria, e que em alguma medida toda fotografia e filme são também reproduções espectrais.

Indo para o segundo termo, para além da acepção corrente que define Fantasma como aparição sobrenatural de mortos, sentido que há também no filme, enquanto blague (ou não), me parece justo aproximar o sentido do termo com “fantôme”, do francês, que segundo uma das definições do dicionário Le Robert é “Personnage ou chose qui hante l’esprit, la mémoire” [personagem ou coisa que assombra o espírito, a memória]. Com isso nos aproximamos mais do que já desde o título é tema e elaboração do filme: A vontade de retratar aquilo que assombra Recife, no caso em primeiro lugar os cinemas de rua, mas também, os rumos contemporâneos da cultura, urbanismo e vida na cidade.

O tema “fantasmas” é caro ao diretor, estando presente em muitos dos seus filmes: Em “O som ao redor”, que é também dividido em 3 atos, os fantasmas são a revolta dos escravizados, o clamor dos esbulhados e oprimidos, que na mesmice da reprodução social opressora de Setúbal, aparecem apenas como possibilidade, enquanto gritos em um cinema abandonado, ouvido pelo casal esclarecido, enquanto cachoeira de sangue próximo ao engenho, enquanto vulto em uma casa, que não sendo visto pelo segurança da rua e pela empregada doméstica que vão escondidos para a cama dos patrões que viajam, não é também retomado por eles, assim como por ninguém no filme.

Em “A copa do mundo no Recife”, o diretor imagina os bonecos de olinda dos jogadores do Brasil, ao estarem descansando encostados no shopping paço alfândega, sonhando que jogam no campo fantasma uma partida inesquecível, para logo depois a câmera entrar e nos mostrar de diversos ângulos um campo abandonado, seguido da narração do começo do jogo contra Alemanha, quando otimismo e esperança do hexa ainda eram vivos.

As assombrações de “Vinil verde” e “A menina do algodão” dispensam qualquer comentário. Em “Aquarius”, mais um filme dividido em 3 atos, fantasmagórico é o prédio em que Clara vive e também a própria Clara, em certo sentido, que sozinha, assim como seu prédio, se opõe ao sentido hegemônico de uma urbanização selvagem, que é guiada apenas pelos interesses do capital.

A questão dos gêneros

Enquanto consumidores educados pela indústria cultural hollywoodiana, que somos todos, aprendemos e nos acostumamos a esperar um tipo de filme associado a cada gênero, com enredos, personagens, ritmos e desfechos específicos, sempre reproduzidos de maneira quase idêntica, associados a estados de espírito ou desejo de cada público específico. Se você quiser emoção, há milhares de intensos filmes de ação, se quiser paixão, há inúmeros filmes de comédia romântica, mas caso sua praia for algo como “conscientização”, há muitos bons documentários que te deixarão inteirados das mazelas do capitalismo no mundo. Agora, se nos referimos aos filmes de Kleber Mendonça Filho, essa maneira de se entender o cinema simplesmente não funciona.

Nenhum de seus longas anteriores se encaixa perfeitamente em uma classificação de gênero à lá Hollywood, em Retratos Fantasmas, filme que é majoritariamente documentário, não poderia ser diferente. A frase redublada por Kleber: “os filmes de ficção são os melhores documentários”, no trecho do filme “Eisenstein”, onde as personagens estão no edifício Alfredo Fernandes quando era sede dos estúdios de Hollywood, não poderia ser mais representativa da visão do diretor, que poderíamos inferir que está de acordo com a ideia de que toda ficção carrega em si algo de documental, pois de alguma maneira sempre seu roteiro, personagens, ambientação, etc. carregarão algo do momento histórico em que foram feitos, assim como todo documentário é também uma ficção, na medida em que no momento que se monta, roteiriza, edita, filma de determinada maneira uma película, já se está no campo da ficção e da invenção, e não da mera exposição do funcionamento do real.

O que ocorre em tela é a conjunção entre documentário e ficção. Na 1ª parte podemos enxergar claramente isso, onde para alguém com menos conhecimento das produções anteriores do diretor e do cinema pernambucano, é impossível de distinguir o que são momentos reais de vivência na casa, making-ofs, bastidores ou filmes ficcionais propriamente ditos. Isso em nada atrapalha na compreensão do longa, pois importa menos o que “foi real ou não”, e mais as mudanças ocorridas no tempo que involuntariamente (ou voluntariamente) suas gravações captaram.

Das partes

“O apartamento de Setúbal”

Entrando um pouco mais agora na ordem cronológica da obra, o filme começa com som, toca a música de Tom Zé em tela escura, logo depois aparecem fotos antigas de Recife, nas quais os trilhos são o que chamam primeiro a atenção, vemos também o mar e pessoas com a indumentária da época. Ora, o oceano é muitas vezes um signo do infinito, assim como trilhos são a metonímia por excelência do progresso, nessas fotos ainda tudo parecia ser possível e o futuro brilhante, mas como a música já nos antecipa, não vai ter happy end.

Em seguida, bem ao gosto do diretor, que conta as histórias de seus filmes desde o começo, a música para e somos apresentados à antiga Setúbal, local onde a mãe do diretor, juntamente com ele, viria a morar, num lugar que era antes de tudo mangue. Conhecemos o apartamento, sua disposição e cômodos, e Joselice Jucá, mãe de Kleber e personagem que explica o porquê da casa ser de tal e qual jeito. Acompanhamos então as mudanças no apartamento que se dão no decorrer das décadas, e a narração nos conta que foi ali que Kleber aprendeu primeiro como o tempo vai alterando os lugares.

O movimento que o longa faz, já a partir desse começo, é de expansão do mais particular e individual para o mais público e geral, começamos no apartamento em Setúbal, para irmos à vizinhança, depois para o bairro, para finalmente chegarmos à cidade e então mais além em seguida. O destino da casa de Nico, abandonada e largada à própria sorte por não interessar mais, já traz em si o destino do centro.

Nessa primeira parte é o momento no qual há mais fortemente a junção entre ficção e documentário, os latidos de Nico que são ouvidos pelo diretor depois de anos da morte do cachorro, os cupins que dominam a casa vizinha e depois entram em Aquarius, o aparente crescimento da violência que domina e amedronta os setubianos, mudando a paisagem real, que aparece em “Som ao redor” e é tematizado e trabalhado longamente no mesmo filme, com a aparição de Clodoaldo.

O que é captado pela câmera com o passar dos anos é o comportamento do bairro, que por sua vez é tendência de um movimento mais geral, que tem a ver com os efeitos indesejados da implementação do neoliberalismo no Brasil. Imagem forte dessa mudança é a foto em preto e branco no qual uma criança aparece ao fundo como que enquadrada e presa pelas toneladas de grade que a cercam, do bairro pacato e tranquilo da infância e adolescência, o entorno vai se modificando e se tornando cada vez mais hostil, da casa da amiga dos anos 80 emerge um prédio altíssimo mostrado em contra-plongée, do qual não vemos o fim.

“ Os cinemas do centro de Recife”

Na transição e no início desta que é a parte mais longa do filme, cujo título Kleber em dado momento queria que fosse o nome do longa, vemos um senhor regando as plantas no terraço de um prédio no bairro de São José, vemos a vista de cima, os prédios da Boa vista ao fundo, giramos em direção ao Cinema São Luiz mas sem o vermos ao fim, e depois, ao rés do chão, passeamos pelas ruas, somos apresentados a casas, à igreja universal, à feira nova, a um subway, a um Banco do Brasil, até que vemos um vendedor de fruta filmado em 45º atravessando a ponte Buarque de Macedo, no horizonte do vendedor está um sol brilhante, estamos como ele entrando cada vez mais no Centro de Recife, coração do filme. Tudo isso se passa ao som de Sidney Magal “meu sangue ferve por você”, e sem medo de todo “melô” que este conjunto carrega, a narração de Kleber nos diz 2 vezes “eu amo o centro do Recife”.

“O centro de uma cidade pode lembrar muitas outras cidades”

Ato contínuo somos apresentados a um mapa sentimental do centro de Recife feito por Kleber, e ponto por ponto vamos sendo apresentados aos seus lugares mais importantes. Primeiro à Livraria 7, importante e movimentada livraria do centro, sem balcão e com livre circulação, que por 30 anos funcionou como um ponto de atração magnética da cultura do Recife, sendo durante um período a maior livraria do Brasil, teve como destino, assim como outros cinemas que aparecem posteriormente, virar igreja evangélica.

“O centro parece um lugar esquecido, tem o clima decadente de quem foi abandonado sem muitas explicações”

Antes de continuar, não poderia deixar de comentar a beleza e ousadia do filme de tratar de maneira igual figuras que mundialmente são vistas como totalmente diferentes, Dunga (personagem de Amarelo Manga, interpretado por Nachtergaele e dirigido por Assis) aparece andando pelo centro de Recife ao som de Culmination Hal’s Escape, parte da trilha original de Picnic (“Férias de Amor”, em português) e ouvimos na narração sobre os que passaram pelo centro: “Matheus Nachtergaele, Cláudio Assis, Janet Leigh, Tony Curtis”, como sendo todas figuras que fazem parte da história do cinema e de Recife, figuras que são igualadas ao serem tratadas todas no mesmo nível.

“O centro é também despachado, tem clima de se não gosta de mim, foda-se”

É no mesmo tom de importância que somos apresentados a seu Alexandre, amigo pessoal do diretor, trabalhador do Art Palácio e aquele que é o grande personagem do filme, que domina todo aquele universo fascinante que diz respeito ao maquinário cinematográfico do Art Palácio. Alexandre Moura também conta como lidou com a censura nos anos 70, e mais pra frente, em cena emocionante, diz que fecharia o cinema, em seu último dia, com chave de lágrimas, segue-se o choro de Kleber, que está atrás das câmeras, e do próprio Alexandre, que depois de décadas se despediria do cinema que fez funcionar com grande prazer.

Somos apresentados também ao edifício Alfredo Fernandes, localizado no antigo, construção que abrigava todos os estúdios de Hollywood em seus 5 andares, além de ser a central de cópias de filmes que abastecia toda região norte-nordeste do país.

Atrás do edifício Alfredo Fernandes ficava o lixo de Hollywood, e de lá seu Paulo Barbosa, herói do 12 de maio de 1985 (dia em que Recife e Olinda quase se acabam em uma explosão), recolhia cartazes, pôsteres, rolos, tudo que era inútil para os estúdios, e de interesse para quem interessar pudesse. De fato, “é muita história”.

Conhecemos também uma série de outros cinemas: Veneza, Trianon, São Luiz, Moderno, El Dorado e Albatroz. Destes, apenas o São Luiz continua vivo e ativo. O Trianon fechou junto com o Art Palácio. O Moderno virou atacado e o futuro dos outros 2 veremos mais à frente.

Um ponto interessante que tem espaço também nesta parte é o da importância das marquises de cinema, importância tamanha que mesmo depois de extinta, a marquise do Moderno tenta, inutilmente (ou não), dizer algo ao diretor. Vista de diferentes ângulos, as marquises tinham diferentes sentidos, parece o nome de outro filme ou mensagem secreta para alguém, de qualquer forma a paisagem da cidade ficava marcada por palavras de fantasia. Por fim são também marcadoras do tempo, letreiros de cinema comentam a vida no mundo, sem dúvida como o longa afirma, foram uma perda para as cidades.

O Cinema Veneza, outrora um grande empreendimento, começou a se tornar shopping sem ser demolido e virou um monstrengo disforme, habitado por morcegos e resquícios de cinema. Vemos imagens dos anos 70 seguidas de imagens contemporâneas, e no momento em que aparece um telefone ele começa a tocar, toca, toca, toca, mas ninguém atende, em seguida vemos Kleber ao telefone, como que tentando acessar este fantasma aparentemente sem sucesso.

Ao lado das ruínas do Veneza, as ruínas de um colégio Marista, cujo espaço será usado para construir um novo shopping, shopping Marista, em sua homenagem. A música de Nelson Ferreira fecha esta parte comentando ironicamente o que aparece em tela, nada bom envelhecer deste jeito.

“Igrejas e espíritos santos”

A 3ª parte se inicia de forma bem parecida com a 2ª, com a diferença de que desta vez vemos o São Luiz a partir do terraço e conseguimos nos localizar melhor. Vemos em seguida uma igualdade pelo cinema, no São Luiz se misturam Chaplins, Arianos Suassuna e pessoas comuns, “não conheço um lugar tão unânime em Recife [quanto o São Luiz]”.

Ao mesmo tempo, o pernambucano nos conta que sempre ouviu referências ao São Luiz como templo, que “para assistir Hitchcock ou Glauber Rocha só se for de joelhos”, ironicamente este cinema foi construído em cima de uma igreja anglicana, a telona interessou mais que o capital inglês decadente.

Outra ironia, muito mais sádica, foi o destino contrário que tiveram os cinemas de rua, estes que não estavam no centro: Eldorado dos Afogados e Albatroz de Casa Amarela fecharam para tornarem-se igrejas, as gravações expõem a bizarrice dessa operação ao vermos que a sala de cinema passou a funcionar como culto praticamente sem reforma. Realmente é uma imagem forte de mudanças profundas que o Brasil passou nos últimos tempos, e também de como os espaços podem ser apagados de seu sentido original e ressignificados e sem muita cerimônia.

Nos aproximando do fim do filme, e ao mesmo tempo em que ouvimos “há outras maneiras de sair do transe, de deixar o templo, de sair do filme”, vemos em tela a transição entre igreja e cinema, até chegarmos finalmente em Miguel e Bruna, trabalhadores do cinema que trocam o letreiro do São Luiz. É mostrado também o projetor do Art Palácio, que guardado no São Luiz, virou sucata sem utilidade, o próprio edifício Trianon já é também outra coisa, o cinema de rua olha ao redor enquanto padece solitário, não vê mais o rival do outro lado do Capibaribe, vemos novamente seu Alexandre, que agora é também bonita lembrança do passado. Kleber sai do São Luiz, saindo um pouco do transe, e pede um uber para casa, a conversa com o motorista do aplicativo é de total interesse.

Depois de contar sobre o passeio que gosta de fazer de vez em quando no caminho do uber para casa. O motorista conta que Herb Alpert o tem salvado nos últimos tempos, nos quais ele tem aprendido trompete e se inspira no americano para tocar em banda de frevo, música que tem energia pra cima assim como ele gosta. Logo depois, Kleber conta que trabalha com cinema, com “cinema é massa” e “vou tirar uma foto com você depois, em?” reage o motorista. Os dois passam por onde outrora já foi os cinemas Trianon e Art Palácio, e em seguida o motorista revela que recentemente descobriu que tem um super poder, intrigado, o diretor pergunta qual super poder seria, e ele então o esclarece de que é o poder de desaparecer, de se tornar invisível. Instantes depois o motorista some diante dos olhos de Kleber e dos nossos.

Essa sequência é de suma importância, para além do humor presente na cena, seu sentido é bastante sério, assim como os cinemas, os trabalhadores vão sendo apagados enquanto os agentes que fazem com que a história andar. Afora seu Alexandre e Paulo Barbosa, que recebem mais atenção, as imagens do filme captam uma série de trabalhadores anônimos, desde vendedores de fruta, peixe, bala, até pescadores, atendentes de bilheteria, trabalhadores da manutenção do cinema, seguranças, entre outros. O filme é principalmente sobre os cinemas de rua de Recife, mas estes não existiriam sem as pessoas de carne e osso que os botaram de pé e que a fazem funcionar, o grande perigo, inclusive em filmes como este, é perder de vista este processo, inviabilizando os que fazem a sociedade funcionar e tratando as mudanças de toda ordem como naturais. Tanto Kleber Mendonça Filho quanto nós espectadores, sensibilizados para questões ligadas à sétima arte, somos totalmente propensos a não enxergar os motoristas e outros trabalhadores, esta é a realidade material do superpoder do motorista e o alerta que o filme nos traz ao final.

Por fim, temos na última sequência do filme uma série de farmácias, que aparecem aos montes na tela, acontecendo de ter duas e até três farmácias uma do lado da outra, proliferaram assim como shoppings, igrejas e jogos do bicho na cidade. Há um sentido de que uma sociedade com menos cinemas e escolas é uma sociedade com mais farmácias, incontáveis no caso de Recife, uma sociedade mais adoecida e menos viva, não consegue se imaginar, elaborar e repensar através de uma tela, nem ver o trabalhador e a realidade que está imediatamente à sua frente.

À guisa de conclusão

Temos de maneira bastante forte no filme o tema da passagem do tempo, que no caso, é em sua maioria devastador, pois o que primou nas últimas décadas foi a destruição de locais de cultura e educação, como escolas e cinemas para construção de shoppings, igrejas e lojas de atacado, apesar de já ter havido momentos, como nos anos 30, no qual uma igreja anglicana foi demolida para construção de um cinema, ou a transformação de um cinema da UFA, órgão de propaganda nazista, ser transformado em um cinema com figuras incríveis como seu Alexandre.

Tendo sido Retratos Fantasmas começado a ser pensado e feito em 2016, ano do golpe, havia de fundo desde aquele momento e na totalidade dos governos Temer e Bolsonaro um claro ataque a cultura, com símbolo máximo no incêndio da Cinemateca Brasileira em 2021, que fazia parte de um conjunto de ataques aos trabalhadores, assim como jovens, negros, mulheres e LGBTs. O filme ser finalizado e lançado em 2023, primeiro ano do governo de frente ampla, 3º governo Lula, é altamente sugestivo, pois deixa implícito a ideia de que este projeto de destruição exposto no longa pode ser de alguma forma revertido ou minimizado, infelizmente, por mais que haja diferenças qualitativas entre estes governos e que de fato pingue mais dinheiro para cultura, este projeto de devastação que vem pelo menos desde os anos 70 veio para ficar, e nenhum governo da ordem, comprometido com responsabilidade fiscal e metas econômicas poderia subverter isso.

O dinheiro, assim como pontos importantes de cultura, estavam presentes no centro nos anos 40, ao começar a migrar para a zona sul nos anos 70 deixaram atrás de si toda miríade de ruínas que é documentado e investigado pelo longa, além dessas ruínas o filme também registra uma mudança de época, na medida em que mostra que já foi interessante para a burguesia local e internacional criar grandes salas de cinema, como foi o Veneza em plena ditadura nos anos 70 e o São Luiz, inaugurado no último governo Vargas nos anos 50, mas passadas décadas e com a entrada forte do neoliberalismo no Brasil, sem dúvida nenhuma esse interesse deixou de existir.

De outro ponto de vista, Retratos Fantasmas é uma grande declaração de amor ao cinema, ao fazer cinema, ao assistir cinema, trabalhar em torno dele, tê-lo como importante e presente, entendendo-o como lugar de formação social, como local em que há verdadeira igualdade entre o público e onde pode-se conhecer mais a si mesmo e ao outro.

Se o São Luiz existe ainda hoje, enquanto um dos poucos cinemas de rua (que não é administrado por banco e que cumpre um papel de formador de público, não sendo um cinema comercial), é graças a toda população, trabalhadores do cinema e espectadores, que não aceitam que o cinema mais antigo em funcionamento do país tenha o mesmo destino que tantos outros da cidade. Apenas a organização destes setores juntamente com a independência de classe é capaz de fazer parar a destruição em curso, construir um mundo no qual não precisemos lutar pelo mínimo acesso à cultura, mundo no qual os fantasmas do passado deixariam de atormentar o presente e a vida poderia ser plenamente vivida.


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