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Stalinismo e literatura no Brasil: subsídios para uma elaboração futura

Araçá

Stalinismo e literatura no Brasil: subsídios para uma elaboração futura

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Há alguns meses, aqui no suplemento Carcará, divulgamos um texto do camarada André Higa em combate frontal às concepções conservadoras da Unidade Popular/PCR quanto à arte. Como bem desenvolvido pelo camarada, o conservadorismo da UP não é uma expressão singular das concepções de alguns de seus militantes, é o projeto político da tradição stalinista que reivindicam. Aqui, pretendo trazer a esse debate alguns aportes históricos dentro do contexto da arte brasileira.

A história do stalinismo é indissociável do histórico de repressão, censura e assassinato da vanguarda artística soviética. Em outro momento, um exemplo do projeto stalinista de falsificação da história soviética e de repressão da arte foi discutido aqui a partir do cinema soviético de Dziga Vertov e Sergei Eisenstein, mas este projeto não se restringe às fronteiras da URSS: no Brasil (de forma diferente da URSS onde o stalinismo diretamente dirigiu o Estado) a história da arte brasileira também foi marcada em alguns de seus pontos canônicos pela censura dentro dos partidos stalinistas. É acerca destes casos que quero entregar alguns subsídios para uma elaboração futura.

1. Obreirismo, sectarismo e stalinismo

Busco aqui trazer alguns pontos dentro de um recorte específico: a relação de artistas brasileiros dos anos 30/40 com o stalinismo, mais especificamente com seu principal expoente no Brasil à época, o PCB. Numa primeira década desde sua fundação marcada pela caracterização absurda do Brasil enquanto um país semi-feudal, pela política obreirista e sectária e pela negação da existência (no Brasil!) de uma questão negra, o PCB teve uma aproximação com uma camada de intelectuais que dentro da prosa literária ficaram marcados como "Geração de 30", uma geração de escritores (em sua maioria, nordestinos) com uma literatura marcadamente social, como Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego, Jorge Amado, para além de nomes na poesia como Carlos Drummond de Andrade.

Nos marcos de sua política obreirista, o PCB se manteve sectário com intelectuais, que tinham que passar por um longo processo de provação, sujeitos a todo tipo de censuras e reprimendas até poderem compor as fileiras do partido. Em sua autobiografia, Rachel de Queiroz comenta:

[...] na província de onde eu vinha fazia-se, entre os comunistas, muita questão da disciplina, no caso especial dos “intelectuais”. Os operários, que compunham a aristocracia dos grupos marxistas, exigiam de nós obediência cega. Os intelectuais eram por eles considerados uma espécie de subclasse, pouco merecedora de confiança.

[...] nessa época, entrar para o Partido não era fácil. Os simpatizantes ficavam muito tempo em período de provação. Era mister dar provas durante anos, principalmente no que se referia à submissão ideológica ao stalinismo. Pois essa foi a fase mais temível do stalinismo, logo depois da morte de Lenine. [1]

Sobre esta mesma questão, escreve também Oswald de Andrade em seu Diário Confessional:

Como eu e ele, a maior parte dos intelectuais comunistas não era recebida no Partido. Ficávamos como servos atentos em experiência, na antessala do Socorro Vermelho, como vigilância dos dois lados – a burguesia que nos detestava e prendia e o proletariado partidário que nos mantinha em suspeição. [...] Nada. Vinham insultos e desconfianças. Notávamos que as acusações partiam muitas vezes de gente como nós, oriunda da burguesia – feudal, grande, média ou pequena. [...] Éramos sempre “intelectuais pequeno-burgueses”, “traidores do proletariado”, “trotskistas ou trotskisantes”. [2]

Frente à desilução de Oswald após o apoio do PCB a Vargas, comenta sobre sua relação com Jorge Amado, quadro histórico do partido:

Quem conseguiu apaziguar meus escrúpulos ideológicos não foi, então, quem era o meu melhor amigo, Jorge Amado. Este, ao contrário, manteve para comigo uma reserva política incompreensível que se acentuou até o nosso rompimento. Era ele o detentor dos segredos da marcha estratégica do comunismo. Todo mundo lhe aparecia como “trotskista e piroquéte”. [...] Com uma pobreza de visão lamentável num mestre do romance, repetia as frases fortes do pior sectarismo obreirista. [3]

Relembra ainda outro exemplo de sectarismo, a postura de Amado com o teórico e crítico literário Antonio Candido:

No entanto, o que dominava nas hostes locais do PCB era o mais imbecil sectarismo de fogueira, evidentemente oriundo da nossa incultura e das nossas origens ibero-coloniais. Jorge Amado tornava-se insuportável. Uma das vítimas prediletas da sua sátira maneta era o jovem crítico Antonio Candido, que ele chamava continuamente de “trotskista”, por ter comentado com independência o livro de Trótski sobre Stálin. [4]

Relembra inclusive quando organizou uma reunião de intelectuais junto ao poeta Pablo Neruda, figuras como Sérgio Milliet, José Geraldo Vieira, Paulo Mendes de Almeida e Antonio Candido, nome vetado por Amado que protestava: “Um trotskista não pode entrar em contato com Neruda!” [5]

As imposições do PCB chegavam a todos os ambitos das vidas de seus militantes. Para além dos ridículos já citados, em relação à vida pessoal dois exemplos das imposições absurdas do partido se encontram nas vidas da romancista, jornalista e militante pecebista (que depois de uma série de absurdos, rompe e se une ao PSR trotskista) Pagu e da atriz e militante trotskista Lélia Ábramo. Enquanto militante completamente entregue à vida política (chegando a dizer, após uma serie de absurdos a que fora submetida pelo partido, "A minha vida particular não tinha nenhuma importância. Eu vivia para a minha luta.") [6], Pagu foi forçada não só a abandonar seu filho Rudá (por tê-lo tido com Oswald de Andrade, filho de família cafeicultora que chegaria inclusive a militar também no PCB), mas também a direção do partido chegou a propor o absurdo que ela se prostituísse por informações, o que energicamente nega, sendo depois expulsa sob acusação de ser "degenerada sexual" em documento que teve entre seus responsáveis o à época dirigente do PCB, Carlos Marighella. Na sua biografia sobre Marighella, Mário Magalhães nos conta:

Em 1939, o Comitê Regional divulgou sua expulsão, desqualificando-a como “muito conhecida pelas suas atitudes escandalosas de degenerada sexual”. Como o partido era ultracentralizado, o texto com a recriminação moral teria sido redigido pelo dirigente máximo da região ou submetido a ele – Marighella foi o responsável, ou um dos responsáveis, pela resolução. [7]

Sobre o absurdo de terem proposto que se prostituísse, a própria Pagu relata em sua Autobiografia Precoce:

Disse-me antes de qualquer coisa, como se me transmitisse uma ordem: “Acho que vamos viver juntos”. E, depois, como eu nada respondi: “Falemos do trabalho. Há duas tarefas importantes a realizar. Ademar foi encarregado de entregar à chefatura três passaportes vindos do Norte. Esses passaportes ainda estão em suas mãos e é preciso que eles venham para as nossas. É necessário também que ele nos informe até onde vai a simpatia de Zé Américo pelo movimento revolucionário. Se num caso de candidatura poderemos contar com ele, em que bases e como. E com quem Prestes poderia contar efetivamente no Norte”. E continuou falando comigo, enumerando uma série de informações absurda que eu deveria obter.
Claro que não pude evitar uma gargalhada: “E você acredita que Ademar poderá me dar todas essas informações? E mesmo se pudesse, você acha que iria falar sobre isso comigo? Comigo?!”.
CM11 olhou-me e sorriu. Vi como tremeu, seus dentes minúsculos, negros, apertando o cigarro de palha.
“Você não parece inteligente…”, e, depois de um silêncio: “Na cama ele dirá tudo. E você terá o que quiser.”
Não me indignei com isso, porque o ridículo enchia de comicidade a situação. Coisa de fita de cinema. Pretensão a representações baratas de folhetim. Era apenas indecente e vexante.
“Mas é ridiculo!”, disse eu. “Estou de acordo com o sacrifício total, se se tratasse de uma coisa que valesse a pena, se se tratasse de vidas e vidas, num momento de luta armada, em plena revolução. Mas assim, para obter ridículas informações, que nem sequer se sabe se serão aproveitadas, acho que é exigir demais das mulheres revolucionárias. Não sou uma prostituta.”
“Não se exige isso das mulheres revolucionárias. Exige-se de você, que é uma mulher excepcional. E não é só isso. Precisamos também de uma lista que está nas mãos do chefe de polícia. Você poderá obter isso com Rodolfo. Claro que, com os mesmos meios, você conseguirá.”
“Quer dizer que o Partido me nomeou para os trabalhos do sexo. É uma estupidez. E ainda por cima ridículo… ridículo…” [8]

O controle da vida pessoal e afetiva dos militantes (depois ainda mais consolidado com seu estatuto de 1945 que em seu artigo 13 proibia qualquer relação pessoal ou familiar com trotskistas) se expressa também em casos como o de Lélia Ábramo. Em sua autobiografia, Lélia, atriz e militante trotskista da LCI, narra o fim que teve seu relacionamento com um militante do PCB, por imposição do partido ao seu companheiro:

Chegou o dia em que ele me disse que deveríamos esclarecer a nossa situação e enfrentar o partido, porque desejava casar-se comigo. Tentei convencê-lo, inutilmente, de que o PCB jamais daria permissão. O partido costumava ser intransigente em relação a aproximações com trotskistas.
[...]
A decisão sobre nosso relacionamento, já conhecido por todos – como vim a saber mais tarde – foi colocada em discussão por dirigentes do PCB. Se confirmasse o namoro, N. seria expulso. Isso só não aconteceria se eu renunciasse à minha filiação à Liga Internacionalista [9]

Mas como esse sectarismo e controle se manifestavam em relação à arte?

2. A censura e o abismo entre forma e conteúdo

É necessário primeiramente entender o obreirismo e o ponto de inflexão de seu estabelecimento no Brasil. Sobre isto nos diz o professor e historiador Afonso Machado em seu livro Modernidade e a estética do credo vermelho:

Entre abril e maio de 1930, em Buenos Aires, a Conferência dos Partidos Comunistas marca a virada do PCB em direção ao obreirismo. Fernando Lacerda foi o seu principal defensor, exercendo grande influência no partido. Num momento em que intelectuais têm o direito de voto negado, ocorre uma intensa vigilância que hostiliza a reflexão crítica. [10]

E prossegue:

Todas as restrições e imposições do PCB em 30 se devem a um inicial delineamento do que “deveria ser” aquilo que denominava-se, então, “romance proletário”.
No início dos anos 30, a chegada ao posto de dirigentes por José Caetano Machado representa a inadequada/despreparada maneira do partido para tratar das questões artísticas e do próprio trabalho do intelectual. José Caetano, padeiro chegado do Nordeste ao Rio de Janeiro, fazia questão de constranger, junto a outros dirigentes, escritores ganhos à causa revolucionária (o padeiro teria chegado a dizer numa reunião com intelectuais: “eu odeio os intelectuais”). Sabe-se até que ponto a origem bem abastada fez dos intelectuais defensores das classes dominantes ao longo da história. No entanto, historicamente, o pensamento socialista não deixa de envolver expressões intelectuais empenhadas na transformação da realidade social. Gramsci foi, sem dúvida, o autor marxista que melhor refletiu sobre a necessidade do intelectual na organização da hegemonia operária: é, portanto, o intelectual orgânico, isto é organicamente ligado à classe trabalhadora, que contribui para a formação da consciência revolucionária. Vimos anteriormente que a raiz do artista revolucionário encontra-se não apenas no seio do proletatiado, mas principalmente entre intelectuais que rompem com a sua classe de origem. É, portanto, o trabalho intelectual, em sua dimensão literária e artística, que foi sabotado pelo obreirismo que não significou avanços nem no campo político e tão pouco no cultural. [11]

Junto ao obreirismo, a política do PCB em relação à produção artística nos anos 30 é expressão clara da influência inicial do realismo soviético enquanto “linha oficial” do stalinismo para a arte. Tendo como principal teórico o húngaro György Lukács que defende, a partir de uma leitura rasa de cartas e trechos de obras em que Marx e Engels abordam arte e literatura, o realismo como única linha marxista para a abordagem artística do drama operário, o realismo soviético parte de uma concepção limitada acerca da arte, se opondo às experimentações formais das vanguardas e a qualquer estruturação de narrativa que não seguisse à risca o modelo panfletário estabelecido pela burocracia stalinista, definindo uma separação mecânica entre forma e conteúdo literário que é essencialmente anti-dialética.

Um exemplo disto é o caso responsável pela saída da escritora Rachel de Queiroz do PCB. Em 1932, Rachel chegava ao Rio de Janeiro com os originais do seu segundo romance, João Miguel, que seguia a linha do romance social ambientado no Nordeste devastado pela seca e pela miséria. Tão logo souberam da existência do romance os dirigentes do partido exigiram que os originais passassem por uma avaliação de uma comissão que decidiria por sua publicação ou não. Um mês depois, a informaram que o romance não poderia ser publicado por ter uma trama “carregada de preconceitos contra a classe operária”. Preconceitos estes que Rachel nos cita:

[...] uma das heroínas, moça rica, loura, filha de coronel, era uma donzela intocada. Já a outra, de classe inferior, era prostituta. Eu deveria, então, fazer da loura a prostituta e da outra a moça honesta. João Miguel, “campesino", bêbedo, matava outro “campesino". O morto deveria ser João Miguel e o assassino passaria de “campesino” a patrão. Indicou mais outras modificações menores, terminando por sentenciar: “Se não fizer essas modificações básicas, não podemos permitir que a companheira publique o seu romance”. [12]

Frente ao que Rachel abandona a sala e o partido:

Ele tinha nas mãos, num rolo de papel pardo, a única cópia do livro que eu possuía, mal datilografada por mim mesma, na minha velha Corona. Levantei-me, devagar, do meu banco. Cheguei à mesa, estendi a mão e pedi os originais para que pudesse operar as modificações exigidas. O homem, severo, me entregou o rolo. Eu olhei para trás e vi que estava aberta a porta do galpão, a sua única saída. E, em vez de voltar para o banco, cheguei até o meio da sala, virei-me para a mesa e disse em voz alta e calma: “Eu não reconheço nos companheiros condições literárias para opinarem sobre a minha obra. Não vou fazer correção nenhuma. E passar bem!” Voltei-me para a porta e meti o pé na carreira. [13]

O caso de Rachel não foi um caso isolado. Seguindo os rumos da internacional comunista stalinizada, o PCB importou à realidade brasileira, pricipalmente durante a década de 40 e centralmente através da Revista Problemas, o jdanovismo: uma versão ainda mais truculenta do realismo soviético. Nesse contexto, o poeta Carlos Drummond de Andrade, frente à barbárie da segunda guerra mundial, desenvolveu suas obras mais sociais, Sentimento do Mundo e Rosa do Povo. Parte de sua abertura à vida política nesse período é muito perceptível em notas de 1945 em seu livro O Observador no Escritório:

Sou um animal político ou apenas gostaria de ser? Esses anos todos alimentando o que julgava ideias políticas socialistas e eis que se abre o ensejo para defendê-las. Estou preparado? [14]

Nesse momento, viveu então Drummond sua aproximação com o PCB: uma aproximação que durou pouco e se encerrou com o poeta entrando na fase mais pessimista de sua produção (marcada nos poemas de Claro Enigma, pessimismo esse que merece uma elaboração só sua futuramente) e de uma desconfiança com o comunismo (diretamente graças ao papel traidor do stalinismo) que carregou até o final da vida. No seu livro Drummond: Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas o professor e pesquisador Vagner Camilo elabora sobre esse período da vida de Drummond:

No caso do próprio Drummond, afora sua parca correspondência, há mais de um capítulo de O Observador no Escritório que reflete idêntica desilusão (para não dizer verdadeiro horror) e é nela que devemos buscar a razão, em boa medida, do abandono do projeto lírico mais abertamente participante de A Rosa do Povo, bem como do pessimismo dominante na fase de Claro Enigma. Vejam-se, nesse sentido, além das páginas do diário que tratam da ABDE, aquelas dedicadas à visita a Prestes na prisão; ao episódio da supressão da referência feita pelo poeta, numa resenha, ao nome da tradutora dos Textos Marxistas de Literatura e Arte, de Fréville: Eneida de Moraes, persona non grata ao partido, por opor-se à aliança dos comunistas com Getúlio Vargas; e aos momentos que antecedem o desligamento da editoria da Tribuna Popular, selando, assim, o fim do curto namoro frustrado do poeta com o PCB.

Em todas essas páginas evidencia-se – por parte daquele que, um dia, chegou a pactuar com a crença no stalinismo “como trampolim do movimento e da dialética da história daquele momento” [...] – o horror crescente diante do sectarismo, do patrulhamento ideológico e da censura a toda expressão mais descolada dos slogans e ditames da cartilha partidária, além das cisões e disputas internas, das manobras e apoios duvidosos do partido ao velho “ditador” abancado no Catete. [15]

Nesse marco, Drummond também se inscreve como parte de toda uma geração de ex-simpatizantes do comunismo afastados da luta revolucionária pelo choque com os horrores do stalinismo. [16] Não incutamos também no erro de achar que o afastamento de Drummond se deu de forma tranquila. Jornais impulsionados pelo PCB à epoca recheavam-se de calúnias contra intelectuais que um dia integraram suas fileiras e

Drummond foi também um dos alvos diletos dessas tentativas de desmoralização, faladas ou escritas, como bem demonstra um violento artigo de Oswaldo Peralva sobre as relações entre os intelectuais e o poder, publicado na Para Todos – o qual, segundo Raúl Antelo, “prenuncia futuras patrulhas ideológicas”. O artigo comporta, na verdade, uma série de acusações contra Rachel de Queiroz, Milliet, Cyro dos Anjos, Gilberto Freyre e o próprio Bandeira entre outros, afirmando que quem não escreveu na revista da polícia frequentava círculos multinacionais ou aceitava sinecuras do Estado [...]. [17]

Mas é contra Drummond que Peralva volta os ataques mais baixos: vai de acusá-lo de apoiar as bombas nucleares a acusá-lo de simpatizante do nazifascismo. Sobre este artigo Camilo argumenta:

A estratégia perversa de Peralva – quando não recorre à mentira deslavada, como a da simpatia do poeta pelo nazifacismo – é das meias citações, totalmente descontextualizadas, como a do episódio da bomba atômica. [18]

Na série de textos sobre Drummond neste período, se inclui também um artigo de Carréra Guerra analisando a transição da poética drummondiana e atribuindo o pessimismo e desilusão de Drummond a sua “visão de classe decadente”, não ao papel históricamente traidor do stalinismo. Frente a isto, quero acrescentar ainda um último caso, as memórias do velho Graça.

Graciliano Ramos se filiou do PCB em 1945, alguns anos após sair da prisão durante a ditadura Vargas. Apesar de nunca ter rompido com o partido (morreu em 1953), distanciou-se. Apesar de os conflitos artísticos com o partido terem se intensificado a partir de 1947, o foco do conflito do partido com obras suas se deu no terreno covarde do pós-morte. Neste caso há duas peças-chave na obra de graciliano que incomodaram os dirigentes do PCB: Viagem (seu relato de viagem à URSS) e Memórias do Cárcere (as memórias de sua prisão da ditadura Vargas). Ambas obras incomodaram a direção do partido – já em pleno estabelecimento do jdanovismo – pelo como tratavam de forma natural, não idealizada, figuras do próprio partido e a figura do próprio Stálin. Em recordações acerca de Graciliano, o ex-dirigente do PCB Jacob Gorender diz:

Nos anos cinqüenta, exercia a função de censor-mor Diógenes de Arruda, segundo personagem na hierarquia dirigente, stalinista distinguido por insolente ignorância. Com Arruda e seus acólitos é que Graciliano iria defrontar-se nos últimos anos de vida. Conflito que se agravou após sua morte, quando se tratou da publicação póstuma de suas duas últimas obras. [19]

Recorda então a questão envolvendo Viagem:

O livro, contudo, desagradou aos dirigentes comunistas. Por quê? Graciliano se confessou admirador da União Soviética e de Stálin, visto em pessoa no mausoléu de Lênin, na Praça Vermelha, por ocasião de uma festividade. Mas o escritor, sempre comedido, não tratou o famigerado déspota como se fosse um titã, um supergênio, conforme a praxe da propaganda comunista da época. Demais, vez por outra, sobre questões importantes ou de detalhe, fez comentários críticos ou jocosos, inclusive a seu próprio respeito. Na verdade, o livro de viagem desagradou aos censores do partido comunista, porque não adotou a retórica da exaltação de péssimo gosto exigida dos intelectuais militantes. [20]

Resgata por último algumas memórias acerca dos incomodos da direção do PCB com as Memórias do Cárcere e e o tratamento dado por Graciliano aos membros do partido e a um militante trotskista nas memórias:

Os personagens não são mencionados com pseudônimos, mas recebem os nomes verdadeiros e ninguém é apresentado como santo, destituído de defeitos ou imune a fraquezas e tentações. [...] Numa época em que a exaltação hiperbólica estava na moda, o tratamento sóbrio ou mesmo irreverente dado a personagens conhecidos não podia deixar de irritar os dirigentes do partido. Um deles comentou comigo: "Veja só, o Graciliano escreve que o Agildo [Barata] tem voz fina." Não confere exatamente com o que se lê.
[...]
Em várias passagens, o autor menciona com simpatia o companheiro de cadeia Febus Gikovate. Mas este, por ser militante trotskista, sofria hostilidades e discriminações por parte da grande maioria dos encarcerados, sob influência da campanha stalinista contra Trotski. Em 1936, Graciliano não era membro do partido comunista e não devia obediência à orientação de Moscou. Mas redigindo já como membro do partido, dez anos depois, manteve-se fiel aos registros da memória, à sua sensibilidade estética, psicológica e moral, ao compromisso supremo com a verdade. Por isso mesmo, condenou as discriminações impostas a Gikovate pelos próprios presos políticos. Não demorou muito tempo para que o conhecimento da falsificação praticada pelo déspota do Kremlin confirmasse que não falhou a intuição do escritor ao rejeitar o critério stalinista no julgamento de um militante revolucionário. [21]

Por fim, para além do mero incômodo, sobre a tentativa do PCB de diretamente censurar as Memórias do Cárcere, "sabe-se hoje que ela de fato ocorreu e que foi energicamente repudiada por Graciliano e, após a sua morte, pela família." [22] E não poderia ocorrer de forma diferente. Apesar de militante do partido, interessava a Graciliano a literatura como forma superior de testemunho sobre o homem e a história (como deixa inclusive bem marcado no prefácio das suas memórias), de forma que as orientações para suprimir trechos não poderiam lhe causar algo senão repulsa e de forma que sustentou até a morte sua independência enquanto artista.

3. Arte Revolucionária Independente e revolução permanente

Acima de todo o histórico sujo do stalinismo na censura e assassinato das vanguardas artísticas ao redor do mundo, há a arte revolucionária: a navalha que rasga o véu da ideologia burguesa e que não se restringe a um martelo para moldar o mundo. Durante o mesmo período aqui abordado, o dirigente revolucionário Leon Trótski junto ao surrealista André Breton elaboraram o Manifesto por uma Arte Revolucionária independente, pela defesa instransigente da arte livre para a revolução e da revolução para a liberdade da arte. Na mesma década que Pagu com seu Parque Industrial extrapolava os limites mesquinhos da arte stalinista e Mário Pedrosa elabovara sua conferência As Tendências Sociais da Arte e Kathe Kollwitz, Trótski e Breton junto ao conjunto dos marxistas revolucionários bradavam: A revolução comunista não teme a arte. E não apenas não teme a arte, como apenas a estratégia-programa da revolução permanente, o fio de continuidade do marxismo revolucionário e do leninismo, pode levar até o fim a luta pela completa liberdade artística. No eixo oposto ao dos contra-revolucionários, dedico sob a bandeira da Arte Revolucionária Independente aos milhares silenciados e mortos esses subsídios para uma elaboração futura.


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FOOTNOTES

[1VIEIRA, Denise Adélia; SILVA, Teresinha V. Zimbrão da. O comunismo nas letras brasileiras: a década de 1930. Lingua e Literatura, [s. l.], ed. 30, p. 299-319, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/article/view/97580. Acesso em: 2 jul. 2023.

[2ANDRADE, Oswald de. Diário Confessional. Companhia das Letras. 2022. p.36

[3Ibidem. p.37

[4Ibidem. p.38

[5Ibidem. p.39

[6GALVÃO, Patrícia. Pagu: autobiografia precoce. Companhia das Letras. 2020. p.78

[7MAGALHÃES, Mário. Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo

[8GALVÃO, Patrícia. Pagu: autobiografia precoce. Companhia das Letras. 2020. p.107-108

[9ÁBRAMO, Lélia. Vida e Arte. p.58-59

[10MACHADO, Afonso. Modernidade e a estética do credo vermelho. Edições Iskra, 2016. p.125

[11Ibidem p.126-127

[12VIEIRA, Denise Adélia; SILVA, Teresinha V. Zimbrão da. O comunismo nas letras brasileiras: a década de 1930. Lingua e Literatura, [s. l.], ed. 30, p. 299-319, 2012. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/linguaeliteratura/article/view/97580. Acesso em: 2 jul. 2023.

[13Idem.

[14ANDRADE, Carlos Drummond de. O Observador no Escritório: páginas de diário. Record. 1985

[15CAMILO, Vagner. Drummond: Da Rosa do Povo à Rosa das Trevas. Ateliê Editorial, 2001. p.65-67

[16Sobre isso, segue um trecho de uma entrevista cedida por Antonio Candido a José Pedro Renzi em 1992: "Lembro da impressão que tive vendo as atas do Processos de Moscou. Fiquei petrificado quando li as declarações dos grandes revolucionários de 1917, como Bukarin, Zinoviev, Kamenev, Radek, Piatakov e outros ’confessando’ que eram todos traidores a serviço das potências capitalistas! Foi uma das farsas mais trágicas e ignominiosas da história. Esses Processos de Moscou tinham sido decisivos para Paulo Emílio [Sales Gomes] rever a sua posição e, através dele, para alguns de nós. Outros rapazes que fui conhecendo naquela altura passaram por experiências paralelas [...] Eu amadureci politicamente ao lado de pessoas como estas, que tinham sido stalinistas e haviam adquirido horror ao stalinismo, sobretudo por causa dos Processos e do Pacto [Germano-Russo de 39], que provocaram neles uma espécie de iluminação retrospectiva: eles entenderam que estavam enganados fazia muito tempo, que Stalin era de fato um tirano e que Trotski tinha razão ao dizer que na Rússia se instalara uma degradação da revolução proletária." A entrevista completa foi publicada em Praga: Revista de Estudos Marxistas, nº 1, São Paulo, Boitempo Editorial, set./dez. 1996, p. 5-26.

[17Ibidem p.70

[18Ibidem p.71

[19GORENDER. Jacob. Graciliano Ramos: lembranças tangenciais. Estudos Avançados. 1995 p.325

[20Ibidem. p.326

[21Ibidem. p.327-328

[22BASTOS, Hermenegildo José de M. Memórias do Cárcere, literatura e testemunho. 1996
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Estudante de Letras da UFRN e militante da Faísca Revolucionária
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