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LITERATURA | Um diálogo entre a peste de Albert Camus e a atual crise sanitária

O escritor franco-argelino, Albert Camus, conhecido por refletir em suas obras a respeito de temáticas morais, políticas e existenciais, também contribuiu para a reflexão do tema da pandemia com sua obra: A peste, publicada no ano de 1947.

Kleiton NogueiraDoutorando em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG)

segunda-feira 18 de maio de 2020 | Edição do dia

Certamente, um olhar historiográfico acerca das pandemias nos mostra como no decorrer do tempo, males dessa esfinge atordoam a humanidade. Desde os escritos bíblicos, temos passagens sobre políticas de contenção de riscos e cuidados sobre patologias que dizimaram populações. Na idade média, por exemplo, a peste Bubônica teve grande alcance, dizimando populações inteiras durante vastos períodos, marcando quase que momentaneamente a derrocada do modo de produção feudal. Esse tema certamente chamara a atenção de literatos e intelectuais, um tema que em si, mexe bastante com a própria noção de humanidade em seu sentido mais existencial. Nos períodos de pandemia e crises agudas associadas a determinadas patologias, as saídas quase nunca chegam com urgência, provocando o perecimento da humanidade, das condições sociais e psicológicas dos sujeitos.

O escritor franco-argelino, Albert Camus, conhecido por refletir em suas obras a respeito de temáticas morais, políticas e existenciais, também contribuiu para a reflexão do tema da pandemia com sua obra: A peste, publicada no ano de 1947.

Passados mais de 73 anos de sua publicação, esse clássico da literatura internacional parece nos bater a porta em pleno isolamento social, nos fazendo mergulhar em uma teia de relações sociais que nos lembra a própria realidade vigente, nos transportando para pensamentos, análises e sentimentos que em si, parece que se repetem com a pandemia de Covid-19 que enfrentamos atualmente.

O enredo da obra é bastante fluído, de leitura leve e instigadora, as narrativas da personagem principal, o médico Bernard Rieux nos mostra o lado humano e técnico de um indivíduo que se vê no dever de salvar vidas frente ao surto de peste bubônica que assolou a pequena cidade de Oran. Cidade pacata de uma paisagem semelhante a de pequenas cidades interioranas do Brasil. Podemos assim, dividir a estória do livro em praticamente três atos: um primeiro vinculado ao surgimento da peste através de seu agente vetorial: ratos; um segundo mostrando o ápice e todos os elementos degradantes da patologia no corpo e na mente humana, e por fim, um possível retorno à normalidade após chegada do inverno com a suavização dos casos .

Há quem diga que Camus usando de sua imaginação alegórica, estava se referindo aos ratos como os invasores alemães no território francês. Não basta salientarmos que, a obra fora publicada apenas dois anos após o término da segunda guerra mundial, certamente Camus entreviu a insanidade nazista em seu território, as manifestações de alemães como ratos, que a tudo devoram e trazem doenças e destruição, nos parece bastante plausível. A esse modo, no enredo inicial do livro vamos assistindo a essa proliferação de ratos e com ela, a suspeita de nosso protagonista, que começa a observar que tais seres morrem de forma estranha, aos montes nas ruas, precisando ser retirados aos milhares pelo serviço público da cidade. Logo não tarda para que os primeiros moradores comecem a sentir os sintomas da peste: abscessos no sistema linfático, axilas, virilhas, febre, enfim, o corpo humano parece borbulhar expelindo algum mal que adentrara ao sistema

Mas, a obra não conta apenas com o Doutor Rieux, vemos também Raymond Rambert, um jornalista que, ao estar em Oran para estudar os hábitos culturais de árabes, se vê preso, não podendo mais sair dali, tentando assim, de alguma maneira criar planos de fuga em meio ao caos e a morte. Também encontramos o padre Paneloux, que diante da atrocidade da peste, busca culpabilizar as práticas humanas como pecaminosas, avaliando que tal sofrimento na verdade seria fruto de um castigo divino, merecido, uma vez que Deus e sua onipresença, guiará os destinos das pessoas e sabe o que seria melhor para elas. Tais elementos aparecem de sobremaneira na segunda parte do livro, quando a situação já está praticamente reconhecida como se tratando de uma peste, com medidas sanitárias de isolamento, restrições de comunicações, impedimento de entrada e saída da cidade, redução de chamadas telefônicas para casos de urgência. Nos parece que, mesmo se tratando de uma obra ficcional, hoje vivenciamos algo semelhante. Apesar de termos internet e as facilidades que ela engendra em termos comunicacionais, boa parte de nós (aqueles que podem e tem esse luxo), vivem em isolamento social.Por outro lado, temos de forma marcada e cravada na pele da classe trabalhadora, o fato de terem suas vidas em risco, uma vez que, com essa pandemia, percebemos que, esta foi a classe que não parou de trabalhar, seja nos serviços essenciais, e até mesmo nos serviços hospitalares, observamos que, a geração de valor, para lembrarmos de Marx, continua sendo a máxima existente, mesmo tem períodos distópicos.

E nesse mote, de isolamento e aumento dos casos, Camus insere o terceiro ato,
quando de fato temos aquelas imagens de corpos empilhados e enterros em grande quantidade, nada muito diferente do que temos hoje no Brasil, com as covas coletivas. Contudo, na obra de Camus fica claro o poder de ação estatal, no livro vamos observar pessoas sendo mortas pela repressão policial ao tentarem fugir da cidade, observamos também que o cotidiano daquela cidade pacata se tornara um verdadeiro inferno dantesco, com toda a melancolia que as mortes de mulheres crianças, idosos e homens poderia trazer. Outros personagens também chamam atenção, Jean Tarrou, um turista; Joseph Grand, um engenheiro civil; que em meio aos caos, ajudam o Doutor Rieux a cuidar das pessoas acometidas pela peste, mostrando que laços de amizade e companheirismo surgem em meio a desgraça. Lembramos também que, o próprio Rieux possui uma esposa doente em um sanatório que, ao estar em outra cidade, aparentemente se encontra a salvo de todo o infortúnio da peste.

De uma forma objetiva e para não nos alongarmos até o final dos próprios fatos existentes na obra como meio de estimular a sua leitura, consideramos que a riqueza de descrição e detalhe da escrita de Camus nos prende do início ao final da trama. Se num primeiro momento achamos que a obra é demasiadamente dura para um período de pandemia tal qual estamos vivenciando, por outro, a imersão nos sentimentos, nas paisagens e ambientes criados por Camus nos faz esquecer por instantes que nós mesmo estamos em pandemia, pode parecer estranho, mas a sensação que tive ao ler a obra foi de uma total imersão de uma pequena cidade francesa infestada de ratos, ao mesmo tempo que pude ser privilegiado ao antever pensamentos e atos dos próprios sujeitos presentes na obra.

Por outro lado, parece que de fato o objetivo de Camus foi demonstrar a visão da pandemia pelo olhar privilegiado do Médico Rieux, ao mesmo tempo, podemos refletir que atualmente, milhares de profissionais de saúde estão na linha de frente do combate a pandemia, sendo o Brasil um dos principais países que mais possuem mortes de enfermeiros. Toda essa reflexão nos liga ao ponto que sempre levantamos no Esquerda Diário, da necessidade de testes massivos e condições dignas de trabalho para esses profissionais.

Ao lermos a obra de Camus, percebemos também que o Estado e as medidas tomadas no enredo da história são antidemocráticas e bonapartistas, se na cidade de Oran temos a morte de “fugitivos”, no Brasil temos a morte de milhares de pessoas, profissionais de saúde e chacinas provocadas por representantes como Witzel no Rio de Janeiro. Esse Estado antidemocrático, de classe, procura em primeiro lugar garantir a posição da burguesia, tal como Camus reflete mesmo que sem intencionalidade, uma vez que a figura do trabalhador comum quase não aparece em sua obra.

Por fim, queríamos apenas colocar que, mesmo a obra refletindo um cenário distante historicamente, nos parece bastante atual as medidas e ações realizadas. Isso nos da o tom de como o capitalismo age frente a catástrofes, sendo ele mesmo agente ativo desses problemas. A atual pandemia não esta dissociada da Economia, do trabalho, da sociedade e da vida das pessoas, pelo contrário, ela se liga fortemente a nossa qualidade de vida, ao ritmo imposto pelo capitalismo, ao saque que sofremos da burguesia sobre o nosso trabalho, e pela toda uma série de fatores que ecologicamente estão ligados em um totalidade tal qual Marx desvendou no Capital.

Portanto, mais do que indicada, a Peste de Camus serve para observarmos como não somos tão “modernos” assim, que a partir de cada formação social específica, temos problemas e que mesmo os Estados Unidos, considerado o país modelo para muitos, as mortes não param de crescer. Todos esses elementos apenas nos indicam que a saída está na destruição do Capitalismo, na reinvenção da sociedade e na busca por novas sociabilidades que levem em consideração uma ecologia de saberes e um metabolismo benigno à natureza da qual, fazemos parte.




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