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Um surrealista no quilombo: Palmares, Péret e a liberdade enquanto motor da história

Afonso Machado

Um surrealista no quilombo: Palmares, Péret e a liberdade enquanto motor da história

Afonso Machado

Não foram poucos os feitores que fantasiados de intelectuais passaram tinta na Casa Grande, perfumaram com mentiras os campos e suas vastas plantações, bateram retratos dos grandes proprietários de terras e se calaram sobre o que se passava nas senzalas. Na história do Brasil, a palavra escrita foi fartamente utilizada para realçar os bigodes dos senhores de engenho, o traje dourado dos proprietários das minas de ouro, os milhões dos barões do café, os lucros dos industriais e por aí vai.

Em menor número existem os intelectuais (sejam eles historiadores, jornalistas, romancistas, poetas etc) que escrevem para todos lerem e ouvir que foram os braços de gerações de mulheres e homens negros que construíram as bases materiais do país. Foram esses trabalhadores escravizados que, sob um sol infernal que durou séculos, produziram o Brasil concreto. Assim temos de um lado a perspectiva histórica fincada no violento solo do trabalho e, do outro, as maquiagens ideológicas. A verdade é que a luta de classes sempre condiciona a memória histórica.

Mas os braços, tais como as pernas, os corações e as mentes destes corpos negros, não existiram unicamente como força de trabalho nos latifúndios e nas minas de ouro. Como todos sabemos estes corpos souberam lutar, dançar e se organizar politicamente contra todos os senhores. A saga do Quilombo de Palmares, episodio histórico que pode ser considerado ao lado da Revolução do Haiti como a maior rebelião negra da história das américas, integra a tradição revolucionária dos oprimidos de todos os tempos e lugares. Se faz necessário salientar que a exemplo da história de qualquer outro povo onde enfrentam-se opressores e oprimidos, existe um alcance universal na memória dos vencidos, o que por sua vez gera ecos em variados contextos culturais.

Palmares e Péret: a memória dos oprimidos

Distinta da História universal enraizada no eurocentrismo, a universalidade expressa na memória dos oprimidos trata do reconhecimento e da redenção política do humano em sua diversidade cultural. A história do Quilombo de Palmares consiste precisamente nisso. Não importa se o narrador/historiador dessa história comprometida com a tradição revolucionária, seja brasileiro ou estrangeiro, branco ou negro. Vamos a um exemplo notável: foi o poeta surrealista e trotskista francês Benjamin Péret, que redigiu um dos mais belos relatos históricos sobre Palmares. Em 1956, quando as pesquisas históricas sobre Palmares ainda davam para serem contadas nos dedos, a saudosa revista Anhembi publica o ensaio "Que Foi o Quilombo de Palmares?", de Péret.

Com exceção do pioneiro estudo crítico O Quilombo de Palmares (1947) de Edson Carneiro, obra que foi de grande serventia para o texto de Péret (embora como veremos, o autor francês exprime algumas diferenças na leitura dos eventos históricos), faltavam escritos combativos. Benjamin Péret contribui com uma análise heterodoxa e materialista sobre Palmares, animada pela ideia da liberdade enquanto aspiração humana e logo motor das lutas sociais. O autor possuía as credenciais de intelectual revolucionário independente para narrar a experiência histórica de Palmares. Este francês foi da pá virada.

A trajetória intelectual e militante de Benjamin Péret deixa qualquer historiador de boca aberta. O cara foi uma presença vital na fundação, organização e atuação do movimento surrealista desde a segunda metade da década de 1920 até a morte do poeta em 1959. Péret foi um dos primeiros na França a aderir á Oposição de Esquerda, num momento em que ser trotskista envolvia perigo de vida. Ele esteve ligado ainda a momentos ímpares da vida política e cultural do Brasil. O poeta foi um militante seminal na organização do movimento trotskista na terra dos papagaios (Péret foi chapa de Mário Pedrosa, Lívio Xavier e Aristides Lobo) e um apimentado colaborador do modernismo brasileiro, muito particularmente na barulhenta e iconoclasta ala antropofágica liderada por Oswald de Andrade.

Na qualidade de historiador, não era a primeira vez que Péret se debruçava sobre a história do Brasil: quase duas décadas antes de escrever uma breve história de Palmares, o autor redigiu um volume sobre a Revolta da Chibata de 1910, artigos sobre o candomblé e pesquisas envolvendo culturas indígenas. Sendo o conservadorismo e a repressão política elementos constantes de nossa história, Péret vivia com os tiras no seu calcanhar (parte dos seus escritos foram destruídos pelas autoridades brasileiras). Benjamin Péret, autor de versos selvagens e libertários, pesquisador e defensor do Amor Sublime(ele e seu camarada de lutas e ideias André Breton, escreveram e defenderam o amor como ninguém), foi um marxista de mão cheia. Mas contrastando com os autores caretas que no século passado caíram nas graças sem graça do stalinismo, Péret exercitou a prosa histórica marxista no seu único e autêntico lugar de pertencimento: a militância revolucionária. Este surrealista e trotskista lançou um olhar original sobre as lutas lideradas no século XVII por Zumbi de Palmares, personagem histórico que alguns militantes de esquerda brasileiros denominaram como sendo o “Spartacus negro“.

O Quilombo de Palmares segundo a ótica marxista

Para contar a história do Quilombo de Palmares, Péret se cercou de documentos do século XVII (O Diário da Expedição Blaer e Relação das Guerras Feitas aos Palmares de 1675 a 1678) e do que havia sido então escrito a respeito (obras de Sebastião da Rocha Pita, Raimundo Nina Rodrigues, Ernesto Bizarro Ennes e o já citado Edson Carneiro). O grande barato do ensaio de Péret no entanto, foi a exposição do desenrolar dos acontecimentos marcados pelas investidas portuguesas e holandesas contra Palmares, de acordo com analogias históricas da luta de classes: as heresias dos cátaros nos séculos XII e XIII, os revolucionários do século XVIII, a Comuna de Paris de 1871.

A escrita analógica é certamente um campo narrativo que remete ao Surrealismo. Em um importante texto dedicado a Péret e seu escrito sobre Palmares, Robert Ponge comenta o lirismo do poeta em sua narrativa polvilhada de analogias e cheia de energia poética. Esta poesia que emerge da prosa histórica revela um tipo de beleza de brigada que exalta precisamente aquilo “que não deu certo na história“. É o gosto imoderado pela liberdade aliado ao significado político subversivo do estudo da história, que fundamentam a posição de Péret.

Em Péret a luta de classes não poderia ser representada segundo o reducionismo dos marxistas economicistas. Para o surrealista e marxista, a defesa da liberdade é a defesa dos oprimidos ao longo da história. Péret comenta o papel da liberdade no fluxo dos acontecimentos históricos:

(...)“ quando o homem dela se vê privado, não tem sossego enquanto não a reconquista, de modo que a história poderia limitar-se ao estudo dos atentados contra a liberdade e dos esforços dos oprimidos para sacudir o jugo que lhes foi imposto“(...).

Ao contextualizar a saga palmarina, Péret afirma:

“Tal como foi, o quilombo dos Palmares representa um episódio da luta dos homens pela sua libertação. Essa tentativa não era por certo viável(...) Não impede que o quilombo tenha insuflado aos negros do Brasil uma grande esperança(...)

O Quilombo de Palmares

O Quilombo de Palmares, que entre o final do século XVI e o ano de 1695 estabeleceu na região de Alagoas um poder independente de escravizados rebeldes frente aos senhores de engenho e á administração política portuguesa na colônia, permeia a imaginação histórica de maneira politicamente atuante. Impossível pensar a linguagem e o discurso contestador do movimento negro brasileiro atual sem a presença histórica do personagem Zumbi.

Em meio a um processo histórico de disputas entre colonizadores europeus, tal como registra a invasão dos holandeses no nordeste e seu domínio na região de Pernambuco entre os anos de 1630 e 1654, palmarinos constituíram uma ordem política que, tal como diria o outro Benjamin (quer dizer, Walter Benjamin), consiste na abertura de uma outra história possível: foi erguido o Quilombo de Palmares, uma alterativa política e existencial para aqueles que conseguiam fugir da vida de escravizado. Os mocambos revelaram uma organização independente e organicamente ligada ás tradições africanas, ao passo que o gênio militar de Zumbi passaria a ser de extrema importância na resistência contra as investidas das tropas luso pernambucanas. Diferentemente de Ganga Zumba, o líder Zumbi não aceitava acordos com as autoridades coloniais , afinal tratava-se de uma luta de morte entre senhores e escravizados.

Como dito acima, Péret teve como base historiográfica o clássico O Quilombo de Palmares (1947) de Edson Carneiro. Mas sua conclusão é distinta do historiador brasileiro pelo fato de Péret compreender a derrota da “Troia Negra “ a partir do seu isolamento político e militar, ou seja, apesar do maior quilombo do século XVII representar (nas palavras de Carneiro) “ um chamamento “ para todos os cativos, não houve uma articulação política entre os escravizados fugitivos do território colonial para lidar com a crescente repressão militar na região da Serra da Barriga. Como aponta Ponge, Mário Maestri sugeriu uma interessante analogia entre o pensamento político de Leon Trotski e a narrativa histórica de Péret sobre Palmares.

Se Trotski afirma que a vitória do socialismo está na destruição total dos Estados capitalistas, Péret afirma que a salvação de Palmares dependia da destruição da sociedade escravista. Quer dizer, o diagnóstico de Trotski que se aplica a um momento específico da história do capitalismo, isto é, a etapa imperialista, ensina o proletariado que sua luta não poderia estar isolada nos limites nacionais. Péret por sua vez mostra que numa etapa inicial da história do capitalismo, ou seja, a etapa da acumulação primitiva de capital (que nos territórios colonizados dependia da manutenção da escravidão) os escravizados não poderiam ficar reféns da sua imobilidade, isolados em um quilombo. Aqui o pensamento trotskista alarga suas lições políticas e militares para outros períodos históricos.

O escritor francês narra, em seu estudo histórico, que no início de 1694 tropas assaltantes cercaram com paliçadas o mocambo Real do Macaco. Durante a sangrenta noite de 5 e 6 de fevereiro daquele ano, os quilombolas foram esmagados. Zumbi, que conseguira fugir, lutaria até a morte após o seu esconderijo ter sido revelado por um lugar-tenente. Em 20 de novembro de 1695 a cabeça de Zumbi foi decepada e exposta em Recife. A memória dominante feita destas e outras demonstrações de brutalidade, encontra seus personagens heroicos em homens como Domingos Jorge Velho, o bandeirante que liderou a destruição de Palmares, e Padre Vieira, intelectual defensor do escravismo e que abençoou aquele genocídio. Mas de acordo com a lógica da luta de classes, personagens como Zumbi e Dandara resplandecem enquanto ancestrais dos oprimidos do Brasil; seus exemplos históricos encontrariam herdeiros nos levantes revolucionários da Bahia nos séculos seguintes, abrindo inclusive caminho para a luta abolicionista durante a segunda metade do século XIX.

Passados mais de 60 anos o ensaio de Péret ajuda a perpetuar a memória dos quilombolas do passado. Este escritor francês, que experimentou na própria carne a barbárie das guerras da primeira metade do século XX e que foi implacavelmente perseguido devido ás suas convicções políticas revolucionárias, encontrou um exílio na América portuguesa, mais exatamente em Palmares: Péret, poeta revolucionário do século XX, foi recebido de braços abertos pelos palmarinos do século XVII. Afinal ele é um historiador que olha os fatos a partir do ponto de vista de quem luta. Passados séculos daquelas lutas contra a ordem opressora na colônia, podemos afirmar que aqueles quilombolas sempre vencem na arena simbólica do imaginário histórico: é neste terreno que a tradição revolucionária crava sua lança feita de poesia e política contra as classes dominantes.


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