trechos de “Selvática”, de Karina Buhr –
Karina Buhr já passou pela banda Eddie, Comadre Fulorzinha, tocou com diversos artistas, e agora chega ao seu terceiro disco solo. Depois de “Longe de Onde” e “Eu menti pra você”, “Selvática” já era esperado com expectativa. Quando a capa do seu disco, que trazia uma foto belíssima de Karina empunhando um punhal e com os seios de fora – imagem que foi censurada pelo facebook, por não estar dentro dos padrões aceitos, onde o corpo da mulher pode ser hiperssexualizado, mas onde a mulher não tem o direito de fazer com seu corpo aquilo que bem quiser, inclusive tendo a liberdade de mostrá-lo sem sofrer sanções – foi tido como certeza, que a cantora lançaria mais uma vez uma obra provocadora.
“Selvática”, o disco
Nas onze faixas do novo disco Karina Buhr destrincha principalmente críticas à sociedade patriarcal e machista, onde feminicidios são naturalizados e muitas vezes romantizados. Mas há também a crítica a especulação imobiliária que pensa a cidade apenas para o lucro dos poderosos, que se põem na posição de donos das cidades, e não para a comunidade que viverá nela. Tudo isso colocado entre letras muito bem trabalhadas, uma sonoridade única; enfim, uma arte política.
A primeira canção do disco que veio ao conhecimento do público foi a “Eu sou um monstro”, onde a cantora canta contra a apatia que se deseja da mulher e o papel de princesa que ela deve cumprir. Foi a primeira mostra de que esse disco seria mais uma vez uma Karina Buhr metendo o pé na porta e gritando contra o que se espera de uma mulher e se colocando por fora do estereótipo de cantora de MPB de vestido cumprido e pés descalços cantando sobre amor. É mais uma vez a afirmação de uma cantora com uma presença de palco extraordinária que se bate contra o microfone em suas apresentações.
A quarta canção do álbum, “Pic Nic”, traz uma letra construída com ordens dadas para que um churrasco seja feito, mas subvertendo a lógica, onde essas ordens deveriam ser dadas por um homem a uma mulher, elas são dadas para um “ele”. Nessa letra também é invocado a dupla jornada da mulher, onde ela trabalha fora para conseguir um salário, cuida da casa, dos filho e provê toda uma vida para o seu marido.
Na seguinte música, “Esôfago”, Karina Buhr narra um feminicidio, mas não só isso, canta também a naturalização, a romantização desses assassinatos, e a culpabilização da vitima: ““Eu não posso te deixar, querida minha, te levarei junto”, disse o assassino, o aplauso do público”.
A cantora segue para a punk “Cerca de prédio”, que trata da especulação imobiliária. Essa música nos remete a luta do movimento “Ocupe Estelita” do qual Karina faz parte – sobre o qual valeria um texto exclusivo.
O movimento Ocupe Estelita, pela prórpia palavra deles é um movimento, que “luta há três anos contra um modelo de desenvolvimento urbano guiado apenas por interesses econômicos, que destrói a identidade de nossa cidade e promove uma ideia ultrapassada de progresso e modernização”, se “contra o urbanismo segregador e suas conseqüências hostis para a cidade.” Lutando por uma cidade mais inclusiva e que seja formada para o povo e não para entrincheirar a pequena-burguesia em prédios, que são inteiras cidades, deixando do lado de fora de suas cercas tudo aquilo que não é de interesse delas; a real cidade constituída por trabalhadores.
A música “Alcunha de ladrão” narra a história de alguém que mendiga e rouba movido pela fome, que dói no estômago. A fome leva o homem a ganhar a alcunha de ladrão, que roubando e pedindo para ter o que comer tem como seu principal medo a polícia, e tem todos os seus sonhos e desejos passados apagados.
O disco se encerra com “Selvática”, onde Karina Buhr chama de “selváticas” as mulheres. A canção é como um feitiço de bruxa – brincando com a acusação de bruxaria, que muitas mulheres sofreram e pelas quais foram queimadas em “inquisições de fogueiras”, como traz um dos versos, por não agirem sob a passividade com que a sociedade ordenava que elas agissem -, que traz os desejos que devem vir a se realizar, em uma nova sociedade em que mulheres não serão mortas por serem mulheres e serão verdadeiramente livres.
“Selvática” é mais um disco de Karina Buhr que merece especial atenção no cenário musical atual e merece também a presença nos shows da cantora para ver essa obra se transformar em espetáculo sobre a grandiosa atuação dessa cantora; para se ver uma mulher se afirmando como tal, contra os conselhos patriarcais de como deve agir e ser.