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Os usos de Ruy Mauro Marini
Seiji Seron

A teoria da dependência mais conhecida é a de Fernando Henrique Cardoso, co-autor de Dependência e desenvolvimento na América Latina (1969), junto ao sociólogo chileno Enzo Faletto. Porém, existe outra versão, à qual alguns intelectuais têm se referido como a “teoria marxista da dependência” (TMD). Sua principal exposição encontra-se em Dialética da Dependência (1973), de Ruy Mauro Marini (1932-1997).

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Depois de situar as teorias da dependência em seu contexto histórico, apresentaremos de maneira breve as principais categorias de Dialética da Dependência e, em seguida, um balanço das contribuições e limites da TMD, comparada à Teoria da Revolução Permanente (TRP).

Do desenvolvimentismo ao dependentismo

Em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) criou a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), cujo objetivo declarado era estimular o desenvolvimento da região. Sua real finalidade era mitigar o poder de atração da URSS, tendo uma função de propaganda análoga a do Estado de Bem-Estar Social em relação à Europa ocidental. Todavia, a CEPAL divergia das teorias da modernização estadunidenses, que concebiam o subdesenvolvimento como uma etapa do desenvolvimento pela qual todas as economias tinham passado ou, mais cedo ou mais tarde, teriam de passar. [1] Os cepalinos contrapunham teoricamente a estrutura diversificada e homogênea dos “centros”, onde o progresso técnico difundiu-se por todos os ramos e setores da economia, à das “periferias”, estruturas heterogêneas e especializadas, atravessadas pelo dualismo: setores “modernos” e de alta produtividade, voltados para a exportação, convivendo lado a lado com setores “arcaicos” ou pré-capitalistas.

Além disso, a CEPAL constatou empiricamente que, a longo prazo, os preços mundiais dos produtos primários tende a cair mais que os dos produtos industrializados, de modo que se deterioram os termos de troca entre economias primário-exportadoras e exportadoras de produtos industrializados; a fim de importar a mesma quantidade de produtos industriais destas, aquelas precisam aumentar cada vez mais o volume de suas exportações. Portanto, países como o Brasil teriam não de se especializar naquilo em que têm vantagem comparativa, e sim diversificar sua pauta de exportações, para o que seria imprescindível a intervenção do Estado, ainda que associadamente ao capital estrangeiro. As teses cepalinas eram timidamente endossadas pelos partidos comunistas “oficiais”, ou seja, stalinistas, segundo os quais a revolução, nas sociedades latino-americanas, teria uma primeira etapa em que o proletariado precisaria apoiar e se subordinar à burguesia “nacional”, contra o imperialismo e o latifúndio até que, finalmente, um longo período de desenvolvimento das forças produtivas pusesse o socialismo na ordem do dia.

Mas, a partir de fins da década de 1950, o processo de industrialização das economias latino-americanas acarretará problemas inflacionários e de desequilíbrio das contas externas, motivando críticas à CEPAL. [2] Ao mesmo tempo, a Revolução Cubana provocará uma radicalização da juventude e da intelectualidade ao refutar o etapismo stalinista, em que pese não tê-lo feito de maneira consciente, e sim por meio de uma direção pequeno-burguesa que foi obrigada a ir além do que queria em sua ruptura com a burguesia para se defender do imperialismo e da pressão revolucionária das massas. Os golpes militares que se seguirão àquela Revolução comprometerão ainda mais o prestígio dos partidos stalinistas e sua política de subordinação aos governos nacional-desenvolvimentistas. Esse é o caldo de cultura que nutriu a formação da “nova esquerda”: organizações centristas que reuniam militantes rompidos do stalinismo, do reformismo e do nacionalismo burguês, e que obstaculizaram a construção de partidos consistentemente revolucionários e internacionalistas, mesmo rejeitando as alianças com a burguesia nacional.

Ruy Mauro Marini foi dirigente de duas daquelas organizações: o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), chileno, e a Organização Marxista Revolucionária – Política Operária (ORM-Polop), brasileira. Também foram membros da Polop os outros dois fundadores da TMD, além de Marini: Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos. Convencionalmente, divide-se a dependência em três fases: comercial, tecnológico-industrial e financeira. [3] Em todas as três fases, as economias dependentes exportam produtos primários a fim de acumular reservas cambiais, e contraem dívidas quando tais reservas são insuficientes em relação às obrigações externas do país em questão. Na fase comercial da dependência, o acúmulo visa a importação de bens de consumo industrializados; na tecnológico-industrial, a importação de bens de capital e a remessa de lucros às matrizes do capital estrangeiro. A fase atual é a da dependência financeira, em que o estoque de divisas precisa adequar-se aos fluxos do capital especulativo, ou seja, das bolsas de valores, etc. Nossa exposição das categorias de Marini está estruturada em torno das duas primeiras fases.

Dependência comercial: troca desigual e superexploração

Sabiamente, Ernest Mandel assinalava que a concorrência capitalista resume-se ao título do quadro de Pierre Brueghel: Os peixes grandes devoram os pequenos. [4] No caso da concorrência entre capitais de um mesmo ramo, aqueles cujas mercadorias foram produzidas com menos tempo de trabalho do que o socialmente necessário apropriam-se de um lucro extraordinário enquanto essa técnica mais produtiva não puder ser assimilada pelos seus concorrentes. Como os capitais movimentam-se entre os ramos e setores da economia atrás da maior rentabilidade, o mesmo mecanismo transpõe-se para a concorrência intersetorial. No livro III d’O capital, Marx esclarece que as mercadorias são trocadas não diretamente pelos seus valores, mas por seus preços de produção, que são iguais aos custos de produção mais o lucro médio. Nos setores em que a composição orgânica do capital é maior [5] que a média da economia, os preços de produção são superiores aos valores, e vice-versa. Consequentemente, os setores de composição orgânica mais baixa não se apropriam de todo o valor que produziram, enquanto os de composição mais elevada se apropriam de um valor maior do que efetivamente produziram, de modo que ocorre uma transferência de valor dos setores de menor para os de maior composição orgânica.

O resultado dessas transferências é a tendência à concentração e à centralização do capital, que cria barreiras setoriais à entrada de novos concorrentes na medida em que aumenta proibitivamente os custos do investimento. [6] Mas, se isso ocorre no interior das fronteiras nacionais, por que seria diferente no plano do mercado mundial? A troca desigual é a categoria que sintetiza o funcionamento da concorrência internacionalmente. Pela via do comércio exterior, as economias que têm baixa produtividade ou cuja pauta de exportação compreende setores de baixa composição orgânica transferem parte do valor que produziram às de maior produtividade e que monopolizam internacionalmente os setores de alta composição orgânica. Essa é a verdadeira causa da deterioração dos termos de troca (ou intercâmbio), causa essa que, contudo, não depende de que a natureza das exportações seja exclusivamente primária ou industrial, e sim do nível de desenvolvimento das forças produtivas.

Por causa dessas transferências de valor, a necessidade da burguesia dos países dependentes de transferir renda do fundo de consumo para o fundo de acumulação é redobrada. [7] O aumento da produtividade do trabalho permite a redução dos preços dos bens-salário, necessários à reprodução da força de trabalho, e o consequente aumento da extração de mais-valia relativa. Assim, os países imperialistas puderam transformar parte do fundo de consumo em fundo de acumulação sem rebaixar drasticamente as condições de vida da classe trabalhadora e, às vezes, até elevando-a [8]. Mas, como as trocas desiguais diminuem o fundo de acumulação das economias dependentes, estas não podem assimilar progresso técnico no mesmo ritmo que aqueles países. A fim de compensar as trocas desiguais, a burguesia dos países dependentes precisa transferir renda do fundo de consumo para o de acumulação sem que tenha havido uma correspondente diminuição do custo de reprodução da força de trabalho, isto é, rebaixando o nível de vida da classe trabalhadora.

Isso não quer dizer que a taxa de exploração das economias dependentes seja maior que a dos países imperialistas. Seria de se esperar o contrário [9], já que, nestes últimos, o tempo de trabalho necessário, durante o qual o trabalhador produz o equivalente ao seu salário, é muitíssimo menor e, por isso, o tempo de trabalho excedente, em que é produzida a mais-valia, pode ser maior, ainda que as jornadas diárias de trabalho sejam menores que as dos países dependentes. O cerne da categoria superexploração não é a taxa de exploração, e sim que o mecanismo de compensação das trocas desiguais implica uma forma de acumulação específica, a qual depende menos do aumento da capacidade produtiva do trabalho e mais do desgaste físico dos trabalhador [10].

Dependência tecnológico-industrial: cisão entre as esferas alta e baixa do consumo

Segundo Marini, “o fundamento da dependência é a superexploração do trabalho.” [11] Esta irá moldar o processo de industrialização das economias dependentes, que é tardio, ocorrendo após a Segunda Guerra Mundial [12], depois de já ter se expandido substancialmente o setor produtor de bens de capital dos países imperialistas. Nestes, a industrialização foi orgânica [13], tendo se desenvolvido primeiro as indústrias relativas aos bens de consumo, como a têxtil, na Inglaterra, para que, depois, o consumo de massas estimulasse o crescimento do setor de bens de capital. Ao separar produtores diretos e meios de produção, a acumulação primitiva do capital criou o trabalhador assalariado e, por conseguinte, o consumidor, isto é, o mercado interno.

Já nas economias dependentes, a superexploração “deprime os níveis de demanda interna e erige o mercado mundial como única saída para a produção.” [14] Na fase da dependência comercial, a demanda de bens industrializados provém, em boa medida, das classes dominantes, ou seja, do consumo suntuário [15]. “A industrialização latino-americana [...] nasce para atender a uma demanda pré-existente,” [16] portanto, e o fato de ter sido promovida pelo capital estrangeiro terá consequências disruptivas [17]. Ao contrário do que alegam os economistas burgueses, os investimentos estrangeiros não suprem insuficiências da poupança interna, e sim restituem os valores transferidos via trocas desiguais, e só os restituem parcialmente, já que, além das remessas de lucros, pagamentos de juros, dividendos, royalties, etc., [18] parte do dinheiro é usada para importar bens de capital dos mesmos países de onde se origina o investimento.

Como o capital estrangeiro tem essa vantagem tecnológica, o capital nacional dificilmente pode competir, a não ser reforçando a superexploração, o que favorecerá ainda mais o próprio capital estrangeiro. Assim, o lucro extraordinário tende a se fixar no setor que mais atrai investimentos estrangeiros, o mais dinâmico da economia: a produção suntuária. [19] Se o mercado externo tinha possibilitado às classes dominantes dos países dependentes “desenvolver expectativas de consumo sem contrapartida na produção interna” [20], a industrialização latino-americana não pôde senão internalizar a cisão, existente desde a fase anterior, entre as esferas alta e baixa do consumo, tornando-se um “novo anel da espiral” [21] da dependência. A estrutura produtiva das economias dependentes tende a se divorciar das necessidades das massas ainda mais que a dos países imperialistas. [22]

Os limites estratégicos da TMD

As categorias troca desigual, superexploração e cisão entre as esferas do consumo são uma notável contribuição de Marini à crítica da economia política. Por meio de tais categorias, Marini demonstra quão infrutíferas são as tentativas, como da CEPAL, de superar o atraso de países como o Brasil ampliando seus setores “modernos”, isto é, as relações capitalistas de produção. Em outras palavras, o subdesenvolvimento não é uma insuficiência de capitalismo, ou mesmo de industrialização, e sim uma característica intrínseca do capitalismo à escala mundial. Talvez seja a atualidade dessa crítica de Marini ao desenvolvimentismo que explique o recente crescimento de sua popularidade entre intelectuais e militantes de esquerda, ao mesmo tempo que o imperialismo redobra sua ofensiva sobre a América Latina, arquitetando golpes contra governos de conciliação de classes, inclusive, enquanto se fortalecem, contraditoriamente, desenvolvimentismos mais “clássicos”, se comparados ao petismo, como o de Ciro Gomes. Entretanto, os assim-chamados teóricos “marxistas” da dependência nunca se desprenderam do marco teórico cepalino a ponto de formularem uma estratégia política propriamente proletária. Neste sentido, as ambiguidades da TMD são tantas que podem reivindicá-la indistintamente organizações tão diversas quanto a Consulta Popular e até o próprio PCB.

Através da TRP, Trótski ressaltava como a economia mundial é uma totalidade internamente diferenciada que domina do alto os mercados nacionais. [23] As unidades nacionais que compõem essa totalidade só podem se desenvolver às custas do subdesenvolvimento de outras unidades dessa mesma totalidade. Nos países mais adiantados, conformaram-se monopólios e oligopólios que, fundindo os capitais industrial e bancário, disputam encarniçadamente os espaços mundiais de valorização, isto é, as semicolônias e países dependentes, para os quais são exportados capitais, seja na forma de empréstimo ou investimento estrangeiro direto (IED). Logo, não existe distinção entre países “maduros” e “não maduros”, já que, a despeito das particularidades nacionais, “o capitalismo preparou o conjunto da economia mundial para a reconstrução socialista.” [24] Embora a Polop afirmasse o caráter socialista da revolução brasileira, tal caracterização dizia mais respeito às possibilidades de desenvolvimento caso o Brasil se integrasse ao bloco soviético naquele então do que à conquista do poder pela classe trabalhadora com o objetivo de transitar a uma sociedade sem classes, o comunismo, o que só é possível através da extensão internacional da revolução. Por isso, a “nova esquerda” não denunciava a ausência de regimes de auto-organizacão operária em Cuba, e em todo o resto do bloco "socialista", a não ser muito superficialmente, e nunca concluiu serem necessárias nem revoluções antiburocráticas, em tais países, nem a construção de um novo partido mundial da revolução socialista, aos moldes da III Internacional, antes de sua degeneração stalinista.

Apesar de terem dirigido uma organização chamada Política Operária, Marini e seus companheiros tampouco tinham uma definição adequada do sujeito revolucionário; suas menções ao “povo” são muito mais frequentes que ao proletariado, e a principal palavra de ordem do MIR, “Poder Popular”, tinha um conteúdo estratégico de pressão sobre o governo de Salvador Allende comparável à orientação errônea que tinha o Partido Bolchevique antes do retorno de Lênin à Rússia, em abril de 1917: apoio crítico sem participação no Governo Provisório. Ainda assim, é difícil entender que, ao regressarem do exílio, Vânia e Theotônio tenham se filiado ao PDT, que não só é um partido burguês mas representa a continuidade farsesca do mesmo nacional-desenvolvimentismo a que a Polop tanto rechaçava! [25] Para o atual PCB, Marini é especialmente útil, pois sua apropriação permite a esse partido fingir ter se tornado “radical” e contrário às alianças com a burguesia “nacional” sem ter de acertar contas com sua história stalinista e reconhecer a corretude da luta de quem, na década de 1920, foi expulso por se opor a tais alianças e defender intransigentemente a independência de classe: o trotskismo.

 
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