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ANÁLISE
O que a conjuntura aberta em fevereiro mostrou da crise orgânica brasileira?
Leandro Lanfredi
Rio de Janeiro | @leandrolanfrdi

Terminou um fevereiro de crises. Março não promete calmaria. Entender onde estamos, pra onde é possível ir, é crucial para orientar a ação da juventude e da classe trabalhadora.

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Neste artigo percorreremos 3 elementos para compreensão e intervenção na realidade nacional. Primeiro a relação entre a conjuntura e correlação de forças; segundo, a relação da conjuntura, da correlação de forças com o que definimos como “crise orgânica” e por fim, em terceiro lugar, alguns elementos de como agir para um desfecho favorável aos trabalhadores e às massas.

Nos idos de março promete-se uma medição de força, com atos de rua impulsionados pelo bolsonarismo (dia 15) e contra o bolsonarismo (dia 18). Uma medição de força inscrita no marco de uma situação que mantém traços importantes como uma situação reacionária, mas como medição de força oferece oportunidades não desperdiçáveis aos trabalhadores e da juventude.

Trata-se de uma conjuntura bastante dinâmica e conflitiva. Cheia de interrogações sobre as continuidades reacionárias, parciais descontinuidades e até mesmo aprofundamentos de uma correlação de forças desfavorável aos trabalhadores. Está bastante em aberto e em jogo, a ação da classe trabalhadora e da juventude é parte constitutiva de para onde pode evoluir a situação, se a conjuntura mantém-se como está ou evolui e, se sim, para qual lado.

1- A conjuntura e sua relação com a correlação de forças de longo prazo

Já estamos entrando no oitavo ano de uma situação onde há expressiva, senão predominante, divisão política e social, e uma igualmente marcante falta de hegemonia, de “grande projeto” que forme uma maioria social duradoura. Essa falta de hegemonia não significa uma idêntica indefinição na correlação de forças. É preciso examinar a conturbada conjuntura atual à luz dessas duas questões independentes mas interconectadas: a correlação de forças e a crise orgânica, e como ela pode afetar esses dois aspectos cruciais para pensar (e intervir) na realidade nacional.

A intensa crise de representatividade, a crise de partidos, a tendência a aumento dos poderes sem voto, a abertura a novas formas de pensar e sentir (à esquerda e à direita) características da “crise orgânica” compreendem uma variedade de situações e correlações de força. De junho de 2013 para cá cabe marcar importantes inflexões à direita, o golpe institucional de 2016 e a eleição de um governo de extrema-direita em eleições manipuladas pelo judiciário com apoio militar em 2018.

Um supostamente imparável Bolsonaro de Janeiro de 2019 não parece exatamente o mesmo. Mas, por outro lado, um ano não passa incólume e nem por isso é menos ameaçador, ainda mais por que à diferença das direções de centro-esquerda que atuam passivamente na correlação de forças, ele atua ativamente para modificá-la (à direita). Se sua força já não parece imparável, por outro lado seus tentáculos, usando o aparato do Executivo, espraiam-se mais longe do que antes de se tornar presidente, como se vê no incentivo ao motim cearense, metendo-se no nordeste como não atrevia-se, incentivando um motim como não tinha feito até aqui.

Bolsonaro perdeu parte do seu apoio desde a posse. De maio de 2019 a outubro foi caindo nas pesquisas. Depois parou de cair, recuperou-se parcialmente e está estável hoje em dia. Há um “Bolsonarismo duro” de ao menos 12% da população e um apoio não tão convicto de 25 a 35%. Há uma oposição igualmente estável de 25 a 38%, e um outro terço oscilante, não convicto de lá ou cá.

Bolsonaro não é imparável. Não está ascendente, nem por outro lado está prestes a cair. Tem força e está se utilizando de forças de segurança, e até mesmo de forças potencialmente paraestatais, como se viu no Ceará. Ele atua conscientemente para tentar empurrar a correlação de forças o mais à direita que ele conseguir.

A presença de mais e mais militares em seu governo mostram um apoio objetivo que lhe conferem, ao mesmo tempo que a presença de ministros-generais não significa que a cúpula do Exército tenha se convertido ao bolsonarismo. Ela mantém uma dupla política perante Bolsonaro, aproximação-participação por um lado e distância-contenção por outro.

Bolsonaro apoia-se mais e mais em aparatos policiais, e seus métodos milicianos de ameaça a população (sem significar ainda um controle territorial carioca), apoia-se em cúpulas de igrejas evangélicas que hoje por hoje garantem massas eleitorais, algum nível de mobilização na opinião pública mas que não significam automaticamente um fenômeno duradouro e estável visto que a orientação política, social e econômica dessas cúpulas pró-neoliberais chocam-se, potencialmente, com uma massa de convertidos que numerosos estudos mostram relação com pobreza, desigualdade, migração interna. Por outro lado enfraqueceu-se institucionalmente sofrendo numerosas iniciativas de contenção pelo Congresso, pelo STF, e todas as forças que chamamos de “bonapartismo institucional”. Deste ponto de vista, o Bolsonaro que deu corda ao motim no Ceará, o mesmo Bolsonaro que se deu o luxo de desafiar o Congresso chamando a manifestação do dia 15, está mais enfraquecido institucionalmente do que o mesmo presidente do início do mandato.

Olhando regionalmente no sul e centro-oeste a força de Bolsonaro é maior, no nordeste muito menor. Esse contorno está, até o momento, estável.

Este contorno geral simples e evidente, no entanto é bastante controverso nas análises da esquerda brasileira. Não faltam análise que sobrevalorizam (o fascismo venceu repetem sabe-se lá desde quando) ou subvalorizam o inimigo para justificar políticas de confiança nas instituições políticas ou sindicais. A favor do “mais do mesmo”, de nada além de eleitoralismo, pode-se esperar até 2022 ou contentar-se com um “já caiu” tantas vezes declarado e nunca visualizado.

A correlação de forças de março de 2020 não é a mesma de março de 2019 e isso não significa mesmo assim nenhuma grande facilidade aos trabalhadores. A cúpula do Exército acumula mais poder, ela tem um número recorde de ministros, e é chamada dia a dia a cumprir um papel de força “moderadora” entre o bolsonarismo (e os policiais) e os governadores, entre o bolsonarismo e o Congresso (via General Ramos). As togas do STF ainda detém um elevado poder de “árbitro” na realidade nacional mas crescentemente esse papel é substituído ou ao menos compartilhado com generais de 4 estrelas. Bolsonaro, por sua vez atua conscientemente para empurrar a correlação de forças à direita a cada oportunidade que ele tem. Há, portanto, inequívocos e continuados elementos para continuar marcando a situação como uma situação reacionária.

Por outro lado, na contramão desses elementos à direita, há algumas contra-tendências, viemos da mais longa e forte greve petroleira desde 1995, professores de São Paulo cruzarão os braços na terça-feira (03/03) e assim se juntarão a outras categorias que já estão em greve, como a educação mineira. Há novos sinais, em algumas categorias ao menos, de menor medo. Os petroleiros mantiveram-se em greve mesmo com corte de salário, perseguição judicial. E se não saíram claramente vitoriosos, graças ao desmonte operado pela FUP-CUT (dirigida pelo PT) também não foram esmagados pela dupla Gandra & Bolsonaro. Se essas greves não tiveram ainda força para ser algo mais que contra-tendências, tampouco é possível descartar totalmente esse potencial em meio às crises políticas que o país tem vivido e frente a maiores potenciais de um futuro recessivo no país, que agravaria problemas sociais que já não faltam.

Até onde essa conjuntura, com essas contra-tendências pode ser levada à esquerda? Não está dado determinar um limite de antemão, é preciso ativamente leva-la até onde for possível, para desde uma situação reacionária armar as possibilidades de maiores contra-ataques.

2- A conjuntura e a crise orgânica

Passados 8 anos, passadas tantas conjunturas, golpe, greve geral, prisão de Lula, proscrição eleitoral de Lula roubando o direito da população votar em quem ela quisesse, eleição de Bolsonaro, soltura de Lula... há sinais de maior e não menor crise orgânica, de maior instabilidade.

Caracterizamos que junho de 2013 fez explodir uma etapa de crise orgânica no país. Uma etapa que compreende múltiplas situações, conjunturas, correlações de força. Essa categoria que tomamos emprestada do revolucionário italiano Antônio Gramsci é bastante produtiva para situações onde há um “não mais” de uma velha hegemonia (o lulismo) e um “ainda não” de uma nova e menos ainda há sustentada base material (econômica, social) para uma nova hegemonia. Trata-se de muito mais que uma crise de governo, de uma crise de representação, é uma crise que perpassa e toca elementos de crise no regime e no Estado: ““Fala-se de ‘crise de autoridade’, e isso é precisamente a crise de hegemonia, ou crise do Estado em seu conjunto.”

O contorno militar, e portanto como um dos aspectos importantes de “crise de Estado”, da crise orgânica brasileira, incipiente é certo, esteve poucas vezes posto em questão de 2013 para cá. Apareceu primeiro como uma confusão do comando em como conter as inéditas manifestações naquele ano, apareceu como ameaças ao STF no julgamento do habeas corpus de Lula, como ameaças durante as eleições do ano retrasado, reapareceu nos numerosos debates sobre a quantidade de militares na Esplanada dos Ministérios sob Bolsonaro, e se os rumos do governo poderiam contaminar a percepção popular sobre o Exército e Forças Armadas, e ressurgiu com toda força (mesmo que mais limitada espacialmente) agora em fevereiro.

Em fevereiro vimos Bolsonaro incentivando o motim policial no Ceará, um motim que alcançou substanciais aumentos salariais para que a tropa continuasse feliz e contente em seu cotidiano serviço de defesa da propriedade privada dos meios de produção e sistemático esculacho e repressão de pobres e particularmente negros. Parte de seu incentivo se viu em sua live dizendo que retiraria a Garantia da Lei e da Ordem (o uso das Forças Armadas e da Força de Segurança Nacional), diante dessa ameaça governadores de diversos estados anunciaram que enviariam tropas ao Ceará.

Tanto no motim, como na ameaça de Bolsonaro como na ameaça dos governadores há quebra de hierarquia e um rearranjo (potencial) de um elemento de Estado: quem manda nas polícias, qual o escopo de ação de cada polícia estadual.

Eis um ponto álgido da crise orgânica atual como crise de Estado. Mesmo que essa “crise militar” tenha parado se desenvolver. Na noite do dia 01 terminou o motim no Ceará, mas não está claro ainda como se dará a negociação de anistia dos amotinados, nem fica claro quanto que o Ceará pode precipitar imediatamente novas crises em outros estados. O que já se pode afirmar é que o Ceará não parece ser o último terreno desse conflito envolvendo forças bolsonaristas, a cúpula do Exército, forças do golpismo e outras forças oriundas do regime político de 1988, PT incluso.

Outros traços fundamentais da crise orgânica, como o peso que ganham poderes sem voto, entre eles juízes e militares, segue se desenvolvendo, vale mais uma citação do marxista italiano:

“Quando essa crise acontece a situação se torna delicada e perigosa, porque o campo fica aberto a soluções de força, à atividade de poderes ocultos representadas por homens providenciais ou carismáticos. Como que são criadas essas situações de oposição entre representantes e representados, que do terreno dos partidos (organizações partidárias em sentido estrito, campo eleitoral-parlamentar, jornalístico) se reflete em todo organismo estatal, reforçando a posição relativa do poder da burocracia (civil e militar), da alta finança, da Igreja, e de todos organismos relativamente independentes da flutuação da opinião pública?” (Cadernos 13, § 23)

A conjuntura atual com mais arroubos de homem providencial, tal como na convocação bolsonarista ao ato do dia 15 contra o Congresso, com mais arroubos de poderes sem voto (igrejas, togas, generais, bolsa de valores) parece mostrar não somente como seguimos na crise orgânica mas como ela se incrementa, como ela tem presentes aquelas ameaças (mesmo que ainda só como ameaças) de “soluções de força”.

Esse incrementar da crise orgânica, que envolve divisões entre os de cima, abre espaço, mesmo que somente potencial por enquanto, para a ação dos de baixo. Para que a solução da crise orgânica não seja meramente bonapartista (“de soluções de força”) mas de abertura de uma situação pré-revolucionária é preciso que em conjunturas de maior divisão, como a que vivemos, conjunturas com greves que podem atuar como importantes contra-tendências que esse potencial seja firmemente explorado, expandido. E isso não é um dado automático da realidade. É um potencial que deve se realizar.

3. A batalha pela independência de classe no combate contra Bolsonaro e todos seus parceiros nas reformas

Quando um trabalhador lê O Globo e vê um editorial contra Bolsonaro aparece imediatamente uma oportunidade e um perigo. Que O Globo o critique é evidentemente oportunidade, que o faça dizendo que seu autoritarismo atrapalha as reformas, escancara que o motivo que O Globo ataca o reacionário capitão não é o mesmo da juventude e da classe trabalhadora que vê que o autoritarismo está em função de aumentar a retirada de direitos, de aumentar a subordinação ao imperialismo. O perigo reside justamente aí em não ver os falsos amigos na luta contra um governo reacionário.

A quase totalidade da centro-esquerda brasileira, como o PT e PCdoB, orienta o trabalhador a aplaudir cegamente a formação de uma grande “frente ampla anti-fascista” e que as instituições resolvam a crise. Sintomático desse cenário é que Lula emitiu uma nota crítica as declarações de Bolsonaro e só, não move um dedo para que o dia 18 seja uma contundente ação da classe trabalhadora que não só amedronte Bolsonaro como dê forças para reverter os ataques em curso. E nisso Lula não está um passo à direita ou à esquerda da direção da CUT, alinhada a seu partido. Não há, até o momento, nenhuma construção séria do dia 18/03 como uma contundente jornada de luta, para isso é preciso batalhar para impor aos sindicatos, às centrais sindicais, começando pelas maiores centrais ligadas a partidos opositores como a CUT e CTB, dirigidas pelo PT e PCdoB respectivamente, assembleias em cada local de trabalho e estudo, para organizar um contundente dia 18 de março, como afirmamos nas primeiras linhas desse longo artigo.

Junto da centro-esquerda e sua confiança em nada além das instituições que foram agentes e avalistas de cada golpismo e cada ataque dos últimos anos, embarca a mais conhecida figura pública do PSOL, Marcelo Freixo. Todos eles defendem uma frente que vá dos golpistas do STF, passe pela família Marinho, por FHC, por Huck, tenha o protagonismo do líder da reforma da previdência Rodrigo Maia, e envolva todos sindicatos, diretórios centrais dos estudantes.

O sonho, em tal orientação, seria que a dita “frente ampla” forme uma chapa eleitoral em 2022 e quem sabe até mesmo batalhe por um impeachment aqui e agora. A nota oficial do PSOL chamando os presidentes da Câmara e do Senado a se dirigirem ao STF contra os crimes de Bolsonaro, e sua defesa de um impeachment, mostra o predomínio de tal orientação institucional e confiante nos golpistas, mesmo que em cada declaração existam muitas linhas e frases afirmando como o enfrentamento com Bolsonaro se fará nas ruas, pela mobilização independente e não pelas instituições. A orientação fundamental passa hoje em dia em garantir a frente única operária, ou seja que a CUT e demais centrais movam-se para um contundente dia 18 ou em convencer Maia? Canalizar a justa demanda de “Fora Bolsonaro” para uma votação de impeachment pelo Congresso é um erro. Se a força das ruas e da classe trabalhadora não estiver organizada para impor o “Fora Bolsonaro” pela mobilização, essa consigna vira uma “palavra ao vento” ou, pior, alimenta a que outras forças reacionárias do regime a adotem para tirar Bolsonaro do caminho, mas que pode dar lugar a coisas piores. É um absurdo um programa de “impeahcment” que leva Mourão, representante direto das cada vez mais fortalecidas Forças Armadas, a virar presidente!

Não é qualquer “fora” que ajuda a esquerda e os trabalhadores. Por isso a chave é desenvolver a mobilização independente da classe trabalhadora para, em meio as brechas da conjuntura desenvolver os limites do que é possível alterar na correlação de forças e começar a erguer uma força que dê uma resposta de conjunto à crise do país, abrindo espaço não pra que entre Mourão, mas para uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que coloque em debate cada urgente demanda social, econômica e política do país, na qual os revolucionários estariam em melhores condições de expor a necessidade da classe trabalhadora lutar por um governo operário de ruptura com o imperialismo e o capitalismo.

 
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