www.esquerdadiario.com.br / Veja online / Newsletter
Esquerda Diário
Esquerda Diário
http://issuu.com/vanessa.vlmre/docs/edimpresso_4a500e2d212a56
Twitter Faceboock
[Arquivo] 25 de Dezembro
Rosa Luxemburgo, 1917: “É meu terceiro natal na prisão, porém não é uma tragédia”
Redação

Publicamos aqui fragmentos de uma bela carta que da prisão de Breslau e às vésperas de Natal, a revolucionária internacionalista Rosa Luxemburgo envia a Sophie Ryss, esposa do revolucionário internacionalista Karl Liebknecht*. O amor de Rosa pela vida e natureza, e seu caráter que resiste diante de todas as adversidades preenchem essas páginas escritas no terceiro natal que passa trancada em uma cela.

Ver online

Breslau, véspera de 24 de dezembro de 1917

Sonitska, meu pequeno pássaro, me alegrou de tal forma ter recebido sua carta, que queria respondê-la em seguida, porém tinha tanto o que fazer naquele momento, e precisamente tinha que me concentrar muito para fazê-lo, que não pude me dar esse luxo. No entanto, queria eu esperar de preferência uma oportunidade porque é muito mais bonito poder conversar assim, sem impedimentos entre nós duas, no privado.

(...)

Agora faz um ano que Karl [Liebknecht] está preso em Luckau [1].

Frequentemente me recordo desse mês, e foi exatamente há um ano que você estava comigo em Wronke, e me deu essa linda árvore de natal…

Este ano pedi que me comprassem uma, mas trouxeram uma muito feia, lhe faltavam os chifres - não tem comparação com a do ano passado. Eu não sei como poderei colocar as oito luzezinhas que adquiri.

É meu terceiro natal na cadeia, porém não tome você como uma tragédia. Eu estou tão tranquila e serena como sempre.

Ontem fiquei muito tempo acordada na cama - nestes tempos não pude dormir nunca antes das uma, ainda que às dez devo ir para a cama-, então sonho diferentes coisas na escuridão. E então estava pensando ontem: que curioso é que continuamente vivo em uma embriaguez de alegria - sem motivo algum. Assim, estou encostada por exemplo aqui, na minha cela escura, em um colchão duro como uma rocha, ao meu redor domina o silêncio habitual de um cemitério, sente-se como em um túmulo; da janela o reflexo da lanterna que arde na prisão a noite toda é desenhado no teto. De vez em quando se escuta somente o surdo barulho distante de um trem que vai passando; ou muito perto, embaixo das janelas, o pigarro do guarda, que com suas pesadas botas dá um par de passos lento para mover as pernas adormecidas. A areia range vazia de esperança sob esses passos, e todo o abandono e impossibilidade de encontrar solução à existência ressoa assim na escura noite úmida. Ali eu estou encostada, quieta e só, envolta nesses múltiplos panos negros da escuridão, do aborrecimento, do cativeiro no inverno - e nesse momento bate em meu coração uma felicidade interna indefinível e desconhecida, como se estivesse caminhado baixo os raios de sol brilhante por um campo florido.

E sorrio na escuridão da vida, como se conhecesse algum segredo mágico que pudesse desmentir tudo de mal e triste, e o converter em muita luz e felicidade. E aí busco eu mesma, qual é minha razão para ter tal alegria, não encontro nada e tenho que rir de mim mesma outra vez. Eu creio que o mesmo segredo não é outra coisa mais que a vida mesma; a profunda penumbra da noite é tão bela e suave como o veludo, se souber olhar.

E nesse ranger da areia úmida, baixo os passos lentos e pesados do guarda, canta também uma pequena e linda canção sobre a vida - seja aquele que você sabe ouvir bem. Nestes momentos penso em você e tenho tanta gana de compartilhar esta chave mágica, para que você, sempre e baixo qualquer circunstância, perceba o belo e a felicidade da vida, para que você também viva a embriaguez da vida, e principalmente vá como se caminhe sobre um prado colorido. Não tenho intenção alguma de preenchê-la com ascetismo de alegrias imaginárias. Te concedo todas as alegrias sensoriais reais. Gostaria também de dar-lhe a minha inesgotável serenidade interior, para que possa ficar tranquila a seu respeito, que atravesse a vida com um casaco bordado de estrelas que cuida de tudo o que é pequeno, do trivial, do que te assusta.

Você coletou no parque de Steglitz um lindo buquê de frutas vermelhas e violetas. Para os frutos pretos, deve-se considerar o sabugueiro - cujos frutos caem em cachos grossos e cheios, entre grandes leques de folhas serrilhadas, certamente você já os conhece - ou mais certamente, alfeneiro; Delicados cachos verticais de bagas e folhas verdes compridas e estreitas. Os frutos rosa-púrpura escondidos sob as folhas podem ser nêsperas anãs; Normalmente devem ser vermelhos, mas nesta época do ano, quando já passaram da maturidade e estão estragados, costumam ter uma aparência roxa avermelhada; as folhas são parecidas com as da murta, pequenas, pontiagudas no final, verde-escuro, semelhantes à casca no topo, ásperas no fundo.

(...)

Ah, Sonichka, tenho sentido dores agudas, no pátio, onde faço minhas caminhadas, muitas vezes chegam carros do exército carregados de sacos, ou com camisas e uniformes de soldados velhos, muitas vezes com manchas de sangue ... aqui eles os descarregam e são distribuídos nas celas, aqui são reparados, e novamente embalados e enviados para o exército. Recentemente, uma dessas carruagens veio, puxada em vez de cavalos, por búfalos.

Eu vi animais de perto pela primeira vez. São mais fortes e mais robustos na tez do que o nosso gado, com cabeças achatadas e chifres achatados e curvos, são mais semelhantes aos crânios das nossas ovelhas totalmente negras, com grandes olhos pacíficos. Eles vêm da Romênia, são troféus de guerra ... os soldados que dirigem esses carros dizem que era muito difícil pegar esses animais selvagens e que era ainda mais difícil usá-los para atirar, porque estavam acostumados com a liberdade. Eles foram espancados horrivelmente, até que diz o ditado: vae victis [2] ... Supõe-se que haja cerca de uma centena desses animais só em Breslau; além disso, eles recebem, depois de se acostumarem com as vastas pastagens romenas, pouca e miserável comida.

Eles são usados ​​sem qualquer consideração, para puxar qualquer tipo de carrinho de carga, então eles morrem logo. Há poucos dias, então, entrou uma carroça cheia de caroços, mas com uma carga tão alta que os búfalos não conseguiam passar pela elevação do portão de entrada. O soldado que o acompanhava, um bruto, começou a espancar os animais batendo na lateral larga da haste de seu chicote de tal forma que a chata sentinela chamou sua atenção - se ele não tivesse pena dos animais! - Ninguém tem misericórdia de nós, o povo também - respondeu ele com uma risada malévola e bateu neles com ainda mais força...

Os animais finalmente passaram pela montanha, mas um estava sangrando…

Sonishka, a pele de búfalo é literalmente grossa e dura ... e foi rasgada. Os animais ficaram muito quietos e exaustos.

Ao serem descarregados, um, o que sangrava, olhava em volta com uma expressão de rosto negro e olhos grandes e ternos, como uma criança com os olhos inchados de chorar. Era claramente a expressão de uma criança que foi severamente castigada e não sabe para quê, por que motivo, que não sabe escapar à tortura e à violência brutal ...

Eu estava diante dele, o animal me olhava, as lágrimas vieram aos meus olhos - eram as suas lágrimas, não dá para estremecer de mais dor no sofrimento do irmão mais querido, do que eu no meu desamparo diante daquele sofrimento silencioso. Quão longe, quão inalcançáveis, prados perdidos, livres, suculentos, verdes! Quão diferentes o sol brilhava ali, o vento soprava, quão diferentes eram os belos sons dos pássaros ou o grito melódico dos pastores. E aqui, nesta cidade estranha e sombria, o celeiro sufocante, o feno mofado que dá nojo, misturado com a palha podre, o povo estranho e horrível, e os golpes, o sangue que escorre da ferida recente…

Meu pobre búfalo, meu pobre amado irmão, nós dois estamos aqui, tão impotentes e brutalizados e somos um, na dor, no desamparo, na saudade.

Enquanto isso, os ansiosos prisioneiros cercaram a carroça, descarregaram os pacotes pesados ​​e os carregaram para o prédio; mas o soldado apenas colocou as duas mãos nos bolsos das calças, montou no pátio, riu e assobiou baixinho uma canção popular. E toda a suntuosa guerra passou diante dos meus olhos.

Escreva para mim em breve.

Te abraço, Sonichka:

Sua R

PS: Soniushka, minha querida, mantenha a calma e a alegria apesar de tudo. Esta é a vida, e é assim que você deve enfrentá-la, com coragem, com a cabeça erguida e sorrindo, apesar de seus arrependimentos. Feliz Natal!

“Esta é a vida, e é assim que você deve enfrentá-la, com coragem, com a cabeça erguida e sorrindo, apesar de seus arrependimentos. Feliz Natal!”

(*) Sophie Ryss foi uma socialista e feminista nascida em 1884 na Rússia e educada na Alemanha, onde conheceu Karl Liebknecht em 1912. Ela era membro do Partido Social Democrata Alemão e do Partido Comunista da Alemanha, em 1918, fundado por Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Após o assassinato desses dois líderes revolucionários, Sophi mudou-se para Londres e depois voltou para a Alemanha. Mais tarde, temendo por sua vida a ascensão do Partido Nazista na década de 1930, ele emigrou para Moscou, onde viveu até sua morte em 1964.

[1] Karl Liebknecht foi transferido em 8 de dezembro de 1916 para a prisão de Luckau.

[2] As dores do perdedor.

 
Izquierda Diario
Redes sociais
/ esquerdadiario
@EsquerdaDiario
[email protected]
www.esquerdadiario.com.br / Avisos e notícias em seu e-mail clique aqui