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A cidade submergida: São Paulo, enchentes e o desastre capitalista

Juan Chirioca

A cidade submergida: São Paulo, enchentes e o desastre capitalista

Juan Chirioca

São Paulo em alerta. O verão trouxe mais uma vez fortes e persistentes chuvas que provocaram enchentes com inúmeros focos, desabamentos, desmoronamentos e quedas de arvores. Mortos, feridos e a paralisia dos governos estadual e municipal frente a uma catástrofe que se repete faz mais de um século na capital paulista. As enchentes de fevereiro de 2020 foram particularmente fortes. O segundo maior volume pluviométrico em 24h registrado nesse mês (entre o final do dia 9 e a manhã do dia 10) em 77 anos segundo o Inmet.

Uma catástrofe que pelas proporções pareceria ser simplesmente a expressão das forças da natureza, ou até o furioso castigo de alguma divindade. Muitos responsabilizam o aquecimento global e as mudanças climáticas. Mas o responsável desse desastre que continua se repetindo, e é disso que trataremos nesse artigo, é muito mais próximo, vulgar e terreno.

Quando olhamos para as enchentes, ruas e ruas todas alagadas, arvores no chão, desabamentos e trabalhadores e trabalhadoras mortos, junto a todas as expressões dessa catástrofe parece ser que o desastre aconteceria de qualquer forma. Que não tinha como ser evitado. Mas uma análise mais detalhada das enchentes como um problema e risco de vida na cidade de São Paulo aponta no sentido oposto. Para compreender a dimensão do problema devemos olhar o fenômeno natural das enchentes sob a lente da perspectiva histórica, da ação do homem na natureza e mais especificamente da classe dominante e de um capitalismo cuja dinâmica excede os limites de cada nação e que os acontecimentos e o desenvolvimento das cidades e do capitalismo brasileiro estão estreitamente ligados aos interesses das principais economias imperialistas.

Desde o começo o desenvolvimento das cidades no Brasil foi guiado pelos interesses de exploração colonial portugueses no intuito de se enriquecer rapidamente e com pouco esforço. Uma lógica profundamente extrativista com as principais cidades nos portos para potencializar e levar mais rápido as riquezas extraídas das minas para Europa. Não eram feitas maiores urbanizações no interior do continente a menos que isso fosse estritamente necessário para fortalecer aquela extração. A cidade de São Paulo anteriormente a Vila de São Paulo de Piratininga, foi fundada numa colina entre os rios Anhangabaú e Tamanduateí sendo os primeiros limites naturais que enfrentou o crescimento da cidade no século XIX, superados primeiro com o viaduto do Chá sobre o Anhangabaú para ligar o centro aos novos loteamentos dos ricos das elites cafeeiras que se localizaram no oeste da cidade. O Anhangabaú trazia a água apta para consumo da população e o Tamanduateí permitia o deslocamento pela via fluvial e era uma importante via de conexão com o litoral e interior paulista. Assim, a Vila de São Paulo existiu por muito tempo só por causa deles.

O imperialismo inglês também teve influência no caminho tomado pela urbanização de São Paulo e seu explosivo crescimento a partir da economia cafeeira junto com sua mudança de localização na economia brasileira. A São Paulo Railway Company, empresa de capitais ingleses construiu a primeira ferrovia do estado paulista a Santos-Jundiaí. Procurando a maior economia e redução de custos, o traçado dos trilhos da ferrovia foi feito todo às margens dos rios, nas várzeas, onde o terreno era mais plano e as obras eram mais simples, rápidas e baratas. Assim, as massas de imigrantes assentaram-se em volta da ferrovia da mesma forma como também o fez o primeiro parque industrial de São Paulo. Assim, a população da cidade quase triplicou na segunda metade do século XIX e transformou as várzeas dos rios, os fundo de vale nas principais vias de deslocamento canalizando e retificando as águas e colocando concreto e asfalto onde antes existiam solos permeáveis.

Desde cedo a cidade foi se desenvolvendo negando os rios e córregos como o caso do Rio Tamanduateí cujo projeto de retificação foi finalizado em 1916 para receber as águas do esgoto que já poluíam o rio. Na década de 1920 o projeto do barragem e futura represa Billings para a acumulação de água e geração de energia, afetou profundamente a hidrografia paulista, separando o que antes era um só rio dando origem ao Rio Jurubatuba, Rio Grande e Rio Pinheiros. Este último começa suas obras de retificação e canalização no final da década de 1920, não so ele mas todos os seus afluentes. As obras só serão finalizadas em meados dá década de 1950.
A cidade de São Paulo se expande e ocupa as ladeiras e a topografia mais irregular disponível, fora das várzeas e margens dos rios que eram as áreas susceptíveis a alagamento. As margens dos rios Pinheiros e Tietê continuaram em geral, desocupadas, salvo assentamentos irregulares, até serem objeto de interesse dos capitais ligados à especulação imobiliária. Este processo esteve estreitamente vinculado ao da represa e os direitos de expropriação e loteamento outorgados pela prefeitura à Light sobre todos os terrenos alagáveis o que segundo a pesquisa da professora Odette Seabra foi um dos motivos que orientou o projeto da represa para aumentar a superfície de terreno alagável para ter controle sobre uma parcela maior de terrenos para a especulação imobiliária.

Da mesma forma que no Rio de Janeiro, em São Paulo o discurso higienista também serviu para avançar com os projeto de reestruturação urbana e especulação imobiliária isto sempre atacando também a população mais precária da cidade que por causa da inexistência de politicas habitacionais para esses setores se assentaram nas margens das ferrovias nos fundos de vale. Se aproveitando dos problemas de salubridade existentes na cidade, produto da utilização dos rios para evacuação dos resíduos e do esgoto da população da cidade e argumentando combater o problema do alagamento, as reformas feitas no leito maior dos rios removeram esses assentamentos e atenderam as necessidades dos interesses especulativos das imobiliárias sobre os lotes das várzeas escondendo os córregos por baixo do asfalto, e no lugar de resolver o problema das enchentes, o aprofundou.

Junto com isso, e no mesmo período, o Plano de Avenidas do engenheiro e prefeito Prestes Maia com objetivos claros de fomentar e promover a utilização do automóvel atendendo interesses das grandes empresas da indústria automotora do imperialismo norteamericano que posteriormente se aprofundaria com a instalação dessa mesma indústria no ABC paulista. O Plano de Avenidas aprofundou a contraditória relação da cidade de São Paulo com seus Rios, tornando-os suas artérias principais para o deslocamento humano ao mesmo tempo que negava sua função original, ligada à circulação das águas.

Essa grande obra pública transformou o que era um rio de planície, sinuoso e lento, num rio reto e impermeável para abrir espaço para o carro, os prédios e o lucro capitalista.

O discurso higienista e de saneamento foi muito utilizado nessas reformas pois o financiamento disponível para esse tipo de obras era outorgado com facilidade, reforçando a vinculação da retificação e canalização dos rios e córregos com as obras de abertura viária na cidade de São Paulo. O Plano de Avenidas foi sendo implementado indiscriminadamente atendendo interesses vinculados as automotoras e as imobiliárias sem um estudo profundo do que significava retificar e canalizar os rios e córregos da cidade. E continuou sendo o ‘modus operandi’ da prefeitura em relação à agua na cidade, colocando embaixo da terra mais de 1,5mil quilômetros de rios e córregos no último século.

A dimensão do problema e suas soluções é digno das próprias dimensões que tem alcançado a megalópole da região metropolitana de São Paulo hoje. Para reverter o problema as reformas necessárias na cidade de São Paulo terão de ser estruturais e profundas. A pesar das dificuldades técnicas, já tem sido pensadas soluções de distinto tipo e impactos na cidade e o problema dos alagamentos. Porém o maior problema não é técnico, mas sim político e de classe.

A verdade é que se a cidade de São Paulo tivesse orientado seu crescimento em completa harmonia com a presença e a dinâmica dos rios e córregos o problema das enchentes não seria um problema mas sim uma maravilha na paisagem paulista, vinculada ao lazer e cultura ambos negados pelas elites paulistas ao povo pobre e trabalhador. Porque quando falamos “se a cidade de São Paulo tivesse” não é a cidade como um organismo vivo e consciente, mas sim seus políticos e a classe dirigente esculpindo a cidade conforme as necessidades do momento para satisfazer seus interesses.

As enchentes na capital paulista são um desastre, principalmente para o povo pobre e os trabalhadores, porque os políticos e a classe dirigente escolheram satisfazer a sede de lucro e os seus próprios interesses fortalecendo a especulação imobiliária, e interesses empresariais opostos aos da população, ignorando as águas dos rios da região e condenando os pobres a morar nas baixadas e fundos de vale.

Nas últimas enchentes o custo e o prejuízo que trouxeram superou os R$110 milhões valor similar ao que a Prefeitura de São Paulo afirma que gastou nas obras de canalização e nos piscinões. Estes últimos foram promovidos e construídos como a grande promessa para diminuir o problema do alagamento na cidade, mas mesmo com sua existência o problema persiste.

As enchentes, não são um acidente nem meramente um desastre natural. Da mesma forma que o desastre de Mariana, Brumadinho ou os incêndios na Amazônia, as enchentes são resultado da ação do homem na natureza, na realidade comandados por interesses que nada tem a ver com a melhora nas condições de vida da população.

Assim como as obras que deram origem ao problema foram feitas no intuito de enriquecer setores da burguesia nacional e internacional, as reformas necessárias para começar reverter o problema precisam ir contra os interesses das classes detentoras da riqueza. Obras e reformas dos leitos dos rios (e inclusive do conjunto da cidade) que não acabem por fortalecer os negócios das empreiteiras e imobiliárias. A experiência da história mostra que a reunião de forças necessárias para tamanha tarefa excedem por muito os limites da disputa pela gestão de um município.

Direito à cidade, direito à moradia só pode ser conquistado contra os interesses das empreiteiras e os da especulação imobiliária. Direito a transporte público gratuito e de qualidade só pode ser conseguido combatendo as máfias dos ônibus como os Barata no Rio de Janeiro. Direito ao Lazer, Educação Pública e Saúde de Qualidade para todos, pensar em melhores cidades, mais humanas com melhor qualidade de vida para as pessoas que habitam nelas é um exercício que nos coloca uma perspectiva para além dos limites das próprias cidades e precisa de uma perspectiva de ruptura com um sistema de organização social que estrutura tudo em função do ganho capitalista. Os novos horizontes abertos no Chile com a explosão social, na França com a greve dos trabalhadores dos transportes públicos, expressa o esgotamento das vias institucionais e por dentro do estado capitalista para poder outorgar alguma melhora na vida das pessoas e mostra a força da mobilização de massas e principalmente a da classe trabalhadora única capaz de transformar e revolucionar totalmente a vida nas cidades do mundo.


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Juan Chirioca

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