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A enrascada dos generais e a mão estendida de Lula

Thiago Flamé

A enrascada dos generais e a mão estendida de Lula

Thiago Flamé

É curioso ver acadêmicos e jornalistas especializados em questões militares alegando surpresa com o golpismo da cúpula do exército. Não que fosse previsível a escalada de participação militar no golpe institucional, a prisão de Lula, a eleição de Bolsonaro com o apoio do Alto Comando e o nível de compromisso que generais quatro estrelas, inclusive da ativa, estabeleceriam com Bolsonaro. Esse cenário não estava previsto nem nas projeções do Alto Comando. Porém, é inegável que estava inscrito como possibilidade no próprio pacto de transição, na anistia aos torturadores, na preservação do aparato de repressão da ditadurae no próprio artigo 142 da Constituição, que regulamenta a função das FAB.

Durante mais de uma década o PT governou sem tocar em nenhum aspecto daquele pacto conservador, cedendo espaço para a direita, o agronegócio, as igrejas evangélicas e também as forças armadas e as policias militares, que se voltaram contra ele para romper pela direita um pacto que o PT sempre buscou evitar que fosse questionado pela esquerda. Agora, quando os golpistas se sentem ameaçados pela falta de legitimidade do regime atual e temem grandes revoltas sociais, vendo como terminou a aventura golpista na Bolívia com a prisão de Jeanine Añez, o STF reabilita Lula, sabendo que este seria o primeiro a oferecer o caminho para uma reconciliação, um novo pacto ainda mais a direita que aquele de 1988.

Os generais do capitão: do lulismo ao bolsonarismo

As Forças Armadas se beneficiaram e se fortaleceram durante os governos petistas. Os generais ganharam prestígio e poder dirigindo as forças de ocupação da ONU no Haiti, acumularam experiência na repressão à população civil e testaram um novo modelo de tutela militar. Foram nos governos petistas que se multiplicaram as GLOs. Nas Olimpíadas e na Copa os militares acumularam poder e dinheiro dirigindo diversas funções. O general Heleno, por exemplo, ganhava um salário de cerca de R$ 50 mil do COB, que somava ao seu saldo de reservista. Os jogos mundiais militares de 2011 no Rio de Janeiro foram muito lucrativos para os militares. Pelo menos dois generais que hoje fazem parte do governo Bolsonaro, Heleno e Silva e Luna, foram condenados no TCU por irregularidades em contratos de dezenas de milhões de reais para os jogos. Poderíamos seguir a lista, com o exemplo das denúncias contra o general Mourão, que teria favorecido uma empresa espanhola num contrato de milhões. Apesar das divergências ideológicas, as relações do governo Lula com o Alto Comando eram harmoniosas – pelo menos no que se referem a cargos, contratos e licitações.

O lulismo favoreceu o exército, mas fortaleceu ainda mais a Marinha e a Aeronáutica com alguns dos maiores projetos militares da história do Brasil. O projeto do submarino nuclear junto à França e a compra de caças em que os EUA perderam a concorrência, primeiro para a França e depois para a Suécia. O lulismo não era um governo que enfrentava a dominação estrangeira, mas buscava alargar as alianças geopolíticas, se aproximando das potências europeias, da China e tendo uma política ativa de penetração na África. Era a Marinha quem liderava esse projeto, ligado à discussão da Amazônia Azul, a expansão dos limites marítimos e a uma mudança do centro de gravidade da estratégia de defesa do Cone Sul e da Amazônia, para o Atlântico e o pré-sal.

Diferenças à parte, até junho de 2013, todos comiam do mesmo banquete. Os dólares que fluíam para contas e cuecas de políticos corruptos alimentavam também por outras vias as arcas dos comandos militares, irrigavam as contas das empreiteiras, dos senhores da soja e do gado e faziam a alegria de banqueiros e especuladores na Bolsa. Não foi nenhum juiz, padre, pastor ou general, mas a juventude quem primeiro se rebelou contra essa situação, tomando as ruas aos milhões.

Junho de 2013 havia colocado dois problemas para a burguesia brasileira. O PT, depois de dez anos no poder conciliando e cedendo posições para a direita e o centrão, já se mostrava incapaz de conter o movimento de massas que questionava pela esquerda a conciliação petista. Um conjunto de reivindicações democráticas, sociais e econômicas havia tomado às ruas. Em 2014 o processo que se iniciou na juventude chegou ao movimento operário, com as greves dos garis do RJ e dos rodoviários de Porto Alegre, professores, metroviários. Ao mesmo tempo em que o movimento de massas rompia os anos de passividade do lulismo, o que se colocava para os empresários já era a necessidade de interromper o ciclo de pequenas concessões do lulismo e avançar em profundos ataques econômicos.

A operação Lava Jato, articulada a partir dos gabinetes do departamento de estado e de justiça dos EUA, se aproveitou dessa situação com um duplo objetivo. Por um lado, acabar com a relativa autonomia que setores da burguesia brasileira haviam alcançado, quebrar a força das então chamadas “global players” como JBS e Odebrecht, e, principalmente, avançar sobre o pré-sal e a Petrobrás. Por outro, expropriar a experiência do movimento de massas com o petismo, derrubando ele pela direita, para impedir que fosse superado pela esquerda, abrindo caminho para a implementação de um brutal ajuste econômico. No plano interno essa ofensiva teve como base social fundamental os setores burgueses que se fortaleceram com o boom das commodities, principalmente nos estados produtores de soja e com grandes rebanhos, que não vêm possibilidade de projetar o seu crescente peso econômico numa hegemonia política duradoura por via eleitoral e setores médios, em especial da pequena burguesia rural e das pequenas e médias cidades do interior, que tradicionalmente é onde são recrutados parte importante dos quadros do judiciário e do exército, que se fortaleceram e buscaram uma via de ascensão social.

O Alto Comando do exército viu aí uma possibilidade de fortalecer suas posições. Através da subordinação aos interesses geopolíticos dos EUA viram a oportunidade de recolocar o centro de gravidade da estratégia de defesa na Amazônia, fortalecendo o exército na disputa orçamentária com as outras forças. Em 2015 a estratégia petista foi a de ceder posições para tentar evitar o golpe. Dilma fez tudo o contrário do que havia prometido nas eleições. Acelerou os ajustes econômicos, nomeou Joaquim Levy, homem forte do Bradesco para o ministério da fazenda, negociou a entrega do pré-sal e, numa jogada com menos visibilidade, nomeou Villas Bôas como comandante do exército, furando a fila de antiguidade pela primeira vez desde a criação do ministério da defesa .

Villas Bôas assumiu com o discurso de fortalecer a presença militar na Amazônia, fortalecer o controle de fronteiras, combater o tráfico internacional. Estabeleceu no marco da Otan um acordo de exercício militar conjunto com os EUA para “ajuda humanitária” na Amazônia (criticado inclusive por militares). A estratégia de “aproximações sucessivas” revelada publicamente por Mourão em 2015 implicava, na política que foi sendo levada adiante por Villas Bôas, reforçar as posições do exército, assumindo um maior protagonismo – como se deu já durante o governo Temer. Preservando, no entanto, o exército perante a opinião pública, mantendo o máximo possível o bonapartismo militar apenas como uma força de reserva do bonapartismo do judiciário.

A vitória inesperada de Donald Trump nos EUA impactou nos planos que esses generais estavam traçando. Até o início das eleições presidenciais em 2018, o candidato preferencial das cúpulas militares ainda era o tucano Geraldo Alckmin, ainda que Bolsonaro já contasse com o apoio de generais importantes como Heleno e Mourão. Inclusive o general que comandou o exercício militar na Amazônia, sob as ordens de Villas Bôas, e que depois veio a ser o secretário de segurança do ministro da justiça Sergio Moro, se lançou como candidato ao governo do Ceará pelo PSDB, antes de romper com o partido para apoiar e integrar o governo Bolsonaro.

A dinâmica das lutas de frações no governo Bolsonaro, a necessidade de preservar a autoridade e a unidade do Alto Comando e, não menos importante, a vitória de Trump, empurraram a uma participação muito maior dos generais no governo Bolsonaro do que queria Villas Bôas – não sem divisões internas, como a ruptura de Santos Cruz ainda em 2019. A partir da entrada do general Ramos ainda na ativa na coordenação política do governo e, principalmente, da entrada do general Braga Netto, interventor no Rio de Janeiro e segundo no comando do exército, no ministério da Casa Civil e depois na coordenação do combate à Covid-19, e com a permanência do general Pazuello, ainda na ativa, como ministro da saúde, o Alto Comando assumiu um envolvimento direto no governo Bolsonaro. Assumiram o controle quase absoluto sobre a Amazônia, dando às costas para todo o discurso de defesa da floresta que foi uma marca da propaganda nacionalista do exército depois da ditadura, aproximando muito mais do discurso de “ocupação” da Amazônia que havia primado durante o regime militar. Cloroquina super faturada produzida pelo exército, inúmeras denúncias de gastos milionários com itens como whisky e caixa de som para festas. Salários acima do teto do funcionalismo para os ministros generais. Serviços de lobby prestados por generais e coronéis da reserva para empresas estrangeiras de armas, um negócio milionário e ilegal no Brasil. O salto no papel do exército como empreiteira do governo. Sentindo o gosto de voltar a exercer diretamente o poder, os ministros generais ligaram sua sorte à de Bolsonaro e colocaram o exército numa sinuca.

Os generais ligaram sua sorte a um governo que não controlam totalmente, que aplica uma política de armas que traz contradições para as FAB, que liga quase abertamente às milícias e que sistematicamente, com apoio de alguns generais, se dirige às baixas patentes do exército, o que gera desconforto interno. Se seguem sustentando o governo Bolsonaro podem se afundar com ele e com a sua gestão catastrófica da pandemia, da qual são inteiramente cúmplices e responsáveis diretos. No entanto, abandonar o governo agora levaria a desmoralização completa de um projeto ao qual o Alto Comando do exército se vinculou profundamente e tem fortes interesses não somente coorporativos, mas inclusive pessoais.

Guerra híbrida brasileira e a volta de Lula

Durante os últimos anos ganhou força nos meios progressistas o relato da guerra híbrida para explicar o golpe institucional e o envolvimento militar nele. Esses relatos se apoiam em elaborações como a de que Andrew Korybko, que analisam a estratégia dos EUA para desestabilizar os países do entorno da Rússia através de processos de criação de caos controlado e intervenções indiretas mediante a instrumentalização e financiamento de atores internos, denominada “guerra híbrida”.

A “guerra híbrida” é um conceito que vem se alargando cada vez mais. Como “tipificação ideal” figuram as revoluções coloridas do início do século XXI na Ucrânia e Leste Europeu, em que movimentos anti-corrupção fraturaram os governos de turno, aliados da Rússia. As guerras híbridas tal como são entendidas hoje podem se expandir até guerras não convencionais, isto é, aquelas protagonizadas por atores irregulares. Grupos terroristas, milícias, guerrilha urbana, todos esses seriam considerados atores não convencionais. Um dos seus métodos seria o uso de forças civis não militares e intervenções militares disfarçadas de ações humanitárias. Mas hoje o uso do termo guerra híbrida extrapola a dimensão de combate entre forças regulares e irregulares, e é usada pelos defensores desta perspectiva para analisar processos essencialmente políticos. Assim, as fronteiras entre guerra e paz são apagadas, e a política passa ser a própria guerra.

Especialmente as teses do antropólogo Pierre Leirner do jornalista Romulus Maia do Duplo Expresso, se apoiam nesse conceito de inspiração pós-moderna para explicar o golpe no Brasil. O grande problema dessa visão é que, ainda que seja uma boa denúncia da política externa agressiva e da ingerência dos EUA, anula todas as contradições sociais, a luta de classes e a possibilidade de que o movimento de massas e a classe trabalhadora se constituam como sujeitos políticos independentes. A primavera árabe, junho de 2013, as mobilizações em Hong Kong e todos os processos de massas que atingem inimigos ou adversários dos EUA são vistos pelos teóricos da guerra híbrida imediatamente e exclusivamente como parte de uma guerra híbrida, de uma conspiração. Do outro lado, também os EUA foram quem primeiro utilizou a acusação de guerra híbrida contra a Rússia para justificar sua própria ação no leste europeu e na Ásia. E, no caso do Brasil, o próprio exército vem denunciando envolvimento do PT em uma, vejam só, guerra híbrida, digamos, comuno-bolivariana e, porque não, russo-cubana, contra as instituições nacionais brasileiras, que justificaria a ação do exército como de defesa do estado.

Não é a toa que a imprensa petista é quem tem desenvolvido esse debate e se apropriado desse conceito. O relato da guerra híbrida, ao anular completamente a existência da luta de classes como um fenômeno orgânico, inerente e determinante das contradições econômicas e políticas impostas pelo capitalismo e seus governos, é extremamente funcional a operação política que o PT está levando adiante em dois aspectos. Primeiro, isenta o PT de qualquer responsabilidade pelo golpe. Apaga que foram as políticas do próprio PT e os ajustes de Dilma que provocaram a perda de base social do governo petista e não somente a conspiração de juízes, generais, parlamentares e grande mídia. Apaga que foi o PT que fortaleceu nos seus governos as bases sociais e os sujeitos políticos do golpe. Depois, é funcional ao curso que Lula e o PT estão traçando para vencer as eleições em 2022. Em nome da governabilidade, para não serem vítimas da continuidade dessa guerra híbrida, na qual a revolta popular nunca pode ser uma arma voltada contra os empresários, os generais e seus políticos, mas somente uma massa de manobra para derrubar governos moderadamente progressistas, já preparam a aceitação de toda a obra econômica do golpe, seus acordos com banqueiros, latifundiários e os políticos do centrão, e o perdão e conciliação com os generais golpistas.

As teorias do marxismo cultural, da guerra híbrida e outras, não precisaram ser introduzidas no exército brasileiro desde fora. Sempre, muito antes da concepção das guerras assimétricas, de quarta geração, não convencionais e híbridas, o pensamento militar de um exército que participou de duas guerras ao longo de sua história sempre esteve voltado contra as ameaças internas e a repressão sistemática à classe trabalhadora e ao povo. Mas isso não significa que os generais estão em conspiração permanente, ou o que planejamento para o golpe de 2016 tenha começado lá atrás com as palestras de Olavo de Carvalho ou cada ação do Alto Comando desde 2015 tenham sido parte de um plano pré-concebido para levar Bolsonaro ao poder. Ao contrário, se meteram em um atoleiro, que como dissemos antes, é difícil de sair.

Todas as contradições da posição atual dos militares, o crescente desgaste de Bolsonaro, o medo dos golpistas que agora reabilitam Lula mostram a força que tem o movimento de massas. Somente a possibilidade de a classe trabalhadora se colocar em movimento, o alerta que vem do Paraguai, já provocam uma série de mudanças na correlação de forças. Se a classe trabalhadora tomasse as ruas em aliança com as mulheres, com o movimento negro e todos os movimentos populares a situação mudaria radicalmente. Por isso em cada local de trabalho chamamos os trabalhadores, e as correntes que se reivindicam classistas e combativas, a pressionar a direção dos sindicatos e das centrais para que convoquem mobilizações e greves. Organizados e mobilizados nossa força pode derrubar esse governo, colocar para correr os generais e convocar uma Assembleia Constituinte Livre e Soberana que se apoiando na força da mobilização e das assembleias de base, poderá colocar um fim na obra econômica do golpe e colocar na ordem do dia um processo revolucionário que possa ir à raiz dos problemas.


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Thiago Flamé

São Paulo
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