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Colorismo, bifobia e cancelamento: o conflito entre os oprimidos e o lucro capitalista

Letícia Parks

Colorismo, bifobia e cancelamento: o conflito entre os oprimidos e o lucro capitalista

Letícia Parks

arte: Juan Chirioca

Em poucas semanas de programa, o BBB21 já se tornou o tema mais falado nas redes sociais, feito que se repete quase diariamente. De colorismo à bifobia, dessa vez a Globo ganha mais do que apenas audiência. Em entrevista à Folha de São Paulo há dez anos, Boninho, diretor do programa, afirmou:

Big Brother’ não é cultura, não é um programa que propõe debates. É um jogo cruel, em que o público decide quem sai. Ele dá o poder de o cara que está em casa ir matando pessoas, cortando cabeças. Não é um jogo de quem ganha. Para o cara de casa, é um jogo de quem você elimina. Só no último programa é que é feita a pergunta: ‘Quem merece ganhar?

Todos os dias que se liga a televisão para ver esse reality show, entra em operação uma horrível metáfora do sistema capitalista. A torcida para que se perca, o gosto pela competição por um prêmio milionário (uma pequeníssima parcela do valor investido por patrocinadores) e a celebração de cada conflito são algumas das bases ideológicas que mantêm em funcionamento uma rotina de competição e concorrência entre pessoas, especialmente trabalhadores. Enquanto parece que o vencedor conquistou um grande prêmio, ultrapassando esse sufoco, algumas poucas propagandas em um único programa pagariam o prêmio que exige meses de reclusão. Enquanto indivíduos se digladiam, se expõe, destroem suas carreiras, por um prêmio de um milhão e meio de reais, a verdadeira ganhadora é a Globo, que embolsa milhões de reais em um único dia graças às também milhões de TVs ligadas celebrando esse conflito. No embate entre os oprimidos pelo topo capitalista, quem ganha é o próprio capitalismo.

Mas essa edição ainda é mais do que a habitual e sangrenta concorrência. Como armas de ataque contra oponentes, a Globo decidiu selecionar pessoas que na vida pública nutrem discursos supostamente de combate ao racismo e ao patriarcado, mas curiosamente selecionou apenas as que defendem um tipo de ponto de vista para esse "combate": aquele que se presta a invadir a arena dos direitos individuais para atuar numa regulação da vida privada, como se aí morassem os grandes dramas das massas negras, femininas e LGBTQ+ do mundo.

O golpe de efeito é monstruoso. Enquanto nas massas surge um rechaço de massas ao racismo, junto da leitura de que ele existe na sociedade - o que vai contra a tese da Democracia Racial -, a Globo consegue atuar como um mediador desse conflito entre oprimidos e opressores. O movimento negro, mal representado por Lumena, Karol Conká, Nego Di e Projota, vira alvo do questionamento de massas sobre quais seriam nossas intenções. Queremos dizer quem é negro no Brasil? Queremos humilhar e hostilizar todos os que não são negros, inclusive se apoiando na xenofobia? Não, não é isso que queremos, mas é o que a Globo quer que se pense que queremos.

Enquanto o suposto "movimento negro" pratica discursos de ódio, atentando contra direitos democráticos elementares, como o da autodeclaração negra por exemplo, a Globo se torna o juiz sensato que coloca os pingos nos is. Logo após a conversa entre Nego Di, Lumena e Karol Conká em que os três negavam a identidade negra de Gil, foi Thiago Leifert quem colocou as coisas no lugar, falando por minutos ao vivo em rede nacional em defesa da autodeclaração e do Estatuto da Igualdade Racial. Por muitas cabeças deve passar a ideia que se tenta transmitir: será que é melhor confiar na Globo do que no movimento negro?

Não, não é. De novo, nas palavras de Boninho:

A gente quer sempre provocar o pior neles, nunca o melhor. A gente não quer que todo mundo se abrace e diga que se ama. Isso, para mim, seria o pior. A tendência do jogo é fazer com que eles briguem, que lutem pelo dinheiro. Quando alguém é péssimo para o público, ele é maravilhoso para a gente. O ‘Big Brother’, para minha equipe de seleção, não é um jogo de experiência científica, é só um jogo. Não nos afeta, não nos chama a atenção a hora em que o cara fica acuado ou fica psicologicamente afetado por alguma coisa e pode virar um monstro. Não estamos preocupados com conceitos psicológicos, mas, sim, com os relacionamentos e com a brincadeira que é a proposta

Ou seja, a intenção da emissora é realmente que hajam conflitos, e os odiados da vez são os que permitem que seja a Globo a "protagonista razoável" e respeitosa da luta antirracista, uma das maiores farsas já coletadas em sua história. Não só é a Globo que segue criando as manchetes que convertem trabalhadores e crianças em bandidos sempre que são mortos pela PM, como é um dos atores de toda uma ala do regime político brasileiro que fala em nome dos ajustes e ataques contra os trabalhadores que são sempre pagos mais caro pelas negras e negros. A Globo ajudou a eleger Bolsonaro, chancelou as eleições manipuladas, foi mãe da Intervenção Federal no RJ, é cúmplice da normalização do assassinato de Marielle Franco e de Mestre Moa, patrocinadora da prisão arbitrária de Lula - sem dizer que foi ela também quem aplaudiu cada uma das medidas antioperárias dos governos PT, como a entrada das tropas brasileiras no Haiti, a Reforma da Previdência de 2006, entre outras.

Mas então, fica a pergunta. Se luta negra e militância não é o que Karol Conká e Nego Di fazem ao vivo durante todos os dias, o que é a militância?

O que é militância?

Ativistas negros que negam o direito à autodeclaração, praticam xenofobia e bifobia, usam seu "lugar de fala" para regular a vida privada de seus colegas. É constrangedor para muitos o que acontece hoje no BBB, já que do lado de fora, na vida cotidiana esses discursos estão aterrissados na prática cotidiana de muitos pretensos ativistas antirracistas. Mas de que servem esses discursos?

Não tem nada a ver com militância. A tentativa de restringir o direito à identidade, por exemplo, cumpre apenas o papel de dividir os oprimidos pelo capitalismo, o que tem como conseqüência uma redução falsa da incidência dos que sofrem de racismo. A luta contra as bases capitalistas sobre a qual o racismo se estabelece dá lugar, para essas perspectivas, à decretar como objetivo estratégico a busca por alcançar os topos do capitalismo. Ao diminuir a identidade negra de 53% da população para 6%, pode ser que seja possível caber nessa pequena fila de oportunidades que o capitalismo é capaz de oferecer.

Apenas o convívio pacífico com os topos capitalistas e seus valores é capaz de forjar uma subjetividade que goza da dor alheia, que não vê beleza do beijo gay no programa mais assistido da televisão, que lança regras sobre a vida privada ao invés de atuar pela mais plena liberdade de cada sujeito no mundo.

A militância não é isso. Em meus poucos anos como militante pude testemunhar muitas - MUITAS - experiências avessas a todo esse caldo de ódio que se vê ao vivo. Trabalhadores efetivos que cruzaram seus braços pelo atendimento da reivindicação das trabalhadoras terceirizadas. Mulheres nordestinas falando em alto e bom som que não aceitariam mais a superexploração a que eram submetidas, e ao final, aplaudidas pelos estudantes da universidade mais elitista do país. Eles que falavam mais de uma língua, nunca tinham ouvido a fala do trabalhador, e se emocionaram e apoiaram essa luta com tudo o que podiam. As e os intelectuais orgânicos, esses que são trabalhadores, pesquisadores, que vivem o cotidiano da vida trabalhadora, e escrevem e debatem sem trégua sobre a necessidade da revolução. As e os companheiros que se desafiam todos os dias a viver relações livres, questionando a si mesmo em primeiro lugar sobre sua capacidade de permitir a liberdade do outro. As conversas após o dia de trabalho ou de estudo que nos convencem de que podemos mais, de que temos capacidades ocultas que precisam se revelar, que viajam nos tempos da história da luta de mulheres, da luta negra, da luta LGBTQI+, da luta da classe trabalhadora, para mostrar que pessoas comuns, como eu e você, podemos se organizados superar todos os limites da nossa história e construir uma nova forma de vida.

Contra qualquer leitura de que a militância possa ser outra coisa, contra a tentativa da extrema direita de sequestrar o significado do nosso combate cotidiano, e contra a esperteza da Globo de querer ser ela a juíza da luta antirracista, dizemos com toda força: é preciso abrir caminho para um feminismo e antirracismo revolucionários, marxistas, que mostrem que nosso combate sempre foi e sempre será em defesa da liberdade do conjunto da humanidade. Nesse caminho, a Globo terá que ser lançada do abismo.


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