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Criações de si: a mesa de cozinha de Carrie Mae Weems

Sobre a obra "A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table)" da artista negra norte-americana Carrie Mae Weems.

Gabriela De Laurentiisartista, pesquisadora e professora

quarta-feira 24 de março de 2021 | Edição do dia

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

“Eu uso meu corpo como uma paisagem para explorar as realidades complexas da vida das mulheres” são palavras da artista Carrie Mae Weems. Nascida em 1953, na cidade de Portland nos Estados Unidos, ganha a primeira câmera em 1973 e no ano seguinte começa os estudos em fotografia e design na San Francisco City College.

Em 1978, vivendo em Nova York, trabalha como assistente do fotógrafo Anthony Barboza (1944, Massachusetts). Atenta às políticas no sistema das artes, organiza uma exposição intitulada Women in Photography (1980), na Galeria Cityscape Photo, Pasadena. Dois anos depois, dedica-se aos estudos sobre artistas negros, viajando pelo país para conhecê-los e criando memórias ao gravar as conversas, entre os entrevistados está o fotógrafo P. H. Polk (1898-1984).

Os trabalhos de Weems compõem coleções como as do Metropolitan e MoMA, em Nova York, Museu de Belas Artes de Houston, Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles e Tate Modern em Londres. Uma de suas séries mais aclamadas é A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), composta por vinte fotografias e doze textos, é produzida entre os anos de 1989 e 1990, quando morava na cidade de Northampton, Massachusetts.

Uma das fotografias traz a artista sentada à mesa de cozinha, jogando baralho sozinha. Com um copo pela metade ao seu lado e um cigarro na mão, ela olha concentradamente para o jogo de cartas – elemento que ressurge em outras imagens da série. A figura feminina divertindo-se sozinha é extremamente instigante, fazendo pensar em temas como autoprazer e autonomia.

bell hooks – autora de livros como Teoria Feminista: da margem ao centro (2019) e Olhares Negros: raça e representação (2019) – em conversa com Carrie Mae Weems, diz: que a compreensão feminista da artista sobre a mulheridade negra articula-se a uma sensibilidade feminista complexa e explicitada na série Kitchen Table. As palavras da intelectual reverberam em minhas compreensões sobre a série de Weems, de que Kitchen Table instaura preocupações feministas complexas e afastadas dos achatamentos identitários.

Sentidos em construção ampliados por uma outra fotografia, na qual a artista está sentada de costas para a câmera. Com a cabeça repousada sobre a mesa enquanto puxa os próprios cabelos, de olhos fechados. Vê-se as coxas (apenas uma pequena parte), que indicam as pernas abertas. A cena de autoerotismo reverbera o autoprazer, na imagem trazida a partir da sexualidade.

bell hooks, naquela mesma conversa com Weems, diz que ao olhar para “a série Kitchen Table o que surge imediatamente é uma conexão visceral com uma convergência heterossexual de prazer e perigo, de poder e desejo”. Essa dimensão explicita-se complexamente em uma imagem em que a câmera registra Weems e um rapaz, jogando cartas.

Ela está com um olhar lateral, uma das mãos em frente a boca, sentada em frente a uma fotografia do militante Malcolm X ocupando de maneira expressiva a parede. O rapaz, por sua vez, olha para a artista, com um cigarro entre os dedos e próximo a boca. Copos e garrafa sobre a mesa, uma atmosfera esfumaçada pelo cigarro, tem como efeito a construção de uma imagem onde os jogos da sexualidade se apresentam.

Angela Davis, ativista antirracista e antiprisional, lembra que a sexualidade é um dos campos mais tangíveis em que a emancipação é colocada em prática e por meio do qual se expressa seu significado. Em “I Used To Be Your Sweet Mama. Ideology, Sexuality and Domesticity”(1998), a intelectual sublinha que a autonomia nos assuntos sexuais marca uma importante divisão entre a vida durante a escravidão e a vida depois da emancipação. Dimensão mobilizada no trabalho de Weems em sofisticadas construções de narratividades eróticas e libertárias.

Autonomia e Mesa de Cozinha têm relações múltiplas considerando os debates feministas e antirracistas na situação estadunidense. Barbara Smith – integrante do Combahee River Collective – conta: “em outubro de 1980, Audre Lorde (1934-1992) me disse, durante uma conversa por telefone: ‘nós, realmente, precisamos para fazer algo sobre publicar’”.

Uma imprensa para si – na expressão de Barbara Smith presente em “A Press of Our Own Kitchen Table: Women of Color Press” (1989) – é uma forma de tornar público seus textos, modos de escuta e de fala. Publicar e escrever são preocupações históricas dos feminismos, sendo nas práticas de Smith e Lorde interseccionalizado com as lutas antirracistas. As escritoras criaram, então, Kitchen Table: Women of Color Press:

“nós escolhemos (...) porque a cozinha é o centro da casa, o lugar onde as mulheres, em particular, trabalham e se comunicam. Também queríamos transmitir o fato de que somos uma mesa de cozinha, operação de base, iniciada e mantida viva por mulheres que não pode confiar em heranças ou outros benefícios do privilégio de classe para fazer o trabalho que precisamos fazer”.

Smith explica, ainda, “Kitchen Table começou por causa de nossa necessidade de autonomia, nossa necessidade de determinar independentemente tanto o conteúdo quanto as condições de nosso trabalho e controlar as palavras e imagens que foram produzidas sobre nós”. A prática coletiva, a ação em conjunto é uma dimensão incontornável da fundação da Kitchen Table: Women of Color Press. Entre as fotografias de Carrie Mae Weems esta é uma camada de sentido importante, sendo um conjunto de três imagens, particularmente, instigante. Nelas Weems, ao lado de duas mulheres, aparece em três situações, traduzíveis imagens de alegria, tristeza, reflexão.

A relação de cumplicidade e amizade entre as mulheres explicitam-se nas imagens. Trazem sentidos ampliáveis que perpassam as quatro décadas desde sua produção. São imagens críticas diante da misoginia, constituinte dos discursos sobre o feminino, que insistem em afirmar as mulheres como competidoras, seja por homens em uma versão anterior, seja por Jobs em nosso tempo.

Weems elabora um universo potente de sentidos libertários e libertadores, a partir da mesa de cozinha. Ali, em outras fotografias, apresenta-se com uma criança. Em uma delas, a artista e uma menina olham-se em espelhos enquanto passam batons; em outra a menina observa contrariada Weems que, por sua vez, sugere-se concentrada por um livro apoiado sobre a mesa. Ainda há uma em que as duas seguram lápis em suas mãos, lendo livros e cadernos abertos pela superfície da mesa. Imagino o conhecimento que se partilha, geração a geração, produzindo memórias e histórias feministas e antirracistas.

A Mesa de Cozinha surge como um espaço para exercício de uma autonomia compartilhável, como aquela que desejam as criadoras do projeto Kitchen Table: Women of Color Press, uma forma de escrever a si e inscrever-se nas histórias. As fotografias de Weems rememoram Virginia Woolf, em Um teto todo seu (1929), no qual imagens de “um espaço para si”, “um quarto todo seu” são construídas pela autora como espaço necessário – em dimensões materiais e psíquicas – para elaboração de si e da escrita.

As concepções misóginas que marcam o território artístico insistem serem as mulheres incapazes para arte. O trabalho doméstico não remunerado, o cuidado com os filhos e outros afazeres correlatos à figura da mãe-esposa-dona-de-casa, são alguns dos dificultadores da escrita feminina.

Woolf traz como importante dimensão da escrita a materialidade do local de onde se escreve. O processo de escrita, incluindo suas interrupções, compõem a história contada e são influenciadas pela superfície na qual se escreve, afirma Rhiannon Scharnhorst, em “Composing at the Kitchen Table”(2019).

Pensando nessa materialidade Sara Ahmed – em Queer Phenomenology: Orientations, Objects, Others (2006) sublinha o pedido de Virginia Woolf – em Um teto todo seu – para que imaginemos um cômodo e “sobre a mesa dentro do cômodo, uma folha de papel em branco na qual está escrito em letras grandes ‘As mulheres e a ficção’, nada mais”. Ahmed, ao recordar-se do trecho, enfatiza como Woolf traz a compreensão de que para as mulheres um espaço para escrever é um ato político. A mesa, diz a autora, é explicitada por Woolf como um local (“site”) de onde ela cria seu argumento feminista.

Gloria Anzaldúa pensando posicionalidades distintas das de Woolf – no texto “Falando em línguas, uma carta para mulheres do terceiro mundo” (1981) – diz:

“Esqueça o quarto só para si — escreva na cozinha, tranque-se no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da previdência social, no trabalho ou durante as refeições, entre o dormir e o acordar. Eu escrevo sentada no vaso. Não se demore na máquina de escrever, exceto se você for saudável ou tiver um patrocinador — você pode mesmo nem possuir uma máquina de escrever. Enquanto lava o chão, ou as roupas, escute as palavras ecoando em seu corpo. Quando estiver deprimida, brava, machucada, quando for possuída por compaixão e amor. Quando não tiver outra saída senão escrever.”

As lutas e pensamentos de Anzaldúa, Lorde, Smith, Woolf expandem-se com as fotografias de Weems, instaurando políticas visuais de contestação se pensarmos com bell hooks. Carrie Mae Weems ao falar sobre sua exposição no Museu Guggenheim, em Nova York, reafirma a preocupação coletiva. Traz à fala nomes como Lorna Simpson (1960), Mickalene Thomas(1971) e Lyle Ashton Harris (1965).

Em seguida explica: “é claro que estou emocionada. Sou a primeira mulher Afro-Americana a ter uma individual no Guggenheim. Não quero soar pretenciosa, mas eu deveria mesmo ter uma exposição ali (...). Mas, não estou interessada em minha própria carreira tanto quanto eu estou em mudar um tipo de diplomacia cultural”. Escrever, publicar, fotografar são modos feministas de criar outras possibilidades de existência individual/coletiva, pessoal/política.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

Carrie Mae Weems. A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table), 1990. fonte.

NOTA DA AUTORA:
Flávia França e Beatriz Ayres, agradeço pelas leituras e comentários.


Gabriela De Laurentiis | @gabilaurentiis | trabalha como artista, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, é autora de artigos e do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar (Annablume, 2017), editado em espanhol pela NoLibros (2020). E desde fevereiro (2021) colabora como autora independente com artigos de opinião, divulgação de exposições etc, na sessão de cultura do Esquerda Diário.




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