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POLÊMICA | Emir Sader e o fracasso da centro-esquerda

Emir Sader se mostra nervoso com tudo aquilo que exista à esquerda de seu modo de pensar. Porque, em um momento em que está em curso uma direitização da superestrutura política de todo o subcontinente, um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil e da América Latina (pelo menos na imprensa de centro-esquerda) tem a necessidade de destilar tanto veneno contra os que se propõem a resistir a este processo?

Daniel MatosSão Paulo | @DanielMatos1917

terça-feira 2 de fevereiro de 2016 | 01:00

Quinta-feira tive a gratificante possibilidade de rir durante o café da manhã (é sempre bom começar o dia com uns bons sorrisos) enquanto lia um artigo no Página 12 (em espanhol) onde meu conterrâneo Emir Sader se mostra nervoso com tudo aquilo que exista à esquerda de seu modo de pensar. Porque, em um momento em que está em curso uma direitização da superestrutura política de todo o subcontinente, um dos intelectuais mais conhecidos do Brasil e da América Latina (pelo menos na imprensa de centro-esquerda) tem a necessidade de destilar tanto veneno contra os que se propõem a resistir a este processo?

Ali Emir “demole” a esquerda que se manteve independente dos governos de verniz mais ou menos centro-esquerdista que marcaram a realidade sul-americana na última década: “o principal fracasso da ultra-esquerda foi não ter sabido compreender o caráter da época histórica atual, dos grandes retrocessos a escala internacional. Seguiram tendo seus posicionamentos verbalmente radicalizados, sem se darem conta que o objetivo maior da esquerda hoje é derrotar e construir alternativas concretas ao neoliberalismo, projeto em que avançaram tanto os governos da América do Sul”.

É uma lástima que Emir não tenha aproveitado a visibilidade do principal diário de centro-esquerda na Argentina para recomendar a alternativa concreta ao neoliberalismo que Dilma hoje implementa no Brasil para enfrentar a crise econômica, por exemplo.

Macri aqui na Argentina, igual ao Clarín e muitos analistas, economistas e jornalistas, estão muito preocupados em como acabar com o déficit fiscal e melhorar a rentabilidade dos empresários. Porque Emir não lhes recomenda os cortes que Dilma fez na saúde, na educação, na moradia, nos transportes e nos programas sociais? Ou talvez os tarifaços que aumentaram as contas de luz e água? Porque não recomenda a reforma trabalhista – apoiada pela burocracia sindical petista da CUT – que generalizou as suspensões com redução salarial e subsídios para as patronais na indústria? Não se deveria debater aqui também o aumento da idade de aposentadoria que Dilma atualmente negocia com a CUT? Ou porque não compartilhar as lições do plano de privatizações da Petrobras atualmente em curso, assim como da greve dos petroleiros que se levantou contra o mesmo e que a burocracia sindical do PT conseguiu impedir que adotasse “posicionamentos radicalizados” para vencer?

Tendo em conta a importância que tem na Argentina hoje o debate sobre como resistir aos ajustes que Macri e a patronal se propõem a implementar, Emir poderia como mínimo contar um pouco sobre quais dificuldades teve a burocracia petista para mobilizar o enorme peso sindical que tem e rodear de solidariedade as lutas de resistência que estouraram para que possam vencer, coordenar-se e emergir como um grande movimento nacional que questione a política de Dilma pela esquerda.

Não, Emir preferiu privar os argentinos de algumas das (sic) “extraordinárias transformações sociais que estes governos implementaram em nossas sociedades”. Por algum motivo opina que estas não ajudariam a seus amigos kirchneristas a enfrentar o novo governo de Macri. Curiosamente, lhe parece mais importante criticar uma esquerda que considera “irrelevante”.

Mas suponhamos que Emir não esteja de acordo com a política econômica de Dilma e, apesar de não ver nenhum papel da burocracia sindical petista nos ataques que passaram, está dando uma dura batalha intelectual para convencê-la de algo diferente. Isto faria com que seus argumentos no terreno político merecessem ser escutados:

Sem dizer que os ambientalistas e as ONGs que protestam contra o extrativismo depredatório de Evo na Bolívia ou Correa no Equador são um pouco diferentes dos trotskistas da Frente de Esquerda da Argentina, Emir nos brinda com mais uma de suas críticas estratégicas: “sem participar da disputa hegemônica do governo e sem capacidade de construir forças alternativas – estes setores da esquerda estariam – completamente distanciados da história concreta contemporânea da esquerda realmente existente”.

Sim. Mas para que a crítica possa ensinar teria que se explicar melhor como o PT participou e participa da disputa hegemônica do governo. Teria que se explicar os mecanismos por meio dos quais o PT utilizou a Petrobras e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para ganhar hegemonia sobre os partidos e setores burgueses que construíram a base de seu governo como a força alternativa que realmente existe e faz história contemporânea. Aparentemente, este grau de profissionalismo hegemônico o kirchnerismo não conseguiu construir na Argentina, e talvez abrir esta reflexão com os leitores do Página 12 ajudaria no balanço de porque a centro-esquerda foi derrotada aqui e o que tem que mudar para voltar.

Mas não. Por algum motivo Emir não quis dedicar sua capacidade intelectual para analisar os temas que fazem com que sua “esquerda do século XXI” (sic) ocupe as principais notícias das páginas internacionais e quis dedicar-se a algo que ele mesmo insiste como pequeno e fracassado. Por algum motivo Emir não deu importância a aprofundar esta reflexão e lhe pareceu mais importante criticar os ambientalistas da Bolívia (que ultimamente o vice-presidente García Linera equivocadamente denominou “trotskistas verdes ou trotskistas onguistas”) ou os trotskistas da Frente de Esquerda na Argentina.

Em uma reportagem recente (também em espanhol), o eminente jornalista kirchnerista Horacio Verbitsky voltou a polemizar com a Frente de Esquerda pelo voto em branco no segundo turno, que Emir também critica. Respondendo a polêmica, Christian Castillo dá uma ideia do motivo pelo qual Emir sente tanta raiva:

“No que faz ao atribuir ‘uma parte não menor de responsabilidade’ à FIT na vitória de Macri, Verbitsky nos põe a etiqueta que os kirchneristas vêm utilizando para escapar de suas responsabilidades na vitória de Macri e em ter levado como candidato a presidente um ‘noventista’ e conservador. Não fomos nós quem propusemos à presidência quem o caído em desgraça Florencio Randazzo tinha indicado como ‘candidato dos fundos abutre e do Clarín’, o mesmo que se repetia no 678. Quem deixou o principal estado do país depois de oito anos de ‘gestão’ com os salários estatais e docentes mais baixos da região central, com um milhão e meio de famílias em emergência habitacional, com falta de obras públicas essenciais para fazer frente às inundações, com rédea solta à especulação imobiliária e uma nefasta política ‘de segurança’ nas mãos de Granados e Casal, que o próprio Verbitsky denunciou corretamente. Foi o candidato presidencial da FPV, não os dirigentes da FIT, que anunciaram como futuros ministros ‘estrela’ Granados, Casal e Berni, o repressor de Lear e do bairro Papa Francisco (em conluio, neste último caso, com a Metropolitana macrista). Um Sergio Berni a quem HV passou do apoio à crítica aberta”.

Enquanto o kirchnerismo se escondia atrás da pouco convincente demagogia do direitista Scioli, o candidato presidencial da Frente de Esquerda, Nicolás Del Caño, se postulou como a voz da esquerda que não tem atrelamento com nenhum setor da burguesia e se propõe a encabeçar a resistência aos ajustes que terminariam sendo implementados por qualquer um dos candidatos. Agora, frente aos primeiros ataques de Macri, enquanto o aparato kirchnerista faz uma oposição verbalmente (muito pouco) radical de tuítes e vídeos e suas principais referências dão aval ou silenciam diante de distintos ataques macristas – como o encarceramento de uma líder popular de sua própria frente política por lutar – são os trotskistas da Frente de Esquerda os que puseram o corpo para organizar a verdadeira resistência.

Esta posição conquistada por Nicolás Del Caño foi suficiente para que seja entrevistado pelo jornal O Estado de São Paulo, Folha de São Paulo e a petista Carta Capital. Particularmente a Rede Brasil Atual, uma agencia jornalística da CUT, destacou: “O trotskista Caño obteve uma votação significativa no primeiro turno da eleição, encerrada no mês passado: com 815 mil votos (3,3% do total de votos válidos), ficou em quarto lugar. Para efeito de comparação, em termos percentuais, obteve o dobro do resultado de Luciana Genro no Brasil em 2014, quando a candidata do PSOL conseguiu 1,6%. (...) Segundo o ex-candidato da FIT, sua "corrente irmã" no Brasil é o Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT)”.

Talvez no mais íntimo o que mais incomode Emir não seja o emergir de uma esquerda dos trabalhadores como uma alternativa a seus amigos kirchneristas no país vizinho. Talvez o que verdadeiramente o atormente seja a possibilidade de que um trotskismo forte na Argentina possa ser um "mal exemplo" para que emerja uma corrente de trabalhadores e jovens no Brasil que questione o PT pela esquerda.

ps1: aqui me restringi à discussão com as ideias apresentadas por Emir. No entanto, não posso privar o leitor argentino de saber o que me fez lembrar do alegre café da manhã com o artigo do Página 12: que parte essencial do mecanismo hegemônico do PT é o financiamento estatal dos livros de Emir Sader e outros quantos intelectuais fiéis à causa. Mecanismo este que imagino dever ser não menos comum entre os intelectuais e jornalistas do Página 12, que agora terão que ser mais abnegados.

ps2: Emir Sader se considera um marxista. Mas muito longe daí, a única coisa que mostra seu raciocínio é o notório espírito de auto-preservação burocrático do qual o PT é toda uma imagem: a burocracia acadêmica entrelaçada com a burocracia sindical e a burocracia política do PT. Como diz um ditado argentino “entre bois não há chifradas”. Todo este aparato está posto a serviço de conter a espontaneidade das massas que estourou em junho de 2013 no Brasil, voltou a estourar na greve dos garis do Rio em 2014 e agora volta na luta dos secundaristas contra o fechamento de escolas em São Paulo em 2015. Uma força social que pretenda emergir e enfrentar consequentemente o avanço da direita na região terá que tirar a burocracia petista de cima.

Para aprofundar nos temas abordados nesta nota, ler estes outros artigos recentes do mesmo autor:
Giro a derecha y lucha de clases en Sudamérica
Crisis de la “hegemonía invertida”




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