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França: Chamado pela criação de uma nova organização revolucionária

Este foi o chamado aprovado em uma Conferência Nacional que reuniu mais de 100 delegados eleitos por mais de 300 militantes de diversas regiões da França. Entre eles dirigentes de importantes lutas e mobilizações dos últimos anos no país. Agentes terceirizadas da limpeza ferroviária, ferroviários, metroviários, condutores de ônibus, petroleiros, trabalhadores da indústria aeronáutica, da indústria agroalimentar, da educação, da saúde, estudantes universitários e secundaristas.

domingo 12 de junho de 2022 | Edição do dia

Imagem: Anasse Kazib junto a grevistas da Coordenação de trabalhadores do transporte RATP-SNCF na greve contra a reforma da previdência em 2019-2020

Reproduzimos na íntegra o chamado aprovado na Conferência Nacional:

Crise, guerra e revolta

Vivemos tempos cada vez mais convulsivos. A agressão reacionária da Ucrânia pelo regime de Putin no contexto de um conflito geopolítico latente entre a Rússia e a OTAN, liderado pelos Estados Unidos, marca o retorno da guerra na Europa e, de forma mais geral, um salto nas tensões geopolíticas em escala mundial. O rearmamento da Alemanha é, sem dúvida, a indicação mais saliente de que estamos apenas no início de uma escalada que corre o risco de relembrar os piores momentos do século XX.

Ao mesmo tempo, vemos os desastres ligados à crise ecológica. Secas, mega-incêndios, ondas de calor: todos testemunham as consequências dramáticas de um sistema de produção que destrói o meio ambiente, os seres vivos e ameaça a sobrevivência da humanidade. Da mesma forma, a pandemia de Covid-19 trouxe à luz de forma brutal os efeitos do colapso dos sistemas de saúde e da gestão capitalista da indústria farmacêutica. Ela também evidenciou a irracionalidade de um sistema que permitiu que um punhado de bilionários ficasse US$ 3,78 trilhões mais rico, enquanto a massa de trabalhadoras e trabalhadores que desempenham os papéis mais essenciais ficaram mais pobres.

Hoje, os governos estão mais uma vez se preparando para fazer com que as classes populares paguem a conta de salvar as empresas da crise. Enquanto já sofrem com a inflação galopante que ataca suas condições de vida, esta ofensiva pode rapidamente dar origem a novas explosões sociais. De fato, a crise sanitária freou uma onda crescente de luta de classes que percorreu países tão diferentes quanto Chile, Argélia, França, Hong Kong, Iraque, Sudão, Líbano etc.

Essa onda internacional forjou uma nova geração militante, intervindo no terreno das lutas sociais, mas também do antirracismo, da luta contra o patriarcado ou da defesa do meio ambiente. Assim, nos EUA encontramos muitos e muitos ativistas do movimento Black Lives Matter entre aqueles trabalhadores que estão construindo sindicatos em bastiões do trabalho precário como a Starbucks e a Amazon. Da mesma forma, na França, ativistas dos Coletes Amarelos estão ativos nas greves salariais que florescem em setores como da indústria ou da grande distribuição. Pontes inéditas também foram forjadas entre as lutas nos últimos anos, como a mobilização de ativistas ambientais em apoio aos petroleiros em greve em Grandpuits.

Tirar lições da última onda de lutas

Devemos, portanto, partir dessa rica experiência dos últimos anos, mas também tirar lições dessa primeira onda. A primeira lição é, sem dúvida, que as lutas de maneira dispersa estão condenadas a serem isoladas e derrotadas. Na França, nos últimos anos, assistimos a movimentos sucessivos de quase todos os setores: jovens estudantes universitários e do ensino médio e os grandes bastiões do setor privado em 2016; estudantes e ferroviários em 2018; os trabalhadores e classes populares da França rural e semi-rural com os Coletes Amarelos; transportes, Educação Nacional e vários outros setores contra a reforma da previdência em 2019; a juventude dos bairros populares após o assassinato de George Floyd em 2020, a dos centros urbanos pelo clima, etc. Imagine por um único segundo se todos esses setores se unissem, em torno de um plano de batalha comum!

Para atingir esse objetivo, os trabalhadores devem lutar para retomar o controle de suas organizações, começando pelos sindicatos, contra as direções que buscam por todos os meios conter a luta e o radicalismo. Esta é a segunda lição: a burocracia sindical constituiu sistematicamente um obstáculo à união de nosso campo social e à vitória de nossas lutas. Em 2016, a burocracia sindical deixou os setores mais combativos se esgotarem por mais de 4 meses sem nunca convocar e trabalhar pela generalização da greve. Em 2018, impôs a estratégia de "greves" alternando dias de trabalho e dias de paralisação que desperdiçou a capacidade de bloquear a movimentação dos trabalhadores ferroviários. Em 2019, ela procurou impor uma “trégua de Natal” no momento decisivo da greve contra a reforma da Previdência.

Diante do movimento dos Coletes Amarelos, o qual não controlava, a burocracia sindical adotou uma atitude hostil, denunciando em 6 de dezembro a chamada "violência" dos manifestantes e não da polícia que os mutilava e impôs um cordão sanitário para impedir a convergência com militantes sindicais de base. Os Coletes Amarelos entenderam rapidamente a armadilha de delegar poder a uma burocracia ou a representantes autonomeados, mas eles penaram para encontrar uma estrutura democrática que lhes permitisse resistir em luta a longo prazo, apesar das tentativas de coordenação em torno das "assembleias das assembleias". Isso nos leva a uma terceira lição: a necessidade dos trabalhadores em luta se organizarem por si mesmos e se coordenarem entre diferentes regiões em maior escala possível para decidir democraticamente e permanecerem donos de seu próprio movimento. Foi o que se tentou, na luta contra a reforma previdenciária, em torno da coordenação RATP-SNCF, o que contribuiu para que o movimento continuasse durante e após as comemorações de fim de ano.

A última lição diz respeito à necessidade de um projeto político propositivo, que não se contenta em responder aos ataques, mas que se situe no campo de uma contra-ofensiva dos trabalhadores para impor suas próprias demandas e mudar a sociedade de fundo. Quando perguntamos às figuras dos Coletes Amarelos que gritavam "fora Macron" na rua o que fariam se conseguissem entrar no Eliseu, eles não tinham resposta. Faltava-lhes, entre outras coisas, um projeto político que lhes permitisse ir além da fase da revolta para almejar a revolução. Tomar o poder, acabar com a sociedade capitalista e abrir caminho para uma nova sociedade, livre de todas as formas de exploração e opressão, o comunismo.

Um paradoxo

Deste ponto de vista, estamos diante de um paradoxo. Enquanto acabamos de experimentar uma grande onda de luta de classes e uma nova geração militante radical surgiu, enquanto trabalhadores e jovens gritavam "anticapitalista" e "revolução" nas ruas, a extrema-esquerda praticamente não desempenhou nenhum papel e não se fortaleceu de forma alguma.

Este balanço – cujas responsabilidades remontam a muito antes de 2016 – explica que após a pausa imposta pela pandemia, foi a Unidade Popular de Mélenchon e depois o NUPES (Nova Unidade Popular Ecológica e Social) que canalizou, temporariamente, para o terreno eleitoral e institucional essa onda de lutas que, no entanto, questionou as traições da esquerda política e sindical e buscou respostas radicais à catástrofe capitalista.

Podemos compreender quem votou em Mélenchon para tentar evitar o terrível remake do segundo turno de 2017. No entanto, diante das múltiplas crises que estamos enfrentando, seu projeto puramente institucional constitui um beco sem saída. Toda a experiência recente mostra isso, desde Jospin, de quem Mélenchon foi ministro, até Hollande, passando pelo Syriza na Grécia ou pelo Podemos na Espanha. Esses governos que prometeram mudar o sistema realizaram ataques profundos contra os trabalhadores e as classes populares e permitiram um forte retorno da direita e da extrema-direita.

Alguns nos explicam que “desta vez, será diferente”. Mas esses balanços não são por conta de tais ou tais pessoas ou contextos. Eles revelam o impasse de projetos que buscam operar “diferentemente” instituições esculpidas pela e para a classe dominante. No entanto, o poder das patronais e seu controle sobre a economia lhes dão imensos meios para dobrar aqueles que contradizem seus desejos. Para lidar com isso, devemos nos organizar coletivamente e assumir o enfrentamento até o fim com um sistema que nos leva à catástrofe.

Os limites da extrema-esquerda frente ao retorno do reformismo

Diante do impasse do NUPES e das potencialidades da luta de classes, seria necessário uma extrema-esquerda na ofensiva. No entanto, há 20 anos, a extrema-esquerda perdeu influência em todos os campos e hoje se encontra em uma posição de marginalidade. Não só no campo eleitoral, onde passou de mais de 10% na eleição presidencial de 2002 para menos de 1,5% vinte anos depois, mas também no campo da luta de classes, o que é muito mais grave.

Incapaz de tirar conclusões desse fracasso, alguns procuram atalhos do lado da esquerda institucional. Este é, infelizmente, o caso do NPA (Nouveau Parti Anticapitaliste), como prevíamos antes de sermos expulsos. Após campanhas conjuntas com a LFI (La France Insoumise) em nível regional, esta, de fato, optou por apoiar abertamente o NUPES nas eleições legislativas, liquidando toda independência política. É certo que o NPA não assinou um acordo eleitoral, mas, como assume Philippe Poutou, é principalmente porque o NUPES não queria. Neste contexto, depois de se mostrar aberto a uma aliança com o Partido Socialista, o NPA está pronto para se tornar uma ala crítica de uma frente que visa a gestão leal do capitalismo, em colaboração com a patronal.

Já a Lutte Ouvrière tem o mérito de se afastar desse tipo de aventura. Porém, é marcada há anos pela militância rotineira e abandonou qualquer iniciativa na luta de classes. Ao mesmo tempo, por estarem fechados à realidade do proletariado de hoje, um proletariado preocupado e politizado pelos movimentos feminista, antirracista, ambientalista, entre outros, e cuja vanguarda foi radicalizada pelo movimento dos Coletes Amarelos, levou a Lutte Ouvrière a se desligar da nova geração militante que estava surgindo. Tudo isso torna esta organização perfeitamente inoperante para intervir na atual onda de luta de classes.

Por uma nova organização revolucionária

É com base nestas constatações quanto aos limites da extrema-esquerda que decidimos, após a nossa exclusão do NPA, manter a candidatura de Anasse Kazib nas eleições presidenciais que propusemos inicialmente dentro deste partido. Apesar de não termos conseguido obter as 500 assinaturas de prefeitos requerida pela legislação francesa, esta campanha deu um vislumbre do potencial que pode ter uma extrema-esquerda que assume abertamente seu projeto revolucionário ao mesmo tempo em que consegue se cercar dos atores e atrizes das principais lutas trabalhistas, antirracistas, feministas, LGBTs, ecologistas ou estudantis do último período. A implacabilidade do Estado e da extrema direita que atacaram a nossa candidatura mostra o quanto um projeto como esse pode perturbar seus interesses.

Após as eleições, trata-se agora de cristalizar essas perspectivas no terreno organizativo e militante, para construir uma ferramenta a serviço das próximas batalhas da luta de classes. É principalmente neste terreno que nos forjamos nos últimos anos. Em 2016 e 2017, construindo laços fortes entre a juventude mobilizada e os trabalhadores em greve contra a reforma trabalhista e participando da greve vitoriosa dos trabalhadores da limpeza ferroviária da Onet, terceirizada da SNCF. Em 2018, com a construção da Intergares, para reunir setores de trabalhadores ferroviários que recusavam a greve escalonada contra a reforma ferroviária, e iniciando, juntamente com o Comitê Adama, o Pôle Saint-Lazare para organizar uma convergência com o movimento dos Coletes Amarelos. Ou, em 2019 e 2020, dirigindo a coordenação RATP-SNCF, ou a coordenação de trabalhadores aeronáuticos que lutavam para parar suas fábricas no auge da pandemia, bem como a greve exemplar da refinaria de Grandpuits.

Com a força dessas primeiras experiências, lançamos hoje um chamado à construção de uma nova organização revolucionária, à altura da urgência de acabar com o sistema capitalista e lançar as bases de uma sociedade comunista. Uma organização enraizada na classe trabalhadora, com um projeto e uma estratégia revolucionária assumida, integrando a luta contra todas as formas de opressão. Uma organização internacionalista e anti-imperialista, tendo como centro de gravidade a luta de classes e a auto-organização dos trabalhadores.

Este chamado é dirigido a todos aqueles que compartilham este projeto e em particular aos trabalhadores que participaram das lutas operárias dos últimos anos, às e aos ativistas antirracistas, antifascistas, LGBT, feministas e ambientalistas convencidos da necessidade da revolução, aos jovens que sabem que esta sociedade não tem nada para lhes oferecer. Também é dirigido aos revolucionários que querem tirar as lições do fracasso da extrema-esquerda, sejam eles militantes do NPA e que rejeitam o giro tomado pela direção deste partido, ou da Lutte Ouvrière.

Ao longo dos próximos meses, será iniciado um amplo processo democrático para elaborar os textos fundadores desta nova organização que deverá se constituir em um Congresso no outono. A Escola de Verão do Revolução Permanente, que será realizada entre os dias 24 e 29 de agosto nos Alpes, será um passo importante neste processo, ao qual convidamos todes a participar.

(Este chamado foi aprovado no dia 5 de junho de 2022 em Sarcelles)

Tradução: Lina Hamdan

Original publicado no Révolution Permanente, seção francesa da rede internacional Esquerda Diário.




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