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SEMANÁRIO

Hungria, França e Portugal: a política de Arcary resiste às fronteiras?

Diana Assunção

André Barbieri

Hungria, França e Portugal: a política de Arcary resiste às fronteiras?

Diana Assunção

André Barbieri

Nesse primeiro artigo, debatemos com as reflexões “aflitivas” de Valério Arcary, dirigente da corrente Resistência/PSOL. Fazíamos ali algumas considerações teórico-políticas sobre as palavras daquele autor que, com citações deslocadas de Lênin e Trótski, nos apresenta na maioria das vezes apenas um Kautsky piorado. Apesar das suas “teorizações”, não é segredo que Arcary é cada vez menos convincente na defesa “marxista” da diluição do PSOL na chapa Lula-Alckmin. Vale dizer que, na crise histórica do PSOL, a Resistência compartilha responsabilidades com o MES, e é difícil entrever qual das duas correntes é mais funcional à política oportunista da ala majoritária, de Juliano Medeiros e Guilherme Boulos. O desespero lulista da Resistência só pode ser medido pela exasperação do MES em defender a Federação do PSOL com a Rede, um partido do regime burguês financiado pelo Itaú, que inclui figuras como a golpista Marina Silva, e Heloísa Helena, firmemente contrária ao direito das mulheres ao aborto. Já tendo abandonado a pré-candidatura de Glauber Braga, o MES cada vez mais aceita a posição da majoritária (e da Resistência) de voto em Lula-Alckmin, enquanto seus parlamentares atuam em uma frente permanente com os deputados do PT.

Em nossa crítica sobre as “aflições kautskyanas” de Arcary, buscamos mostrar que sua concepção da “relação de forças” é metafísica, um dado fixo impassível de ser modificado pela luta partidária de programas ou pelas direções. Essa apresentação da “relação de forças” como um limite imutável, que obrigaria a esquerda a se constranger no interior do que é permitido pelo regime político burguês, adequa-se ao objetivo político de apoiar a chapa Lula-Alckmin, e todos os inimigos de classe que se ligarão com Lula para enfrentar a reeleição de Bolsonaro. Trata-se da transformação da busca pela derrota da extrema direita em estratégia, com o objetivo de não “marginalizar-se”.

Arcary se tornou um porta-voz da ideia de que a “marginalidade” da esquerda pela derrota histórica da restauração capitalista desde o final da década de 1980 autoriza experimentos oportunistas como os que defende no Brasil. Esse truque retórico de Arcary é um argumento anti-histórico que serve apenas para furtar olhos desatentos da crise do PSOL e de sua própria corrente. A história dos últimos 35 anos não passou em vão. A crise econômica internacional de 2008, a rachadura nos sistemas bipartidários ocidentais, a pandemia fruto da crise ambiental e a guerra na Ucrânia desenham um panorama prenhe de instabilidades, que, como nunca, põem dificuldades ao capitalismo e exigem que a esquerda se prepare para momentos agudos de choques entre as classes.

Diante disso, Arcary busca adormecer a juventude e os trabalhadores com o canto da “marginalidade” incontornável oriunda da queda do Muro de Berlim, em que o único pecado é ter uma política independente. Pinta um retrato de si mesmo quando lamenta, em seu artigo, a falta de escândalo frente a um Alckmin que apoiará: “é triste, mas entre as massas populares e, até mesmo nos setores, politicamente mais ativos dos trabalhadores e jovens a indicação de Alckmin não despertou um grande mal-estar. Essa constatação somente confirma o quanto recuou a consciência de classe nos últimos anos. As expectativas que prevalecem são muito pequenas. O estado de espírito é que para derrotar, eleitoralmente, Bolsonaro, vale tudo” . Não é o primeiro “sábio” que atribui aos outros a perspectiva oportunista que defende como dogma. A questão chave é que adaptar-se a uma determinada situação objetiva desfavorável é a melhor maneira de contribuir para o seu fortalecimento, um auxílio à marginalização da esquerda.

Por isso, vamos buscar rebater os três argumentos (eficácia da Frente Ampla contra a extrema direita, adaptar-se à conciliação com a direita como forma de evitar a marginalização, e entronizar a lógica do mal menor) usando a experiência recente em três cenários políticos distintos: Hungria, Portugal e França. Marcadas as evidentes especificidades de cada panorama político nacional, o critério do internacionalismo nos permite extrair lições para a orientação política da esquerda brasileira, especialmente quando é notório que a Resistência assumiu o nacional-reformismo como pedra angular de sua política.

Hungria: a “frente amplíssima” que fortaleceu a extrema-direita

Na Hungria, o argumento da eficácia da Frente Ampla contra a extrema direita desse país, no governo há 12 anos, era esgrimida também pelas forças reformistas e social-democratas. O primeiro-ministro ultra-conservador Viktor Orbán buscava a quinta reeleição. Apoiado por setores conservadores e nacionalistas da burguesia húngara, não tinha, entretanto, apoio do conjunto da classe dominante, pressionada por uma linha mais liberal por parte do imperialismo da União Europeia, especialmente sensível à proximidade de Orbán com Putin em meio à guerra na Ucrânia. Assim, Orbán enfrentou uma coligação de seis partidos, uma Frente Ampla encabeçada por Péter Márki-Zay, um conservador cristão, que não difere muito do talhe político de um Alckmin Opus-Dei, o “companheiro” de Lula. Essa Frente Ampla (“Unidos pela Hungria”) com reformistas e neoliberais supostamente aumentaria as chances de derrotar a tentativa de reeleição do amigo de Bolsonaro. Em detalhe, a coalizão de “Frente Ampla” na Hungria incluía o social-democrata MZSP (Partido Socialista Húngaro), a DK (Coligação Democrática), com os burgueses do LMP (Partido Verde da Hungria), o Momentum liberal, e o partido de extrema-direita Jobbik. A capitulação à realpolitik das “Frentes Amplas” não compensa em qualquer lugar do mundo. Apesar da coligação multipartidária, o Fidesz de Orbán ganhou as eleições por uma margem significativa, recebendo 54% dos votos e preservando maioria de 2/3 no Parlamento, enquanto a coligação de oposição “Unidos pela Hungria” recebeu apenas 34% dos votos (resultado 11,5% menor em comparação com o apoio total recebido quando os parceiros da coligação concorreram separadamente em 2018). Com um programa econômico-político completamente adequado aos interesses de um grande setor da burguesia húngara, respaldada pela UE, a “Frente Ampla” ajudou a preservar o aparelho político do Fidesz, assim como seu controle sobre as regiões rurais e urbanas periféricas do país. Nesse país do Leste europeu governado por um “Bolsonaro”, a extrema direita se beneficiou da Frente Ampla com programa burguês.

A matemática eleitoral de Arcary e Resistência pode tentar recorrer a experiências onde frentes amplas derrotaram nas urnas a extrema-direita, mas com um pobre paralelo. No Chile, o verdadeiro propulsor da derrota de Piñera e da extrema direita de Kast nas eleições foi o impacto da Rebelião de massas de 2019 que buscou questionar nas ruas a herança pinochetista; surfando no dorso dessas águas revoltas, a "Frente Ampla" de Boric já assume o governo ajoelhada ao capital financeiro e às forças repressivas (nos EUA, o enorme processo do Black Lives Matter foi decisivo para a derrota de Trump). Temos aqui uma mostra de que a tese sobre a eficácia máxima da Frente Ampla em detrimento de uma política de independência de classe não é nenhuma garantia e, mais do que isso, pode fortalecer a extrema-direita. O que vemos é a busca de alternativas reformistas ou de direita liberal contra um mal maior porém mantendo essa extrema-direita como força social já que não é possível derrotá-la apenas eleitoralmente.

Portugal: os sócios de esquerda do reformismo e o plano de ajustes

Em inúmeras ocasiões, Arcary utiliza a ideia de que a esquerda que não deseja se enfraquecer, ou ficar em uma situação de “isolamento galáctico”, precisa estar com Lula e fazer parte da chapa Lula-Alckmin (mesmo que não cheguem ao grau de diluição da Resistência). Será assim mesmo? O exemplo da esquerda de Portugal é um alerta revelador contra essa suposta “sabedoria”.

Com argumentos semelhantes aos que Arcary manuseia, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) sustentaram, sucessivamente entre 2015-2019 e entre 2019-2021, o social-liberal Partido Socialista (PS) frente ao Partido Social Democrata (PSD) aliado com a democracia cristã. O PS, de um lado, e o PSD, de outro, formam o chamado “extremo centro” (tomando a definição de Tariq Ali) do regime burguês em Portugal, aplicando basicamente a mesma agenda política e econômica. São partidos que fazem turnos no governo – daí o termo “turnismo” para referir-se aos dois – e que administraram ajustes antioperários nos últimos anos. Depois do estouro da crise mundial até 2011, José Sócrates do PS havia subordinado o país aos ajustes da Alemanha e da Troika, renunciando quando o parlamento rechaçou a quarta rodada de austeridade dos “socialistas”. O direitista Pedro Passos Coelho, do PSD, esteve encarregado de seguir os ajustes do PS, entre 2011 e 2015. Diante da raiva social contra a direita, e alegando a intenção de não ficar enfraquecido ou marginalizado politicamente, o Bloco de Esquerda e o PCP assinaram em 2015 a “Geringonça”, dando apoio ao governo PS (apesar de não serem parte de ministérios) e cobrindo pela esquerda os ajustes econômicos do novo primeiro-ministro António Costa. Esse apoio ao PS vinha na esteira da mimetização dos fenômenos neorreformistas do Syriza na Grécia e do Podemos no Estado espanhol (considerados uma “esperança da esquerda mundial” pelo MES, junto com Juliano Medeiros), que rapidamente se entregaram a ajustes neoliberais contra as massas. O destino dos “sócios de esquerda” do PS, depois desse ciclo político, deve servir de espelho ao futuro do PSOL. Tanto o BE quanto o PCP ajudaram a preservar politicamente um governo que voltou a aplicar medidas de austeridade após um intervalo de relativo relaxamento da pressão orçamentária por parte da União Europeia. Em 2019, em seu novo governo também apoiado pela esquerda, Costa aprovou junto ao PSD e à direita uma nova reforma trabalhista (rebaixando o custo das demissões) sobre o legado de Passos Coelho, depois de ter enfrentado um biênio de greves em Portugal decretando a suspensão do direito de greve, apoiado com entusiasmo pela extrema direita do Chega!. Esse “governo de esquerda” aplicando políticas de direita conseguiu desmoralizar setores de massas, e abrir caminho à extrema direita. As eleições legislativas de janeiro de 2021 foram uma catástrofe para os “sócios de esquerda” dos reformistas: Antonio Costa conseguiu maioria absoluta no Parlamento, aumentando seu caudal eleitoral de 36% a quase 42%, enquanto o BE caiu de 19 para 5 deputados, e o PCP caiu de 12 para 6 deputados. Esse naufrágio da esquerda portuguesa que alimentou o social-liberal PS foi acompanhado do crescimento da extrema direita: o Chega! passou de 4% a 7%, conquistando 12 bancadas parlamentares, superando as forças combinadas do BE e do PCP.

Independente do discurso que se faça, a desconexão permanente nas “teorizações” de Arcary entre tática e estratégia conduz necessariamente a uma renúncia inadmissível da independência de classes. Nenhuma “tática” de apoio à formação de governo pelo Partido Socialista português pode ser “independentizada” de uma estratégia política que nega a construção de uma política anticapitalista e socialista. Mais que isso, a desmoralização na vanguarda colabora para o enfraquecimento e isolamento da mesma esquerda que julgou viável “evitar o isolamento” através da adaptação a um programa de conciliação de classes. As diferenças entre o panorama político brasileiro e o português não diminuem, senão aumentam, a importância das lições da débâcle do BE e do PCP, já que aqui existe uma corrente de extrema direita militante já instalada, e não em grau incipiente como em Portugal (ou no Estado espanhol, com o Vox), que será animada pelo programa neoliberal de administração da agenda econômica do golpe. A convicta adaptação e diluição do PSOL no programa de conciliação da chapa Lula-Alckmin (nem falar de sua Federação com um partido burguês financiado pelo Itaú como a Rede da golpista Marina Silva) é o caminho mais rápido para a irrelevância política. Arcary não condena a política oportunista da esquerda portuguesa frente ao PS; pelo contrário, insinua simpatia a ela. Não admira: como sabemos, para o teórico da Resistência “os princípios são poucos”.

França: nem Len Pen, nem Macron

O cenário político europeu oferece outro quadro importante para a reflexão da esquerda brasileira, que está em curso neste momento enquanto fechamos este artigo. Na França, a polarização social leva ao segundo turno presidencial uma peleja que repete a disputa de 2017 entre a direita e a extrema direita: Emmanuel Macron (28% dos votos) e Marine Le Pen (23%). Ao contrário, entretanto, de uma visão unilateral sobre um “giro à direita” na consciência política de massas, os resultados de Jean-Luc Mélenchon (22%), político reformista que lidera o La France Insoumise (LFI), representam de maneira distorcida uma importante camada de jovens e trabalhadores que lutaram nos últimos anos contra os ataques de Macron. Correntes do PSOL como a Resistência, e ainda mais o MES, flertam com o mélenchonismo, que de qualquer forma adota um programa soberanista-nacionalista de “esquerda” que busca reformar o regime burguês na França e “renovar” a União Europeia imperialista. Arcary culpa a “esquerda” (referindo-se curiosamente ao inominável PCF) de não ter apoiado abertamente o programa reformista de Mélenchon no primeiro turno “a fim de tirar Le Pen” (o objetivo é o único que interessa Arcary: defender Lula-Alckmin para evitar o “cenário francês”). A ala majoritária do NPA sonha em implementar essa mesma política não fosse a crise histórica por sua acelerada diluição justamente no programa de conciliação de Mélenchon.

A lógica, presente nas admoestações de Arcary sobre o Brasil, no caso francês é: o mal menor pode evitar uma catástrofe maior. Nesse caso, a ordem seria “nenhum voto em Le Pen”, deixando aberta a possibilidade de Macron (como escreve Ugo Palheta, diretor da revista Contretemps e membro do NPA, pedindo para “eliminar o perigo imediato e [lidar] com o dia seguinte à eleição de Macron”). Entretanto, a extrema direita na figura não apenas de Le Pen, mas também do racista e xenófobo Éric Zemmour, se fortaleceu com Macron. Da reforma trabalhista à reforma do seguro-desemprego, da abolição do imposto sobre a riqueza à tentativa da reforma da previdência (abortada em função das greves dos operários transportistas em 2019), da repressão à juventude às mutilações dos Coletes Amarelos pela polícia, o prontuário de Macron é de cinco anos de guerra social. O resultado dessa guerra social autoritária: a extrema-direita nunca foi tão forte, passando de 26% para 32% dos votos combinados no 1º turno, entre 2017 e 2022. Assim, vemos que o mal menor fortalece a direitização da política. Com maior ou menor coincidência, a política do mal menor desenvolvida pelo NPA, sobre a base de contextos distintos, é replicada no Brasil pelo PSOL (e por Arcary) no caso da chapa Lula-Alckmin. “Enfrentar a extrema direita com qualquer um”, com políticos burgueses ou em aliança com eles. O NPA, que no primeiro turno das presidenciais teve uma política mais à esquerda que o PSOL, provavelmente manterá a posição de 2017 no segundo turno (“não a Le Pen”, sem dizer nada sobre Macron), e negocia uma posição subordinada numa frente comum com Mélenchon nas eleições legislativas, um oportunismo compartilhado com aplauso pela Resistência para que o líder do LFI “saia como primeiro-ministro para fazer oposição ao presidente”. Uma visão completamente institucional, por fora da luta de classes, que também tem seu ponto de contato com a fórmula reformista de Arcary: sendo vítimas da “marginalização fruto da restauração capitalista” de 35 anos atrás, teríamos de curvar-nos à institucionalidade burguesa, já que “só em situações revolucionárias as ideias anticapitalistas podem conquistar maioria” utilizando desta definição para levar a passividade das direções em momentos que não são situações revolucionárias. O caso francês, em que o quinquenato de Macron fortaleceu a extrema direita, mostra a sagacidade da afirmação gramsciana de que “um mal menor é sempre menor que um mal subsequente, possivelmente maior; todo mal resulta menor em comparação com outro que se anuncia maior, e assim até o infinito”, concluindo que essa é a forma que assume o processo de “adaptação a um movimento historicamente regressivo”.

Ao contrário dessa adaptação sucessiva ao pior, os companheiros do Révolution Permanente, organização irmã do MRT na França, são porta-vozes do rechaço a Macron e Le Pen, recusando a chantagem do “voto útil contra a extrema direita” e buscando unificar o movimento operário e de massas na luta de classes contra qualquer alternativa vencedora nas eleições. Assim se postula também a juventude parisiense, que ocupou a Sorbonne em defesa dos imigrantes ucranianos e levantando a consigna #NemLePenNemMacron (ou “nem peste nem cólera”), movimento que passou a coordenar manifestações de milhares contra a direita e a extrema direita – e do qual se afastariam Resistência e o MES, caso tivessem qualquer audácia em ter um grupo na França. Nas palavras do Révolution Permanente, que com a enorme campanha militante de Anasse Kazib instalou na vanguarda o espaço para um programa revolucionário de renovação da extrema esquerda: “Chamamos a combater Le Pen sem dar um único voto a Macron através da única política que torna possível combater a extrema direita e recusar qualquer apoio político a Macron: a defesa da abstenção ativa, de um ‘nem Le Pen nem Macron’ que ande de mãos dadas com a construção, desde já, de uma resistência unitária contra o próximo governo” . O movimento real da juventude francesa deveria servir de alerta aos veneradores passivos da “relação de forças” em busca do mal menor lulista, como promove Arcary.

O mal menor como estratégia

Essas experiências ajudam a jogar luz sobre o caso brasileiro se buscamos confrontar, como dizíamos, três argumentos centrais utilizados pela Resistência. O primeiro deles é a suposta eficácia da Frente Ampla contra a extrema direita e sua necessidade vital diante de uma correlação de forças “imutável”, da qual as direções são sempre vítimas e nunca agentes conscientes em impedir ou permitir o desenvolvimento favorável dessa relação de forças. O caso húngaro é uma categórica mostra de que a política de Frente Ampla pode facilmente fortalecer o “mal maior” da extrema-direita, dando-lhe um respiro internacional. Qual análise faz o Resistência sobre a Hungria? Deveria ter “ampliado” ainda mais esta frente para derrotar a extrema-direita? Ou os argumentos marxistas não sobrevivem a nenhuma fronteira? Vê-se que o Resistência e Arcary estão sempre nos limites estreitos dos regimes políticos, porque a discussão, para eles, nunca está no terreno do sujeito da classe trabalhadora, e sim na escolha tática de qual seria a melhor opção eleitoral e institucional para evitar um mal maior, e assim se abre mão de uma estratégia revolucionária. Entretanto, Arcary o faz com ares de “grande estrategista”.

Neste mesmo sentido, a busca de evitar o mal maior do “neofascismo” traz qual seria o mal maior da esquerda: sua marginalização. Nada seria pior do que a marginalização, concebida a-historicamente desde 1989 como um salvo conduto para um “eterno retorno” ao oportunismo. Arcary evoca aqui mais uma vez o espírito de Kautsky. Entretanto, não se trata da batalha leninista correta por construir um partido de vanguarda capaz de romper a marginalização e dirigir as massas. Isso significaria conquistar as massas mediante um programa revolucionário, e não se adaptando à atual consciência das massas. Arcary quer sempre pular a necessária batalha para construir alas revolucionárias, seja no movimento operário, seja na juventude, em nome de “não ser marginal”. Para não ser marginal seria uma obrigação histórica (quase moral) estar do “lado certo da trincheira”, que neste caso não é a história que define, e sim Arcary. E agora para Arcary estar do lado certo da história seria estar com Alckmin e, apesar do voto contrário, aceitando a Rede Sustentabilidade.

E assim, continua-se a ser marginal graças à “maldição eterna” de 1989… "Os princípios são poucos" para a Resistência, que mesmo assim é uma corrente que não escapa à marginalidade. Ao contrário dos suspiros esperançosos, a Resistência simplesmente navega no dorso da onda petista, o que, observada a partir de suas ilusões, dá a aparência de “estarem com as massas”. A realidade é que essa corrente atua no espaço político emprestado do PT. Ao teorizar sobre a necessidade de acompanhar todos os reformismos para não se isolar, o que a Resistência vive é um processo de progressiva auto-liquidação, não uma saída da marginalidade.

Estes dois primeiros argumentos da Resistência são parte de construir uma estratégia do mal menor. Como apontamos antes, Gramsci dizia que “um mal menor é sempre menor que um mal subsequente, possivelmente maior; todo mal resulta menor em comparação com outro que se anuncia maior, e assim até o infinito”, concluindo que essa é a forma que assume o processo de “adaptação a um movimento historicamente regressivo”. O que significa isso na realidade brasileira? Que o “mal menor” nos governos do PT era a defesa da governabilidade. Todo e qualquer passo “capitulador” de fortalecimento do agronegócio, da bancada evangélica, das forças armadas e do judiciário seriam passos táticos no sentido de frases como “sem isso não se governa” ou “a realidade é concreta”. Isso serve para apontar um sentido de que na teoria tudo é “muito lindo”, porém na prática é preciso fazer “acordos” para governar. Depois, quando começaram os ataques da direita, qualquer crítica ao PT seria o “fazer o jogo da direita”: o forte levante de juventude nas jornadas de junho de 2013 foi demonizado pela intelectualidade petista na figura de Marilena Chauí, chamando as "toupeiras", no caso, a juventude, a voltar para debaixo da terra. Quando se começou a articular o golpe institucional se insistia em ter apenas duas posições como se não fosse possível ser contra o golpe institucional de forma independente do PT. Parte das correntes que se fundiram na Resistência neste momento chave da política nacional estavam por fora da realidade debatendo internamente a posição dentro do PSTU, que se adaptou às alas do golpismo naquele momento com a consigna “Fora Todos”, que flertava com a consigna central da direita que era “Fora Dilma”. Depois de consumado o golpe institucional romperam com o PSTU em evento festivo com a consigna “é preciso arrancar alegria ao futuro”. Mas uma organização revolucionária não vive de slogans. E rapidamente as frágeis considerações críticas à política do PSTU significaram um giro desta corrente para o colo da política petista, ainda que dentro do PSOL. Essa é a Resistência.

Com o país dominado pela direita e fortalecendo a extrema-direita, se cobrou o preço de uma posição que não era independente do PT apesar de rechaçar o golpe institucional. A Resistência cumpre, portanto, a lamentável posição de cobrir pela esquerda a estratégia do PT de “mal-menorismo”, de transformar em objetivo final a derrota da extrema-direita, seja com quem for, mantendo tal qual as bases atuais da sociedade, administrando o capitalismo ao lado da direita e batalhando pra aniquilar a possibilidade do surgimento de uma alternativa independente. Por isso, mais uma vez é necessário recorrer à língua do internacionalismo revolucionário tomando exemplos da atualidade, idioma tão pouco falado pela Resistência, que nunca se deu o desafio de construir seriamente nada a nível internacional, motivo pelo qual qualquer opinião episódica dessa corrente sobre os eventos mundiais se circunscreve à justificação de uma política nacional-reformista.

Haverá resistência com Lula-Alckmin?

O marxismo não trabalha com futurologia, nem com provérbios populares, porém é possível afirmar que ao lado de Lula e Alckmin não haverá nenhum tipo de resistência da nossa classe, já que num eventual governo PT-PSB já está anunciado que reformas, privatizações e outros ataques aos trabalhadores não serão revertidos para além de “palavras ao vento”. O discurso demagógico de Alckmin aos gritos por Lula nos faz recordar os gritos de professores diante da repressão brutal pela polícia de Alckmin, ou das famílias de Pinheirinho. O discurso de Lula anunciando que Alckmin será o mediador de negociações com todo o empresariado que nos arranca o suor e o sangue nos faz lembrar também de todos os ajustes que já o governo Dilma implementava, ainda insuficientes para a burguesia naquele momento que financiou um golpe institucional para nos atacar ainda mais.

É por isso que a política de Arcary e da Resistência é hoje apenas um apêndice da política petista. E não seria demais dizer que a Resistência, por suas posições, poderia estar tranquilamente dentro do PT “com críticas”. Fará sentido se, depois de uma eventual vitória de Lula-Alckmin, novas teorias aparecerem para justificar a participação do PSOL no governo ou a diluição do PSOL dentro do próprio PT.


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Diana Assunção

São Paulo | @dianaassuncaoED

André Barbieri

São Paulo | @AcierAndy
Cientista político, doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), é editor do Esquerda Diário e do Ideias de Esquerda, autor de estudos sobre China e política internacional.
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