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Itinerário técnico e profissional na reforma do ensino médio paulista: dualidade e dualidade da dualidade

Mauro Sala

Evaldo Piolli

Itinerário técnico e profissional na reforma do ensino médio paulista: dualidade e dualidade da dualidade

Mauro Sala

Evaldo Piolli

São Paulo tornou-se o primeiro estado a regulamentar a implementação da reforma do ensino médio em seu sistema de ensino, buscando adequar seu currículo à divisão entre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o itinerários formativos. Uma reforma que tem na formação aligeirada, na educação à distância, na privatização, no estreitamento e profissionalização do currículo seus elementos estruturantes.

No dia 28 de julho de 2020, foi aprovada, no Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE/SP), a proposta do governo paulista que "fixa normas relativas ao Currículo Paulista do Ensino Médio de acordo com a Lei 13.415/2017 para a rede estadual, rede privada e redes municipais que possuem instituições vinculadas ao Sistema de Ensino do Estado de São Paulo”, ou seja, que regulamenta a implementação da reforma do ensino médio na educação paulista.

Com essa deliberação, São Paulo tornou-se o primeiro estado a regulamentar a implementação da reforma do ensino médio em seu sistema de ensino, buscando adequar seu currículo à divisão entre a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o itinerários formativos.

O governo paulista buscou ir além dos cinco itinerários formativos explicitados na Lei 13.415/2017, apresentando outras configurações possíveis para o sistema de ensino paulista, sobretudo pela articulação dos itinerários que se referem às áreas de conhecimento da Base Nacional Comum Curricular. O central da reforma do ensino médio não são os itinerário formativos coincidentes com as áreas de conhecimento da BNCC, mas a separação entre essas áreas e a formação profissionalizante. Isso posto, nessa pequena nota não iremos tratar das possibilidades de articulação entre os diversos itinerários que reproduzem aquelas áreas do conhecimento, mas nos debruçaremos na configuração do itinerário técnico e profissional, bem como com sua relação com a formação geral referida na BNCC.

Essa reforma do ensino médio explicita ainda mais o velho esquema da dualidade escolar, separando a preparação para o prosseguimento dos estudos da formação para o trabalho. Com a normatização da reforma para o sistema de ensino paulista, essa dualidade fica ainda mais clara.

Como podemos ler no texto aprovado no Conselho Estadual de Educação paulista:

“Art. 8º Os itinerários formativos correspondem aos arranjos curriculares ofertados pelas instituições para que os estudantes possam aprofundar seus conhecimentos e se preparar para o prosseguimento de estudos ou para o mundo do trabalho”.

Esse “ou" não é mero acaso ou desatenção da Secretaria e do Conselho Estadual de Educação. Esse “ou" entre a preparação para o prosseguimento dos estudos e a preparação para o mundo do trabalho expressa a própria intencionalidade da proposta. Esse “ou” expressa que o governo paulista e o Conselho Estadual de Educação concebem a escola que forma para o trabalho como sendo separada da escola que forma para o aprofundamento dos conhecimentos e prosseguimento dos estudos. Trata-se da reafirmação explícita da dualidade estrutural da educação capitalista.

De qualquer modo, não precisaria desse “ou” para termos claro que a reforma do ensino médio acirra ainda mais a dualidade escolar e a separação entre uma formação “para o prosseguimento dos estudos” e outra “para o mundo do trabalho”.

Quadro 1 - Áreas de conhecimento da formação geral básica e os itinerários formativos, segundo minuta aprovada no CEE/SP


Fonte: minuta aprovada no CEE/SP

Assim, com exceção do itinerário técnico e profissional, os outros quatro itinerários formativos coincidem com as áreas de conhecimento da Base Nacional Comum Curricular. O próprio relatório do CEE/SP coloca explicitamente essa relação:

“A estrutura do Ensino Médio compõe-se de uma Base Nacional Comum Curricular (formação geral, estruturada em quatro áreas de conhecimento (Linguagens e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas) e de Itinerários Formativos, com foco nas mesmas quatro áreas de conhecimento da BNCC e, ainda, um itinerário com foco na formação técnica e profissional” (Parecer CEE/SP, p. 33).

O texto da LDBEN reformado pela Lei 13.415/2017, determina, no artigo 35A, que:

“§ 5º A carga horária destinada ao cumprimento da Base Nacional Comum Curricular não poderá ser superior a mil e oitocentas horas do total da carga horária do ensino médio, de acordo com a definição dos sistemas de ensino. (Incluído pela Lei nº 13.415, de 2017)" (LEI 9.394/1996).

Já a proposta paulista aprovada no CEE/SP determina que:

“Art. 7º. A formação geral básica deve ter carga horária total mínima de 1.800 (mil e oitocentas) horas de um total de no mínimo 3.000 horas, podendo ser contemplada em todos ou em parte dos anos do curso do ensino médio, segundo critérios da Proposta Pedagógica das instituições escolares, com exceção dos estudos de língua portuguesa e da matemática que devem ser incluídos em todos os anos do ensino médio”.

Essa proposta de não limitar a carga horária da BNCC às 1.800 horas instituídas na lei da reforma do ensino médio responde antes à estratificação da rede paulista, como já apontamos num artigo sobre "O Novotec e a implementação da Reforma do Ensino Médio na rede estadual paulista” (PIOLLI & SALA, 2019). Embora pareça positiva a deliberação de não limitar a 1.800 horas a carga horária referente à BNCC, quando o ensino médio tiver mais que 3.000 horas, devemos ter claro que o aumento da formação geral será reservado apenas para o grupo de estudantes que frequentam as escolas de tempo integral da rede paulista que,

“buscarão se manter como uma escola pública diferenciada, buscando manter de pé a ideologia da “função integradora da educação”. Seu processo excludente, seja pelas exigências burocráticas, seja pelo simples fato de ser em tempo integral, fará dessas escolas pequenos nichos de qualidade em uma rede cada vez mais sucateada, aumentando a desigualdade no interior da rede estadual. Ela servirá antes como elemento de propaganda do governo do que de melhoria geral da educação” (PIOLLI & SALA, 2019, p. 195).

Para o conjunto da rede estadual e, notadamente para as escolas que seguirão o itinerário técnico e profissional, o limite de 1.800 horas reservadas para a BNCC tende a se impor. É o próprio governo paulista que apresenta seu novo currículo assim:

“O currículo do ensino médio paulista está estruturado em 3.150 horas, distribuídas em um período de três anos. Do montante total da carga horária, 1.800 horas são destinadas à formação básica e o restante, 1.350 horas, é referente aos itinerários formativos. Estes itinerários terão mais do que a carga mínima prevista na legislação”.

Segundo a LDBEN reformada pela Lei 13.415/2017, o processo seletivo para os cursos superiores "considerará as competências e as habilidades definidas na Base Nacional Comum Curricular” (Art. 44, § 3). Desse modo, vemos claramente que o itinerário de formação técnica e profissional tende a dificultar o ingresso dos seus estudantes na educação superior, já que esses estudantes terão 1.800 horas de formação nas áreas de conhecimentos que serão exigidos nos processos seletivos para a educação superior, enquanto os estudantes que seguirem os outros itinerários terão a carga horária de, ao menos, 3.000 horas voltadas para essa formação, que será a carga horária mínima a partir de 2022.

A questão da reprodução da dualidade entre uma formação para o prosseguimento dos estudos e a formação para o trabalho é novamente explicitada pelo próprio governo de São Paulo. Conforme propagandeou o governo em seu site:

“na carga horária referente aos itinerários formativos, o estudante precisa escolher uma ou duas áreas de conhecimento da formação geral para aprofundar seus estudos, ou ainda, a formação técnica e profissional para se especializar”.

Desse modo, fica claro como a dualidade entre uma formação geral para o prosseguimento dos estudos e outra voltada para a imediata inserção no trabalho (diminuindo e se opondo à possibilidade de prosseguimento nos estudos) se acirra com a reforma. A limitação da formação geral para 1.800 horas para os estudantes que seguirem o itinerário técnico e profissional significará uma redução do tempo total destinado à essa formação, que como vimos, é critério de seleção para a educação superior.

Até a aprovação da reforma do ensino médio, a formação geral constituía a totalidade do ensino médio regular, que, segundo a LDBEN, deveria ter 800 horas anuais divididas em, no mínimo. Ou seja, a limitação da formação geral proposta pela reforma significa uma redução de 2.400 horas para 1.800 horas dessa formação, sobretudo para os estudantes que cursarem o itinerário técnico e profissionalizante. Isso significará uma redução da carga horária de todas as disciplinas obrigatórias constantes no atual currículo do ensino médio. O quadro apresentado como anexo na Resolução SE 02/2019 dá uma mostra de como o governo paulista entende um currículo de cerca de 1.800 para o estado de São Paulo:

Quadro 2 - Disciplinas da BNCC na Resolução SE 02/2019


Fonte: Anexo II da Resolução SE 02/2019

Mesmo que o texto aprovado no CEE/SP defina que “a formação geral básica deve ter carga horária total mínima de 1.800 horas” (Art. 7), isso não muda substancialmente a questão. No quadro anexo à Resolução SE 02/2019 a BNCC tem um total de carga horária de 1.733 horas, bem próxima às 1.800 horas definidas na deliberação do CEE/SP, não alterando a necessidade de corte de carga horária da formação geral - e consequentemente das disciplinas que a compõe - para a adequação a essa nova estrutura.

Como escrevemos em outro artigo, “a carga horária de todas essas disciplinas serão substituídas pela formação profissional, que nos leva a pensar no processo que Laval identificou como ‘profissionalização do currículo’" (PIOLLI & SALA, 2019, 187).

Entretanto, temos que ter claro que essa “profissionalização do currículo” não se confunde com cursos técnicos de nível médio. A própria deliberação aprovada no Conselho Estadual paulista deixa isso claro quando diz que

“Art. 12. No itinerário de formação técnica e profissional podem ser ofertadas tanto a habilitação profissional técnica quanto a qualificação profissional, incluindo-se o programa de aprendizagem profissional em ambas as ofertas”.

Assim, vemos que o próprio documento aprovado distingue entre "habilitação profissional técnica” e “qualificação profissional”. Segundo a Deliberação do CEE/SP,

“§ 1º A habilitação profissional técnica de nível médio deve atender e se organizar por eixos tecnológicos constantes do Catálogo Nacional de Cursos Técnicos – CNCT organizado pelo MEC e, quando se tratar de profissões regulamentadas, deve considerar e contemplar as atribuições previstas na legislação específica referente ao exercício profissional” (Art. 12).

O Ministério da Educação define a Habilitação Profissional Técnica de Nível Médio como:

“cursos que habilitam para o exercício profissional em função reconhecida pelo mercado de trabalho (Classificação Brasileira de Ocupações – CBO ), a partir do desenvolvimento de saberes e competências profissionais fundamentados em bases científicas e tecnológicas Promovem o desenvolvimento da capacidade de aprender e empregar novas técnicas e tecnologias no trabalho e compreender os processos de melhoria contínua nos setores de produção e serviços. (…). Com carga horária variando entre 800, 1.000 e 1.200 horas, dependendo da respectiva habilitação profissional técnica, podem ser estruturados com diferentes arranjos curriculares, possibilitando a organização de itinerários formativos com saídas intermediárias de qualificação profissional técnica”.

Mas a Deliberação do CEE/SP que definiu o novo ensino médio paulista, também define que “os itinerários de formação técnica e profissional podem compreender a oferta de um ou mais cursos de qualificação profissional, desde que articulados entre si”, além de possibilitar a concessão de “certificados intermediários de qualificação profissional técnica, desde que o itinerário seja estruturado e organizado em etapas com terminalidade, segundo os interesses dos estudantes, as possibilidades das instituições e redes de ensino, as demandas do mundo do trabalho e a relevância para o contexto local” (Art. 12, § 3º e 4º).

Isso significa que o itinerário técnico e profissional pode ser oferecido a partir de cursos curtos de qualificação profissional. Assim o MEC define esses cursos:

“São cursos que se integram à organização curricular de uma Habilitação Profissional Técnica de Nível Médio (curso técnico), compondo o respectivo itinerário formativo aprovado pelo sistema de ensino.

Também chamados de unidades ou módulos, correspondem a saídas intermediárias do plano curricular com carga horária mínima de 20% do previsto para a respectiva habilitação. São destinados a propiciar o desenvolvimento de competências básicas ao exercício de uma ou mais ocupações reconhecidas no mercado de trabalho”.

Assim, enquanto uma habilitação profissional técnica de nível médio tem entre 800 e 1.200 horas de formação, um curso de qualificação profissional tem 20% desta, o que significa uma formação profissional aligeirada.

Em relação ao itinerário técnico e profissionalizante e a distinção entre os cursos de habilitação técnica e os cursos de qualificação profissional, já temos o Novotec - que é o projeto de implementação desse itinerário formativo pelo governo paulista - para nos mostrar suas proporções.

No Projeto de Lei para a instituição do Plano Plurianual (2020-2023) do governo paulista, para 23 mil vagas em cursos técnicos a serem oferecidos pelo Novotec, a meta é oferecer 938 mil vagas em cursos curtos de qualificação profissional pelo programa, o que mostra o peso que estes cursos curtos de qualificação terão na realização do itinerário técnico e profissional (PIOLLI & SALA, 2019, p. 189). Trata-se de uma verdadeira dualidade dentro da dualidade. Da separação entre a formação geral para o prosseguimento dos estudos e a formação para o trabalho, se sobrepõe a distinção hierárquica entre a habilitação técnica de nível médio, com cursos de cerca de 1.000 horas, e as qualificações profissionais, com 200 horas de formação.

Sem falar que o itinerário formativo técnico e profissional poderá ser cumprido em parceria com:

“instituições de ensino que mantêm cursos e programas de educação a distância na educação profissional técnica de nível médio, no sistema de ensino do Estado de São Paulo, nos termos da Deliberação CEE nº 97/2010” (Art. 13, § 2º, II).

O itinerário técnico e profissional poderá ser cumprido simplesmente na modalidade à distância e, pior ainda, simplesmente em parceria com "empresas que produzem bens e serviços” (Art. 13, § 2º, IV). Trata-se de uma fórmula que foi incluída para atender as demandas de empresas e/ou setores econômicos específicos de cada região. Sem contar que, embora não possam conferir certificados de conclusão do próprio ensino médio, “as instituições parceiras poderão expedir certificados de qualificação na área objeto de parceria” (Art. 13, § 4º), o que abrirá um amplo mercado de certificação com fartos recursos públicos.

É claro que, no quadro da estratificação hierárquica que representa a formação nesse itinerário, serão os alunos do ensino noturno e os jovens e adultos da EJA que "devem ser preferencialmente integrados à formação técnica profissional” (Art. 21, II, § 6º), marcadamente com os cursos curtos de qualificação profissional e com a possibilidade dessa formação ser simplesmente à distância ou pelo recurso das parcerias com "empresas que produzem bens e serviços”.

Acreditamos que o itinerário da formação técnica profissional tem centralidade nessa reforma curricular o que deve reforçar o sistema de dualidades, a fragmentação e estratificação do ensino médio, aprofundando as desigualdades na oferta desse nível de ensino. Desse modo, a formação aligeirada, a educação à distância, a privatização, o estreitamento e profissionalização do currículo constituem-se como elementos estruturantes dessa reforma.


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Mauro Sala

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Evaldo Piolli

Professor da Faculdade de Educação da UNICAMP
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