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Marx e Engels - Uma biografia: Nota sobre a edição da International Publishers, de 1927

Rosa Linh

Marx e Engels - Uma biografia: Nota sobre a edição da International Publishers, de 1927

Rosa Linh

Este artigo faz parte da edição de Marx e Engels – Uma biografia, de David Riazanov, que será publicado pelas Edições Iskra nos próximos dias. Acesse aqui a apresentação da edição, que apresenta ao público brasileiro um importante problema com o qual a equipe se deparou no processo da edição. Trata-se da adulteração e falsificação documental por parte da burocracia stalinista desta obra, na edição da International Publishers, de 1927. Neste artigo, se desenvolverá em detalhe as falsificações, que dão renovada importância histórica, científica e política desta nova publicação para todos aqueles que defendem o legado das bases operárias do Estado soviético.

O trabalho editorial e de tradução é, antes de tudo, político. Para além de questões técnicas indispensáveis, a tradução de uma obra coloca o tradutor diante da necessidade de fazer escolhas no intuito de manter a honestidade intelectual para com a obra, sua história e seu legado, de forma coerente e coesa a um público de um idioma distinto daquele no qual esta originalmente fora concebida. Toda obra teórica ou literária, à sua maneira, possui uma história e um contexto político na qual está atravessada; para os marxistas, ela expressa as contradições de classe daquele período específico. A tradução e a edição se colocam diante de um desafio temporal, transportando ao passado o leitor do presente, com toda a seriedade de estabelecer essa ponte de maneira científica e profissional. No que se refere à tradução e edição de Marx e Engels – Um biografia de David Riazanov – um dos maiores propagandistas do marxismo na história –, tudo isso está muito longe de ser algo à parte.

A tradução e edição da obra que o leitor tem em mãos perpassa muito mais que uma escolha de resgatar um clássico do marxismo, o que já seria um grande objetivo, e torna-se um compromisso histórico com o próprio legado político e a tradição revolucionária de Marx e Engels. A brilhante ideia de Riazanov foi aplicar o método materialista histórico-dialético de Marx à própria vida e obra de seus precursores, além de permitir um conhecimento exaustivo da atividade militante de Marx e Engels. Essa perspectiva, como a de todo bom bolchevique, não podia deixar de se tornar um guia de ação para seu tempo – e isso, o legado do marxismo revolucionário, era uma das armas mais letais que tanto fazia temer seus detratores.

Em um primeiro momento, a equipe das Edições Iskra tomou a edição em inglês de 1927 da International Publishers. Na época da publicação, Riazanov ainda estava à frente do célebre Instituto Marx-Engels, com um gigantesco acervo bibliográfico e teórico com centenas de milhares de documentos da história do movimento operário internacional. Ao passo que a tradução se desenvolvia, notamos que havia algumas diferenças entre edições de idiomas distintos e de outros anos. Mas foi a partir do cotejo com a edição em português de 1984 da Editora Global, no entanto, que ficou claro que não se tratava de algumas diferenças da transposição de uma língua a outra: havia parágrafos suprimidos por inteiro, um seguido do outro. O conteúdo das conferências que compõem Marx e Engels estava profundamente distorcido, e imediatamente o trabalho da edição e tradução ganhou outro significado político.

Assim, o trabalho de edição desta obra se tornou um minucioso trabalho de pesquisa e comparação entre as diferentes edições que estavam ao nosso alcance. Eis que recorremos à edição francesa de 1923, Marx et Engels. Conférences faites aux cours de marxisme près l’Académie Socialiste (1922), das Éditions sociales Internationales, de 1923, que nos permitiu identificar em detalhe cada um desses trechos suprimidos. Assim, encontramos o que, na verdade, era fruto direto da censura da burocracia stalinista às obras marxistas revolucionárias. A deturpação se dava pela supressão do que não se alinhava aos ditames da burocracia. No final de 1927, Trótski foi expulso do Partido Bolchevique e, seria em 1928, que ocorreria o VI Congresso da Internacional Comunista, burocraticamente ratificando a tese reacionária do “socialismo em um só país”, que já havia se desenvolvido desde 1924, depois da morte de Lênin, quando Stálin, Zinoviev e Kamenev passaram a atacar Trótski e a teoria da revolução permanente. Riazanov seria expulso do Partido poucos anos depois de Trótski, em 1931; posteriormente, seria deportado, preso e, em 1938, executado em meio aos infames Processos de Moscou.

Alguns poucos exemplos demonstram como chegamos a essa conclusão, a partir do espírito de desvirtuamento e falsificação do stalinismo. Na edição da International Publishers, fica deliberadamente excluída toda e cada menção de Riazanov à semelhança das polêmicas de Marx e Engels com os debates entre os revolucionários russos, com as lutas de tendências entre mencheviques e bolcheviques. Um ponto inteiro, no último capítulo, que trata dos estudos de Marx sobre a Rússia, desapareceu, literalmente. Por exemplo, ao falar da revolução derrotada em 1830 na Europa e a entrada de Marx na universidade, vemos na edição francesa de 1923, a seguinte formulação (tradução nossa):

Para me fazer melhor compreender, irei me referir ao nosso movimento revolucionário russo. O avanço do movimento revolucionário dos anos 1880 dura até 1883-1884, momento em que se torna claro que o antigo Naródnaia Vólia está aniquilado. Os anos de 1886-1889, em particular após o atentado do 1º de março contra Alexandre III, são, nas universidades, os anos de enorme reação em que o movimento revolucionário desaparece completamente. As pessoas da minha idade – aquelas que não perderam o sentimento revolucionário – colocam-se então a estudar as razões pelas quais esse movimento revolucionário terminou fracassado; ocupam-se temporariamente das tarefas científicas.

Com qual intuito se retira uma passagem rica em história como essa? Qual o sentido estilístico, ou a intenção científica, para isso? Mas não se trata apenas de trechos sobre história, também se suprimiram as críticas à política do Partido. Exemplo disso é o seguinte, estando a parte suprimida entre colchetes:

Quando Engels morreu, a prática da cremação começava a estender-se. Pediu que seu corpo fosse cremado e que suas cinzas fossem lançadas ao mar. [Após sua morte, questionaram-se se convinha ou não executar suas últimas vontades, pois alguns camaradas alemães eram da mesma opinião daqueles que hoje querem transformar a Praça Vermelha de Moscou em um cemitério, e com monumentos funerários ainda por cima.]

Riazanov, que criticava ironicamente a ideia da “mumificação” de Lênin e a sacralização de sua figura - algo completamente alheio a Lênin e ao bolchevismo - passou a não poder expor essa visão pela censura stalinista. Se em 1923 a crítica à mumificação de Lênin era bem-vinda, em 1927 não poderia sequer constar em um livro. Isso não é mero detalhe, mas uma questão política. Podemos conferir a seguir:

Tratarei de um tema puramente histórico, mas ao mesmo tempo me atribuirei a seguinte tarefa: já que Marx e Engels, nossos mestres, nos interessam como autores da concepção materialista da história, como criadores do socialismo científico, gostaria de contar a vocês a sua história empregando seu próprio método, aplicando sua própria concepção materialista.
[Por mais que nosso programa destaque a importância da coletividade, nós atribuímos às vezes uma importância excessiva ao papel dos indivíduos na história. Nesses últimos tempos, particularmente, subestimamos um pouco o papel das massas e relegamos à última instância as condições econômicas e históricas gerais que determinam o papel dos indivíduos.]

Sigamos com outra passagem para entender melhor o que se passa:

Os dois amigos nos deixaram um monumento mais resistente que o granito, mais eloquente que qualquer epitáfio: o movimento comunista internacional do proletariado, que sob o estandarte do marxismo, do comunismo revolucionário, marcha para a vitória da revolução social mundial. Deixaram-nos o método da investigação científica, as regras da estratégia e da tática revolucionárias. Deixaram-nos um tesouro inestimável, no qual nos apoiamos para o estudo e a compreensão da realidade.

Esse é o trecho original. O que restou na versão de 1927 foi:

Ambos os amigos deixaram para trás um monumento mais forte que qualquer granito, mais eloquente que qualquer epitáfio. Eles nos deixaram um método de pesquisa científica.

Todas essas alterações não se justificam senão para deliberadamente censurar críticas e esconder a história e qualquer traço do marxismo (e esta obra em particular) como um guia revolucionário internacionalista de tática e estratégia. Não à toa, se oblitera o fato de Marx se dedicar à pesquisa científica impulsionado pela revolução de 1830 enquanto reduz o legado de Marx e Engels a um “método de pesquisa científica”. A polícia política stalinista via problemas importantes no que era verdadeiro. A questão é que os escritos de Riazanov apontavam para o entendimento de que a burocracia stalinista não tinha nada que ver com o leninismo, mas sim com o nacional-reformismo.

A censura e as prisões, os retrocessos nos direitos das mulheres e LGBTQIAP+, o assassinato sistemático da vanguarda operária e camponesa que fez a Revolução de Outubro: tudo isso possui seu conteúdo político de negação do bolchevismo – negação fruto da burocratização do Estado operário soviético, do isolamento e estrangulamento da revolução internacional circundada pelo imperialismo. Para justificar ideologicamente o termidor, criou-se a tese do “socialismo em um só país” e, por isso, sem mais nem menos, se exclui qualquer menção ao caráter internacional do movimento operário. Outra supressão, já mencionada, mas também exemplo disso, está no seguinte trecho descartado:

[...] o movimento comunista internacional do proletariado, que sob o estandarte do marxismo, do comunismo revolucionário, marcha para a vitória da revolução social mundial.

A remoção da passagem sobre a importância do internacionalismo operário, e o objetivo da revolução internacional que são parte inseparável da teoria de Marx e Engels, estava ligada ao interesse da camarilha de Moscou em revogar toda a riqueza teórica do marxismo para defender, como se fosse um “legado do bolchevismo”, a possibilidade de construir o socialismo integral com as forças restritas da URSS. Uma violação teórica aberta, já em 1927, que resultou na falsificação literária de Riazanov.

Assim, não é menor que se abstraia o caráter mundial da revolução socialista como parte fundamental da tradição do movimento comunista. Riazanov não só mostra a importância das Sociedades de Correspondência internacional para o movimento operário do século XIX, a história das Internacionais e a atuação militante de Marx e Engels, que sempre trabalharam pela revolução internacional. Mostra também, antes da própria “teoria” stalinista enquanto ordenador da Internacional Comunista, como a “teoria” nacional-reformista do “socialismo em um só país” negava o fundamental da época imperialista: ignorava a expansão mundial do capitalismo e a extrapolação das forças produtivas em relação às fronteiras dos Estados nacionais e, portanto, a impossibilidade da construção integral do socialismo em um país isolado. Riazanov coloca às claras a validade histórica indiscutível da revolução mundial pelo bolchevismo, que desde sua fundação nunca havia cogitado a possibilidade do constrangimento da revolução em limites nacionais.

Além disso, era preciso censurar na mesma medida em que se criava um mito, um culto bonapartista à personalidade. Nesses termos, o lema preferido de Marx diz bastante: Homo sum, humani nihil a me alienum puto (Nada do que é humano me é estranho). Diferente de Stálin, que precisava de uma carapuça para mascarar sua falta de firmeza de espírito, típico de um burocrata mesquinho, Marx era admirado pelos operários por seu trabalho intelectual intrinsecamente ligado à vida proletária e sua emancipação, não por dotes sobre-humanos.

Na mesma medida, abstraindo o conteúdo revolucionário, era preciso apagar as mulheres revolucionárias – seu papel subversivo precisava ser ocultado a todo custo, pois eram as mulheres quem mais sofriam com o velho e que com mais força lutariam pelo novo. Exemplo disso é o que a censura política stalinista fez com Rosa Luxemburgo na obra de Riazanov. Os seguintes parágrafos abaixo foram suprimidos por completo:

É preciso mencionar aqui um episódio desse congresso, assistido por Engels. O partido socialista polonês tinha então uma influência desproporcional na Internacional, onde fazia ostentação de seu “marxismo” e lançava palavras de ordem sobre a independência da Polônia, desviando-se cada vez mais em direção a um vulgar social-patriotismo. Paralelamente a esse partido, havia surgido um outro grupo marxista, que já então alertava que o partido socialista polonês se desviara da linha proletária. Esse pequeno grupo, dirigido por Rosa Luxemburgo, pedia sua admissão no congresso em Zurique. Foi recusado. Plekhanov tampouco o apoiou, pois, como me contou na presença de Engels, considerava que seus esforços não levariam a nada. Havia também, na verdade, outras razões, em que a principal era que o núcleo de Luxemburgo destacava sua ligação com a organização polonesa Proletariado, que havia sido anteriormente aliada ao Naródnaia Vólia, e, por conseguinte, lutou contra o grupo Emancipação do Trabalho.
Seja como for, o grupo de Luxemburgo ficou completamente isolado. A própria Rosa foi convidada a deixar o congresso. Sofreu essa afronta diante de toda a Internacional, em presença do próprio Engels. Pode ser que tenha chorado, mas não abandonou nem Marx, nem Engels, nem o socialismo científico; reafirmou-se ainda mais em sua convicção e disse: convenceremos a Internacional, provaremos a justeza de nossa posição. É precisamente esse traço que distinguia Rosa Luxemburgo da maior parte dos miseráveis intelectuais que, filiados por acaso em um partido proletário, e vítimas de uma injustiça aparente ou real, apressam-se em sair desse partido para difamá-lo e passar, em seguida, às fileiras da burguesia. Um partido não é uma pensão de delicadas donzelas. Ele é composto de homens reais que, na disputa, trocam às vezes golpes sensíveis. Isso é desagradável, mas inevitável, tanto no plano nacional quanto no internacional. E após esse congresso de Zurique, no qual igualmente foram afastadas outras pessoas, que imediatamente se puseram ao lado dos anarquistas ou simplesmente da burguesia, Rosa Luxemburgo demonstrou que ela era verdadeiramente uma discípula de Marx e Engels, representante desses intelectuais verdadeiramente revolucionários cuja principal missão é a de ajudar a classe operária a tomar consciência de si mesma e a fazer os operários revolucionários não intelectuais, mas sim operários ilustrados.

A que serve censurar Rosa Luxemburgo? Única e exclusivamente à política que veio a se consagrar na trajetória stalinista, a saber, a de separar Rosa do diálogo comum entre os marxistas revolucionários, quando a verdade é que discutia suas divergências dentro do mesmo terreno da revolução internacional compartilhado por Lênin, Trótski, Gramsci e outros grandes personagens do marxismo. As “delicadas donzelas” que a burocracia tanto queria, ao proibir novamente o direito ao aborto, relegando o papel da mulher ao de mãe e dona de casa contra todos os avanços de Outubro, não poderiam encontrar nenhum paralelo na fibra revolucionária, na intransigência estratégica e no gênio guerreiro (como diria Clausewitz), de mulheres socialistas como Luxemburgo. Rosa foi uma ardente combatente antiburocrática e internacionalista – apagar sua menção nessa obra é deliberadamente ocultar não só o papel das mulheres operárias e do feminismo socialista, mas o conjunto da estratégia revolucionária.

Longe de ser um traidor, como foi acusado, Riazanov, com seu trabalho científico de mais de 40 anos ao Partido, e Marx e Engels em si mesmo, contrapõe-se completamente a qualquer suposição de menchevismo. Seu assassinato e a censura à sua obra possuem esse sentido político, o de privar as trabalhadoras e os trabalhadores russos do legado teórico, político e estratégico dos precursores do marxismo e de sua continuação revolucionária, o bolchevismo. Tudo em nome dos benefícios de uma casta burocrática que organizou a derrota do proletariado em escala mundial, já que a conclusão política do “socialismo em um só país” foi promover a conciliação de classes, seja nos países de capitalismo atrasado se aliando com as burguesias nacionais, - traindo a Revolução Chinesa de 1925-1927, diversas insurreições anticoloniais na África e na Ásia no pós-Segunda Guerra, e abrindo passagem ao golpe militar de 1964 no Brasil -, seja coexistindo pacificamente com a burguesia imperialista “democrática” na Frente Popular, que derrotou o processo de ocupação de fábricas na França e a Revolução Espanhola, e na Segunda Guerra com os Aliados, desarmando o maior ascenso operário da história.

Marx e Engels é uma arma de combate. Essa edição tratou de recuperar sua envergadura revolucionária, restituir fielmente os escritos para disponibilizá-la ao público brasileiro para servir ao que foi concebida para ser: um instrumento vivo para revolucionárias e revolucionários de nosso tempo transformarem, com o trabalho da estratégia, as armas da críticas em crítica das armas: a revolução. Não começamos do zero. A vida e obra de Marx e Engels, contidas nessas páginas, se misturam e se entrelaçam com a história, vitórias, derrotas e lições do proletariado revolucionário internacional. A moral guerreira do marxismo vive nessas páginas e coloca, mais do que nunca, a necessidade de combater toda e qualquer deturpação do stalinismo, não apenas no terreno da memória e da teoria, mas de reabilitar o comunismo para as massas como a única saída possível para o capitalismo, que transforma nosso mundo em uma suja e vil prisão. O livro é um importante instrumento para conhecer e partir dos fios de continuidade da história do marxismo, que carregam teórica, política e estrategicamente a possibilidade presente e futura do comunismo.

Para honrar a memória de Riazanov e do marxismo, nada melhor do que o último parágrafo desta obra, igualmente subtraído da edição norte-americana, que trata da morte de Marx e Engels:

Faltou-lhes uma só felicidade: experimentaram a alegria de sentir a tempestade da revolução, tomaram parte ativa nessa revolução, mas era somente a revolução burguesa. Não puderam viver até a revolução social, até a revolução proletária. Mas seus espíritos pairam em nossa revolução e, nos estrondos cada vez mais próximos da revolução social universal, ressoa o poderoso chamado que fizeram há 65 anos: “Proletários do mundo todo, uni-vos!


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Rosa Linh

Estudante de Relações Internacionais na UnB
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