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Impunidade crônica | No Brasil, menos de 5% dos empresários acusados de trabalho escravo são condenados

O escândalo das vinícolas no sul trouxe à tona novamente o problema do trabalho escravo no Brasil. Além da profunda herança escravista na formação nacional e do racismo generalizado em nossa sociedade, o trabalho escravo contemporâneo conta com outro importante aliado: a Justiça brasileira.

sexta-feira 10 de março de 2023 | Edição do dia
Obra de Jean Baptiste Debret: Desembargadores chegam ao Palácio de Justiça no Rio de Janeiro. Foto: Acervo Espaço Olavo Setubal/Itaú Cultural

No ano passado foram mais de 2.500 pessoas resgatadas de situação análoga à escravidão. Esses números explodiram durante o governo Bolsonaro e há fartos indícios de subnotificação. Apenas esse ano já foram denunciados os casos das vinícolas gaúchas, do canavial em Pirangi (SP), da construção civil em Joinville (SC), das plantações de maçã em Vacaria (RS)… mas a tendência é a de que a maioria dos empresários saiam impunes de seus crimes.

Segundo pesquisa da Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas, da Universidade Federal de Minas Gerais, entre 2008 e 2019 foram denunciados 2.679 réus pela prática de crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, previsto no artigo 149 do Código Penal, com pena de reclusão de 2 a 8 anos. Desse total, apenas 112 pessoas foram condenadas, o que representa 4,2% do total de acusados - e 6,3% apenas foram levados a julgamento. A bem dizer, é difícil saber quantos desses 112 de fato eram empresários, ou eram “gatos” (que fazem a intermediação entre a vítima e o empresário), capatazes ou jagunços.

A maior parte das absolvições se deu por suposta “insuficiência probatória” - uma justificativa absurda pois muitos juízes, do alto dos seus privilégios, naturalizam condições análogas à escravidão. Além disso, muitos dos casos acabam sendo prescritos devido à morosidade da justiça em julgar casos como esses, demora agravada também pelo fato de que boa parte das vítimas voltam às suas terras de origem ou mudam de endereço, dificultando ainda mais o recolhimento de testemunhos. Ou seja, uma série de fatores, cuja responsabilidade é do poder judiciário, que beneficiam os empresários escravocratas.

Lembra do caso da empresária da Avon que manteve empregada doméstica em situação análoga à escravidão em um bairro nobre da capital paulista? O caso surgiu em 2020 e até hoje ela e o marido não foram punidos criminalmente.

Boa parte dos casos acabam não sendo considerados como "análogos à escravidão" pois, supostamente, ao trabalhador é preservado o direito de ir e vir. Esse é o entendimento de muitos juízes, como é o caso de um fazendeiro e seu gerente, no Mato Grosso, que foram absolvidos pela 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 1ª Região em 2018. Os 12 trabalhadores da fazenda foram encontrados por fiscais do trabalho em barracos de madeira e piso batido, sem banheiro, com uma cozinha sem paredes, sem equipamentos de proteção individual para o trabalho, sem lugar para jogar o lixo ou mesmo utensílios para lavar a louça. Mas o juiz entendeu que, se existia a "liberdade de ir e vir" não poderia ser considerado trabalho análogo à escravidão. Os escravocratas estão livres e soltos.

O mesmo empresário que contratou os mais de 200 trabalhadores baianos para trabalhar nas vinícolas é reincidente - ele já havia sido acusado de promover trabalho escravo em 2021, inclusive para a própria Salton. Mas como o caso não foi pra frente, ele pôde repetir a linha.

A concentração fundiária, a herança escravocrata no campo, a terceirização irrestrita e a reforma trabalhista, o fortalecimento do bolsonarismo, a busca incessante por lucro no capitalismo selvagem, o racismo estrutural na formação das classes dominantes em nosso país - esses são alguns elementos que explicam o boom de trabalho escravo no último período. Mas para além deles, há em nosso país um enorme aliado para que empresários avançem impunemente regimes de trabalho análogos à escravidão: a Justiça brasileira.

E os números não param por aí. Apenas 1% dos acusados são sentenciados a mais de quatro anos de prisão e cumprem pena em regime fechado. A maioria migra para o regime semi aberto e pleiteia prestação de serviços comunitários.

Um outro dado, que apareceu no podcast do G1 sobre o tema das vinícolas, diz que a punição ronda a casa dos 2%: “Nós fizemos um mapeamento das sentenças de todas as condenações judiciais de 2009 até 2018 a fim de estudar o fenômeno que estava acontecendo no judiciário brasileiro. Cerca de 2% das pessoas que submete a outra ao trabalho escravo que são punidas”, diz um especialista no podcast.

O Artigo 243 da Constituição Federal prevê que “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas (…) exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário”. Quantas fazendas ou empresas foram expropriadas pelo Estado nos últimos anos devido a trabalho escravo? Foram mais de 2.500 casos apenas no ano passado, mas não há notícia de sequer um minifúndio expropriado. Que dirá grandes propriedades… Há uma lista suja com dezenas de CPFs e CNPJs ligados ao trabalho escravo, atualizado pelo próprio Ministério do Trabalho ainda esse ano, e nenhuma propriedade foi expropriada (diga-se de passagem, em 2017, durante governo Temer, o Ministério do Trabalho tentou extinguir a existência dessa Lista Suja do Trabalho Escravo e impedir que fossem divulgados os nomes, em claro gesto pró-escravista). Os patrões seguem vivendo impunemente e explorando outros trabalhadores enquanto sequer esse ponto da Constituição é levado a frente de fato.

À rigor, via de regra os juízes estão do lado dos patrões, garantindo impunidade e favorecimento a quem detém capital. Foi assim durante os séculos de escravidão e é assim até hoje. A abolição em 1888 se deu de forma a garantir total e absoluta impunidade aos senhores de escravo. A transição para a democracia, 100 anos depois, também garantiu impunidade aos militares e torturadores. A polícia sobe morro hoje em dia, promove chacinas contra a população negra mensalmente, e nenhum mísero policial é punido. Os bárbaros crimes que o Estado brasileiro promoveu ao longo de sua história são premiados com a insígnia da impunidade e, se depender da justiça brasileira, é certo que nenhum dos donos das três grandes vinícolas será punido.

Essa situação traz à tona a importância de uma reforma agrária real no Brasil, nacionalizando as grandes terras e colocando-as sob controle dos trabalhadores rurais. É preciso atacar o latifúndio em nosso país, acabando de vez com todo e qualquer trabalho escravo de norte a sul. Traz à tona também a necessidade de se acabar com os privilégios desses juízes que nadam em penduricalhos, bolsas-paletós e vivem de regalias e “boas relações” com os patrões. Esses empresários escravistas devem ser julgados por júri popular. Ao mesmo tempo, torna-se imperativo revogar as reformas trabalhista e lei da terceirização irrestritra que estão na base do boom de trabalho escravo dos últimos anos. O governo Lula já afirmou que não irá revogar as reformas neoliberais do golpe e a justiça brasileira comprova todos os dias de que lado está. Daí a importância dos trabalhadores urbanos e do campo se aliarem com a população negra e demais setores oprimidos para se enfrentarem com essa situação, com o racismo e levantar um programa que bata de frente com o capitalismo - a base estrutural do trabalho escravo.




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