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Tragédia capitalista | O choro em meio a lama: a tragédia em Petrópolis é crime do Estado capitalista

A definição de “tragédia” em Petrópolis tem múltiplas consequências: exime de culpa o Estado e a classe que o comanda, assim como o sistema que, em um país atrasado como o Brasil, produziu por toda história um processo de urbanização caótico e irracional, que, em nome da especulação imobiliária e do lucro, obriga trabalhadores sempre a procurarem locais que, por sua natureza geográfica, são perigosos para a própria vida desses, só não menos danoso do que ficar sem um teto

Mateus CastorCientista Social (USP), professor e estudante de História

sexta-feira 18 de fevereiro de 2022 | Edição do dia

Uma mãe dá enxadas na lama e escombros à procura de sua filha, ainda com esperança de encontrá-la viva, mais tarde é confirmada a morte. Enquanto a mãe retira um pouco de lama com sua enxada que poderia custar cerca de 50 reais, o governo do Estado do Rio, do bolsonarista Cláudio Castro, detinha nos cofres 770 milhões de reais para gastar com despesas para prevenção de tragédias, só 169 milhões foram gastos, 22% do total.

Em outro lugar, onde havia uma casa, resta somente a parte frontal da residência, onde a avó morreu com seu neto de 3 meses abraçado no colo, também morto. Um mãe recebe a notícia de que sua filha de 17 anos morreu abraçada com sua comadre a afilhada de 2 anos, encontradas sem vida abraçadas.

Em entrevista, o governador partiu primeiro de indicar o grande culpado em sua opnião: “Foi a pior chuva desde 1932. Realmente, foram 240 milímetros em coisa de duas horas. Foi uma chuva altamente extraordinária”, afirmou. A conclusão que chega é que se trata de mais uma “tragédia histórica”.

A rotina da tragédia

O mesmo cenário se repete todos os anos. As tempestades de verão chegam e, com elas, enchentes, inundações, deslizamentos e alagamentos instauram o caos, dos grandes centros urbanos até pequenas cidades. A grande mídia produz suas notícias e reportagens sobre a quantidade mortos, desabrigados, perdas e destruição em geral, as autoridades burguesas fazem suas declarações e prestam condolências às famílias. Se filmagens apocalípticas de moradores gravam a barbaridade em meio ao desespero, a chance de repercussão internacional´ aumenta e, por mais um ano, podcasts são produzidos, especialistas são convidados a falar sobre os impactos do aquecimento global e a sugerir determinadas políticas públicas. O verão passa e assim também as chuvas, o trabalhador, informal ou CLT, expulso aos milhões para morar em áreas impróprias por décadas a fio, graças a salários de miséria combinados a especulação imobiliária, reza para que ano que vem não tenha a mesma sorte de seus vizinhos, desabrigados ou mortos soterrados pela lama.

Evento climático extremo é a definição meteorológica do que atingiu Petrópolis. Temos até o momento de redação deste artigo, 117 mortos. Ao todo, 323 deslizamentos e 134 desaparecidos foram registrados, mais de 40 casas soterradas. Em um dia, choveu mais do que o esperado para todo mês de fevereiro, o que resultou em um mórbido recorde desde o início das medições: há 90 anos não chovia tanto em 24 horas. Todo ano, dados e “excepcionalidades” como Petrópolis ocorrem, estes são cada vez mais comuns no Brasil e ao redor do mundo, discorre-se sobre o aquecimento global.

Uma clara e grotesca contradição se evidencia. A história recente brasileira acumula eventos “trágicos” e “catastróficos” de magnitude gerados por eventos climáticos extremos. O maior deles foi o “desastre natural” ocorrido em 2011, a pouco mais de uma década, na mesma região serrana do Rio de Janeiro. Ocorreram mil mortes e 35 mil pessoas perderam suas casas, sobretudo nas favelas e bairros periféricos. Na virada deste ano ocorreram as chuvas na Bahia que deixaram 100 mil pessoas desabrigadas e quase 500 mil afetadas, em Minas Gerais, dezenas de mortos e milhares de desalojados. Por todo o Brasil, 8,3 milhões vivem em área de risco, que nada mais significa locais que podem desabar sobre a cabeça de seus moradores.

Cotidianamente, empreendimentos de condomínios são planejados nos centros urbanos brasileiros, e, mesmo nos locais mais apertados, prédios surgem, a construção civil é um ramo econômico forte e, embora a crise econômica geral, se mantém com atividade considerável. Em uma sociedade com os meios produtivos, tecnológicos e científicos suficientes para a adaptação frente a sistematicidade de eventos dessa magnitude, com um amplo acervo histórico de exemplos e mais exemplos de fenômenos semelhantes por décadas, levando em conta a sua aceleração devido ao aquecimento global, há mais incapacidade criminosa de responder a situação do que tragédia, desastre, má sorte.

E não é só “culpa das autoridades e políticos”, a ausência de políticas públicas ou da ingerência diante de planos de longo prazo, como aponta o programa tanto liberal como reformista, que confia no protagonismo dos políticos capitalistas e suas instituições nesse regime apodrecido: trata-se de mais uma questão estrutural de um capitalismo atrasado, que fornece à mãe uma enxada para, ela mesma, assim como toda a população das áreas atingidas de Petrópolis, mobilizar-se a procura de seus mortos soterrados, enquanto nos bairros de luxo e nas residências burguesas do RJ se acumula a riqueza e propriedade, mais do que suficientes, para evitar que esses cenários se repitam em um looping eterno, cada vez mais criminoso.

A tragédia capitalista em meio à conjuntura eleitoral

A situação política do país, com Lula mantendo-se regularmente à frente nas pesquisas, chegando até cenários de vitória no primeiro turno e diante de seus acenos às classes dominantes, encontra reverberações em quem comanda a produção de opinião pública. O título do artigo do diretor do O Globo, “Todos querem Lula", encontra respaldo também nas posições adotadas nesses jornais diante da "tragédia" de Petrópolis. O discurso adotado parte de uma exposição e visão “pró-ciência”, criticando o aquecimento global e apontando o papel do Estado para políticas públicas, ainda que continuem tendo sua linha de constante pressão para que Lula preserve as conquistas do golpe, como as reformas trabalhistas e da previdência, o que o ex-presidente já indicou.

Para os analistas convidados dos podcasts da Folha e Globo desta quinta-feira, assim como para Reinaldo Azevedo, que sugere uma “reforma urbana liberal”, a solução se daria totalmente por dentro das instituições e sugerem aos atores do regime, como de rotina, o protagonismo com planos de infraestrutura, saneamento e moradia, tendo ou não certos choques com frações da burguesia e fazendo críticas a irresponsabilidade dos governos, mas defende-se sobretudo planos vindo de cima para baixo, que demorariam décadas, em um processo lento e gradual de transformação urbana, perspectiva que, embora mais crítica e incisiva contra a concentração de propriedades nos centros urbanos, Vinícius Torres Freire defende na Folha.

Lula fez uma declaração em tweet e vídeo sobre o ocorrido: "Todos nós que temos fé, que façamos uma reza forte para estimular a recuperação, os trabalhos de busca e amenizar o sofrimento do povo de Petrópolis, em especial de quem perdeu amigos e familiares”, não só partiu da mesma concepção de simples “tragédia”, apoiando-se no forte apelo emocional das imagens e vídeos deste desastre capitalista, sua grande resolução foi a intervenção divina.

Não interessa a Lula uma crítica a Castro, que vem tendo atritos com Bolsonaro em torno do plano de recuperação fiscal do Estado, ainda que em dezembro tenha afirmado o ex-capitão como “meu candidato” para o pleito presidencial. Contudo, ainda mais relevante é a prefeitura de Rubens Bomtempo, do PSB, principal partido que o PT vem debatendo sobre a formação de uma Federação, ao qual Alckmin poderá se filiar para concorrer como vice de Lula.

Leia mais: Tragédia em Petrópolis tem responsáveis: Bolsonaro, Cláudio Castro e Bontempo

Já Cláudio Castro, que governa o Estado, fez um reconhecimento cínico da negligência de seu governo. "A gente precisa entender é que há uma dívida histórica desde outras tragédias que tiveram. E outra foi também o caráter excepcional, duro dessa tragédia. Foi a maior chuva desde 1932. Unir uma tragédia histórica com um déficit que realmente existe causou esse estrago todo. Que sirva de lição para que, dessa vez, a gente aja diferente. Já está sendo diferente", afirmou Castro. Basicamente, busca manter a culpa nas costas do clima e chama de “déficit” a não implementação de 78% da verba que era destinada a ações de prevenção a desastres naturais.

A incapacidade de resposta do Estado capitalista em um país atrasado

A ausência por parte do Estado capitalista de qualquer plano sério para a transformação radical da infraestrutura urbana nos locais típicos de temporais, que responda na raíz essa questão, questiona a própria noção da enxurrada em Petrópolis como mais uma “tragédia”, a mesma incapacidade da burguesia nacional brasileira é observada na burguesia imperialista, incapaz de impedir o avanço do aquecimento global. Os locais atingidos, quem morre, perde e se prejudica tem um claro recorte de classe, que no Brasil é majoritariamente negra e, devastando o ambiente doméstico, mata mulheres e crianças em grande proporção.

No senso comum, por “tragédia” entende-se um evento cuja mortalidade e destruição é inevitável, quando não há capacidade de prevenção ou proteção e, portanto, não há outro sujeito a ser responsabilizado a não ser as forças da natureza, sendo os seres humanos puro objeto da desventura.

Portanto, a definição de “tragédia” em Petrópolis tem múltiplas consequências: exime de culpa o Estado e a classe que o comanda, assim como o sistema que, em um país atrasado com o Brasil, produziu por toda história um processo de urbanização caótico e irracional, que, em nome da especulação imobiliária e do lucro, obriga trabalhadores sempre a procurarem locais que, por sua natureza geográfica, são perigosos para a própria vida desses, só não menos danoso do que ficar sem um teto. Um processo histórico de ocupação das terras que contou em sua origem com o controle direto do Estado, primeiro português depois brasileiro, como ilustra o fato absurdo de até hoje a família real brasileira se beneficiar na cidade de uma taxa sobre a venda de cada terreno.

Há, porém, um motivo para a rotineira “tragificação” daquilo que é fruto da atividade humana, que não é uma atividade em abstrato, mas sim controlada por uma determinada classe: o capitalismo, de fato, não só é incapaz de reagir frente aos crescentes “desastres naturais” como depende de eventos desastrosos e trágicos para se reproduzir. A moradia precária, a ausência de um sistema de saneamento básico adequado, o salário insuficiente para pagar aluguel e contas, a busca de um terreno qualquer que seja para chamar de lar, a ausência de programas de construção de moradia, foram e continuam a ser fontes de lucro da burguesia brasileira, que emprega a força de trabalho daqueles que moram em “áreas de risco” e do mercado imobiliário.

ED Comenta | Petrópolis: não foi a natureza, foi o capitalismo

Nas potências imperialistas, ainda que lá ocorrem também desastres naturais, como terremotos no Japão, furacões nos EUA e enchentes na Alemanha, o nível de destruição é inigualável ao Brasil e outras nações atrasadas e economicamente dependentes, lá a recuperação é rápida, justamente porque há uma considerável margem de capital. Não há como seguir o programa liberal e reformista de simples repetição e cópia dos processos políticos que levaram a preparação a desastres muito mais desenvolvida no centro capitalista, justamente porque a sua força se baseia na extração de riqueza e exploração do trabalho nas nações subjugadas, como exemplifica vazamentos de petróleo do sul do mundo, destruição de biomas inteiros para a extração de madeira e agronegócio e mineração, como foi em Brumadinho.

No capitalismo, as forças produtivas da humanidade mantêm-se presas às relações de produção. Isso significa que há moradias sobrando, mas não se tornam lares por causa dos interesses de especuladores e empreiteiras, que há um exército de força de trabalho gigantesco na construção civil e para a obras de infraestrutura, mas mantém-se amarradas ao interesse dos grandes proprietários, que é a acumulação de capital e não a moradia. Uma reforma urbana radical poderia partir da expropriação dos imóveis sem uso social, que servem somente a especulação para tornarem-se lares não só daqueles em situação de risco, mas para garantir o pleno direito à moradia digna de toda a população.

Um verdadeiro plano de obras públicas que gere emprego e coloque os moradores das zonas de risco e aqueles que desejam ter seu direito à moradia garantido como parte de uma transformação radical do ambiente urbano, que leve em conta todo o acúmulo técnico e científico para a formação de um novo ambiente social, de circulação e de trabalho é uma tarefa necessária e possível, que rompa com o capitalismo e retome o equilíbrio climático e ambiental, tarefa histórica de todos os explorados e oprimidos não só do Brasil, como de todo o mundo.




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