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Por que, há 80 anos, Leon Trótski foi assassinado a mando de Stálin?

Vitória Camargo

Imagem: Juan Chirioca

Por que, há 80 anos, Leon Trótski foi assassinado a mando de Stálin?

Vitória Camargo

Há 80 anos, em 21 de agosto de 1940, o revolucionário russo Leon Trótski falecia em Coyoacán no México, onde estava exilado, vítima de um golpe desferido contra seu crânio por Ramón Mercader, agente da GPU, a mando do stalinismo.

O retorno a essa data neste momento não é simplesmente uma “homenagem” ao dirigente bolchevique. A ascensão de Trump nos Estados Unidos, de Bolsonaro no Brasil e o novo ciclo da luta de classes internacional traçam contornos do nascimento de uma nova etapa histórica, mais convulsiva, que abre espaço a novas formas de pensar e sentir, e recolocam na ordem do dia a atualidade do marxismo. Assim, o balanço do marxismo no século XX se mostra ainda mais como uma necessidade teórico-estratégica das gerações que despertam à vida política no século XXI, sendo permeado pelas lições da experiência soviética. Retomar o marco do assassinato de Trótski e, sobretudo, seu significado histórico está a serviço de “libertar os vivos do peso dos mortos”, como afirma o filósofo francês Daniel Bensaïd, desfazendo o amálgama entre stalinismo e comunismo.

Essa tarefa é ainda mais imperiosa em um momento em que Stálin tem ganhado um respiro senil. Seu símbolo foi utilizado outrora para desmoralizar e manchar o signo do comunismo e da triunfante Revolução Russa, como se a degeneração burocrática das revoluções operárias fosse uma conclusão histórica inescapável, constitutiva de uma suposta “natureza humana”. Agora, a simpatia que sua figura tem despertado em alguns setores da juventude que querem enfrentar a extrema direita é expressão distorcida da atração que o marxismo e a ideia da revolução voltam a exercer sobre as novas gerações, filhas das mazelas da crise capitalista.

Não é ocasional também que, nesse marco, empreendimentos capitalistas como a Netflix promovam, junto a Putin, séries como Trotsky para deturpar o legado desse revolucionário, dirigente da Revolução Russa de 1917 junto a Lênin e fundador do Exército Vermelho. O legado de Trótski e de milhares que deram suas vidas para defender as conquistas de 1917 representa a força e a continuidade das ideias de Marx e Engels. Suas batalhas, após a morte de Lênin, podem levar a uma conclusão que ameaça as classes dominantes: não só seria possível outro desfecho à União Soviética (URSS), que não o chamado “socialismo real” e sua restauração capitalista pelas mãos da própria burocracia operária, como seria possível o avanço revolucionário em distintos outros países, imperialistas e semicoloniais, onde inúmeras oportunidades perdidas, traídas e enterradas custaram à classe trabalhadora rios de sangue.

O significado histórico do assassinato de Leon Trótski

A historiografia burguesa, quando não consegue apagar completamente a existência do revolucionário russo, busca tratar o assassinato de Trótski como desfecho de uma disputa de anos entre personalidades políticas pelo “poder” na URSS, fruto de intenções “egoístas”, “ambiciosas” e “manipuladoras”, aos moldes da moral individualista burguesa. Trótski teria enfrentado Stálin durante mais de uma década em nome de seus próprios interesses, e seu assassinato seria uma vingança pessoal de Stálin. Por sua vez, stalinistas ora mencionam agosto de 1940 para reivindicá-lo abertamente, sem pudores, e afirmar que Stálin “matou foi pouco”, utilizando falsificações históricas dignas da extrema direita bolsonarista, como a calúnia de que Trótski teria colaborado com o nazismo; ora, mais timidamente, “mascaram” sua reivindicação do stalinismo buscando situar no enfrentamento entre Trótski e Stálin uma “falsa polêmica”, hoje superada, conferindo ao trotskismo um lugar marginal na história e se defendendo de uma suposta “demonização personalista” de Stálin. Para isso, é claro, valem-se dos maiores malabarismos teóricos para dissimular a razão de por que uma “falsa polêmica”, que em nada dizia respeito à defesa das conquistas da Revolução Russa e aos rumos da revolução internacional (sic), teria exilado, encarcerado e executado milhares de opositores na década de 30 sob acusação de “trotskismo”, culminando nos assombrosos Processos de Moscou – contra muitos dos antigos dirigentes do Partido Bolchevique que estiveram à frente de 1917 e do campo de batalha na guerra civil.

Diante disso, é certo que as psicologias individuais, e também das massas, não são em nada desprezíveis. O próprio Lênin, em seu testamento político, respondendo ao nefasto caso na Geórgia contra Stálin, trata de afirmar que Stálin é “brusco demais” e que essa característica se mostra “intolerável no cargo de Secretário Geral”. Propõe, como resolução, passar Stálin a outro posto, já vendo sinais do inicial processo de burocratização que se desenvolveria na direção do Estado soviético. Entretanto, muito para além de características individuais, a ascensão de Stálin e o posterior assassinato de Trótski há 80 anos devem ser compreendidos fundamentalmente sob a ótica da concepção marxista da história, como expressão da agudização da luta de classes e do embate político entre forças sociais opostas no entreguerras, entre revolução e contrarrevolução.

Uma concepção materialista dialética da história é contrária tanto ao personalismo burguês, que atribui o curso dos acontecimentos às “vontades individuais” e ignora suas bases materiais, quanto às falácias do estruturalismo que apaga a ação dos sujeitos e a luta de classes. Nesse sentido, por um lado, foi a burocratização da URSS, baseada em distintos fatores da dinâmica das contradições de classe em seu interior e internacionalmente, que conferiu importância histórica a Stálin. Por outro, a conclusão desse processo não estava em nada pré-determinada, não foi pacífica e o assassinato de Trótski só pode ser compreendido à luz da necessidade contrarrevolucionária em cessar definitivamente suas batalhas, junto à Quarta Internacional, ao eclodir da Segunda Guerra Mundial.

As bases da burocratização da União Soviética

Durante a Guerra Civil, a militarização dos sovietes e do Partido foi quase inevitável. Mas ainda durante a Guerra Civil, eu mesmo tentei no exército – até no campo de batalha – dar aos comunistas a possibilidade plena de discutir todas as medidas militares... Depois que terminou a Guerra Civil, esperávamos que a possibilidade de democracia fosse maior. Porém houve dois fatores, dois fatores distintos ainda que relacionados, que dificultaram o desenvolvimento da democracia soviética. O primeiro fator geral foi o atraso e a miséria do país. Dessa base emanava a burocracia, e a burocracia não desejava ser abolida, aniquilada. A burocracia se tornou fator independente. Então a luta se transformou até certo grau em luta de classes.” (Trótski em El caso Leon Trotsky)

O pano de fundo do processo de burocratização que deu bases ao fortalecimento de Stálin perpassa os enormes desafios da defesa do Estado operário em um país semicolonial, marcado pelo relativamente baixo desenvolvimento das forças produtivas, por sua vez aprofundado pela destruição da guerra. São as contradições sociais entre proletariado e campesinato, campo e cidade, e suas distintas camadas internas, junto à contradição entre o isolamento do Estado soviético e seu entorno capitalista, que explicam o processo que materialmente fortaleceria a burocracia stalinista e contra o qual Lênin trava um combate inicial, muitas vezes ignorado, ao final de sua vida.

Atualmente, chama a atenção que pseudointelectuais stalinistas queiram até mesmo atribuir a Lênin uma concepção de Estado oposta à sua, para justificar o aniquilamento permanente do poder dos sovietes, conselhos operários, pelo stalinismo e o fortalecimento de uma casta apartada das massas fundada em uma ditadura personalista. Temem que se escancare que Stálin, em toda linha, nega o bolchevismo e, portanto, o leninismo. Lênin enxerga com clareza ao final de sua vida as dificuldades objetivas para dotar a Rússia não somente de um aparato estatal eficiente do ponto de vista administrativo, uma vez que se preservava ainda muitos elementos do funcionamento do antigo Estado czarista, inevitáveis frente à guerra, mas também a necessária batalha por elevar o nível cultural e de consciência das massas, buscando chamar ao próprio aparelho de Estado novos setores – em especial, as mulheres operárias. Para isso, em 1920, propõe a fundação de um órgão de Inspeção Operária e Camponesa (IOC), cujo chefe formal passa a ser Stálin e rapidamente começa a desagradar Lênin, acumulando cargos e funções, à frente de uma instância marcada pelo carreirismo e pelo predomínio das afinidades políticas em detrimento das competências para as funções administrativas. Contra isso, Lênin propõe como tática excepcional a fusão da IOC ao Comitê de Controle Central do Partido Bolchevique, então em bom funcionamento, junto à incorporação ao Comitê Central de dezenas de jovens operários, ligados às camadas mais simples da população, buscando sua renovação política. A primeira medida, criticada por muitos em viés liberal, vinha como proposta para frear a burocratização, e não o contrário. Nesse sentido, Lênin via estrategicamente a necessidade não só de um Estado capaz de ser organizador eficiente da economia russa, adentrando polêmicas, junto a Trótski, contra Stálin no que se relacionava ao monopólio do comércio exterior, por exemplo, mas também batalhando pela elevação do elemento consciente dos estratos mais miseráveis da sociedade para que tomassem parte efetiva nas decisões de Estado.

A guerra civil, após a tomada de poder, marca uma aguda crise social e econômica, acentuando o atraso e a miséria russos. Junto a isso, significou a morte de quadros e dirigentes revolucionários experientes do Partido Bolchevique e o esgotamento das massas que valentemente se enfrentaram com as invasões imperialistas e ofensivas da antiga classe dominante russa. Ao seu fim, diante da escassez dos produtos agrícolas, impedindo assim o avanço da industrialização na URSS, a NEP (Nova Política Econômica) que, significando concessões a setores burgueses residuais e a camadas urbanas rurais de maneira controlada em prol do desenvolvimento do campo para a produção de excedentes às cidades, vem como medida temporária para recompor as relações entre camponeses e proletariado. Foi por isso defendida por Lênin e Trótski. Entretanto, o que deveria ser tático e excepcional, dadas as condições russas, Stálin, junto a Bukhárin, transforma em lógica “rumo ao socialismo”, aprofundando a divisão entre estratos do campesinato e do proletariado e incentivando uma camada de camponeses ricos que darão corpo aos privilégios do aparato burocrático – posteriormente faz uso da violenta coletivização forçada, diante do acirramento das contradições. Isso, somado a derrotas internacionais do proletariado, como na Alemanha em 1923, faz com que o Estado soviético transforme em regra o que se pretendia temporário.

Nesse cenário, foi Trótski quem encabeçou a batalha contra a burocratização nos anos posteriores à morte de Lênin. Ao contrário do que se dissemina, o revolucionário russo em nada se aproxima de perspectivas à la Hannah Arendt, que igualam os “totalitarismos” de Hitler e Stálin para justificar a defesa das democracias capitalistas. Pelo contrário, apenas é possível entender os combates de Trótski a partir da tarefa da defesa fundamental da economia planificada, da nacionalização dos meios de produção e do monopólio do comércio exterior na URSS, que constituem as características fundamentais de um Estado operário em transição ao socialismo. O autoritarismo (bonapartismo) de Stálin se sustenta sobre privilégios advindos dessas bases econômicas, e não de um suposto “capitalismo de Estado”.

Ao mesmo tempo, Trótski compreende que a contradição entre esse regime político instável e as exigências do socialismo, avançando no desenvolvimento das forças produtivas, coloca em perigo as conquistas da revolução. Por isso, quando percebe não mais ser possível reformar o aparato estatal da União Soviética, elabora o programa da revolução política, para que o colapso da burocracia, descolada do proletariado e pressionada pelos interesses capitalistas, ocorra pela reconquista da democracia soviética, e não pela via da restauração burguesa (como efetivamente se deu décadas depois). Analisa que as derrotas do proletariado internacional, na Inglaterra, na China, na Alemanha, na França e na Espanha, por exemplo, enfraquecem as batalhas da vanguarda operária na própria URSS, ao passo que o bonapartismo stalinista é agente, para garantir a manutenção de sua dominação política na Terceira Internacional, para que essas derrotas aconteçam – desenhando, assim, sua concepção de “socialismo em um só país”. Logo, ao contrário de qualquer visão de “rifar a URSS” em nome de uma aventureira expansão internacional da revolução, a defesa da primeira, para Trótski, está intrinsecamente ligada a combater seu isolamento no campo da luta de classes internacional.

Trótski diante da Segunda Guerra Mundial

Se exigem de mim que renuncie a toda atuação política: isso quer dizer que renuncie a lutar pelos interesses do proletariado internacional, luta que travei sem interrupção durante trinta e dois anos, ou seja, desde que despertei à vida consciente. A pretensão de apresentar meu trabalho político como “contrarrevolucionário” procede daqueles que acuso diante do proletariado internacional de estar pisoteando as teorias fundamentais de Marx e de Lênin, de haver violado os interesses históricos da revolução internacional, de haver rompido com as tradições e a obra de Outubro e de estar preparando inconscientemente, mas não por isso com menor perigo, a reação termidoriana. (Trótski em Mi Vida)

Segundo o historiador Nicholas Mosley (1972): “O embaixador francês na Alemanha, Coulondre, teve uma entrevista com Hitler, em 1939, e falou no tumulto e nas revoluções que poderiam seguir-se a uma guerra. Relatou que disse a Hitler: vocês se julgam vitoriosos... mas já pensaram em outra possibilidade, a de que a vitória seja de Trótski? Hitler pulou ‘como se tivesse levado um soco no estômago’ e gritou que esta era mais uma razão para que a França e a Inglaterra não entrassem em guerra com a Alemanha.”

Essas passagens delineiam um período histórico marcado, por um lado, pela emergência do fascismo enquanto reação do capital financeiro, instrumentalizando a pequena burguesia contra as organizações operárias e suas conquistas, pela disputa de interesses entre as democracias imperialistas assoladas pela crise de 1929, e, por outro, pela ameaça que significava a existência da União Soviética à classe dominante internacional. Nelas, é possível perceber Trótski não como uma figura marginal, ignorada pelos capitalistas, mas como um dirigente bolchevique capaz de influenciar e organizar massas proletárias. Nesse sentido, não é ocasional que Trótski, consciente de que sua vida poderia estar chegando ao fim ao eclodir da guerra e já tendo sofrido atentados, tenha sido assassinado nesse período. Seu estreito aparato partidário, no que tange à nascente Quarta Internacional, perseguida sistematicamente pelo fascismo, pelo imperialismo e pelo stalinismo desde seu início, contrasta com a potência de sua análise marxista e capacidade política. Estas poderiam se fundir ao descontentamento crescente trazido pela Guerra, colaborando a vitórias do proletariado internacional, de maneira análoga à Primeira Guerra Mundial que resultou na grande Revolução Russa, e inclusive contaminar a vanguarda proletária soviética contra os interesses da burocracia stalinista.

Desse modo, ao assassinar Trótski, fato inscrito na dizimação de toda uma corrente política, isto é, antecipado e seguido por milhares de outras execuções de revolucionários, na URSS, na Espanha, como antessala cuja derrota significou a última oportunidade perdida para impedir a barbárie da guerra, na França, no Vietnã e em diversos outros países, pretendia-se deixar o proletariado internacional em piores condições para enfrentar a guerra imperialista e suas destruições. Que isso tenha vindo das mãos do stalinismo e não do imperialismo e do fascismo, é expressão de sua pedra de toque contrarrevolucionária para desarmar as vanguardas operárias. De fato, aos levantes revolucionários, como assistimos na Grécia, por exemplo, em meio à Segunda Guerra Mundial, não foi de encontro uma direção revolucionária à altura, permitindo o reestabelecimento de um equilíbrio capitalista ao seu final.

De todo modo, é certo que, sem o legado de Trótski, os comunistas estaríamos em condições muito piores para tirar lições e preparar uma nova ofensiva contra esse sistema que nos reserva cenas cada vez mais frequentes de jovens pedalando incessantemente pelas cidades, sob comando de aplicativos, ameaçados pela sanguinária repressão policial que massacra a juventude negra e assistindo à barbárie capitalista da destruição do planeta. A classe trabalhadora e a juventude merecem conhecer sua história e, com isso, tirar lições.


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