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Por que o continente africano tem o menor número de casos de covid-19?

Renato Shakur

Por que o continente africano tem o menor número de casos de covid-19?

Renato Shakur

Arte: Juan Chirioca

A pandemia do coronavírus na África tem registrado números relativamente menores se comparados a outros países, ainda que haja países como África do Sul com 22.583 casos, Egito com 16.513 casos e Argélia com 7.839 casos confirmados, registrando aproximadamente 110 mil casos e mais de 3 mil mortes no continente, segundo a OMS. A mídia internacional e o imperialismo afirma junto a “especialista” que a contaminação na África vai se dando num ritmo bem mais retardado do que em outros países no mundo. Há inúmeras especulações sobre essa suposta contaminação cadenciada do novo coronavírus no continente africano, mas o fato é que já são mais de centenas de milhares de mortes, os países imperialistas vão encontrando uma solução racista e xenófaba para reforçar uma imagem sobre o africano em que não haja comoção, muito menos solidariedade. Utilizando-se de um cálculo meramente matemático, comparando as mortes de lá com as da europa aprofunda ainda mais a imagem racista que o imperialismo construiu historicamente da África, só que dessa vez, apoiando-se em governos locais e nas subnotificações, o intensifica-se a crise sanitária e econômica no continente sob o pretexto de que lá o vírus é menos letal e menos contagioso.

Introdução

A África tem 17% da população mundial, 2% de todos os casos confirmados de covid-19 do mundo são de lá, o que chama a atenção nessa estatística é o peso das subnotificações, além da precariedade do sistema de saúde que indica um potencial devastador do vírus nas populações pobres. O Malawí por exemplo, possui apenas 25 leitos de UTI em hospitais para 18 milhões de pessoas, segundo o governo local os 3 primeiros casos foram registrados no dia 2 de Abril, o país até agora registrou 369 casos confirmados e 4 mortes. A República Centro Africana que possui 3 respiradores para 5 milhões de habitantes, foram registrados desde o primeiro caso de covid-19 em 17 de março 1.288 infectados e 4 mortes. Soma-se ao precário sistema de saúde e à grave crise sanitária, onde 250 milhões de pessoas não têm acesso a água para lavarem as mãos na região subsaariana, o número muito baixo de testes o que faz primar na pandemia do coronavírus um elevado número de subnotificações. Países ou regiões afetadas pela pandemia que conseguiram controlar minimamente a transmissão do coronavírus em seus estágio inicial como a Alemanha e Coreia do Sul, usaram uma estratégia de testar ao menos 1% da população. No Kenia tem 2.474 casos confirmados, 79 mortes, foram testadas 44.510 pessoas e o número de pessoas se fossem realizados testes em 1% da população seria de 537.713. Na Etiopia tem 1.805 casos confirmados, 19 mortes, foram testadas 59.029 pessoas e o número de pessoas se fossem realizados testes em 1% da população seria de 1.149.639. Na Nigéria tem 11.516 casos confirmados, 323 mortes, foram testadas 39.970 pessoas e o número de pessoas se fossem realizados testes em 1% da população seria de 2.061.376.

Na verdade a falta de testes distorcem completamente a realidade de diversos países na África, mas o imperialismo e os governos locais, insistem em sustentar que o número baixo de contaminações e mortes no continente se dá por conta de questões geográficas (a África possui a população mais jovem do mundo), por “suportarem” o coronavírus por conta das inúmeras doenças e epidemias que assolam os países africanos ou por terem poucos países que recebem um certo número de turistas periodicamente. Ainda que este último fator pese na disseminação inicial do vírus, ele não é um fator que determina uma suposta propagação cadenciada do covid-19 no continente. A falta de saneamento básico, o alto índice de concentração populacional urbana, principalmente em favelas, serviços de saúde pública ultra precários, a ocupação de leitos e hospitais por conta de outras doenças e epidemias, são os fatores que fazem cair por terra o argumento de que o continente africano está preparado para o vírus e por conta disso ele se dissemina lentamente na áfrica do que em outros países. Mas o que está por trás dessa realidade cruel das populações nativas africanas é um outro cálculo que o imperialismo faz que está totalmente relacionado com o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo na África e que durante séculos pôde construir uma imagem racista e sub-humana do continente e que frente à pandemia do coronavírus pavimentou um campo aberto para reforçar não apenas essa imagem, mas para o coronavírus devastar as populações africanas sem que haja um questionamento do papel do imperialismo nesse processo, ao contrário, reforçando uma mentira de que lá está “tudo bem” e que o vírus se propaga devagar.

África: racismo e desenvolvimento desigual e combinado

C.L.R. James, trotskista negro, historiador e fundador da Quarta Internacional Comunista foi um grande defensor do caráter internacionalista da revolução socialista, combateu por conta disso o imperialismo no continente africano e no mundo, fundou inclusive na Inglaterra em 1935 o Internacional African Friends of Abyssinia (IAFA) junto a outros intelectuais e militantes negros africanos e da diáspora. Também dedicou parte de sua vida política combatendo a degeneração da burocracia stalinista na União Soviética que defendeu uma política contra revolucionária e contrária à revolução socialista na África. Escreveu a magnífica obra “Os Jacobinos Negros” também como parte de sua contribuição aos debates sobre capitalismo e a questão negra à Oposição de Esquerda e o papel revolucionário que os negros cumprem na vanguarda do partido revolucionário internacional. Ainda como parte de sua brilhante contribuição, James escreveu um texto chamado “Imperialismo na África” publicado recentemente na edição ampliada do livro “A Revolução e o Negro”, nele James argumenta que a imagem sub-humana, racista, atrasada do continente está totalmente relacionada com o desenvolvimento desigual do capitalismo naquela região no século XX.

Com a decadência do tráfico atlântico de escravos, os países imperialistas da europa passaram a exportar capitais ao continente como foi o caso da criação ferrovias que não eram necessárias em nenhuma região do continente, exceto nas mineradoras da África do Sul. Como afirma James havia um “propósito estratégico” para esse empreendimento, através da concessão empréstimos a governos locais e à exportação de capitais, se criava um limite ao desenvolvimento das forças produtivas, impedindo também o desenvolvimento do nível cultural das massas trabalhadoras. Se por um lado a classe trabalhadora se via impedida de se desenvolver totalmente enquanto classe, submetida a exploração no extrativismo mineral de pedras preciosas e na atividade agrícola, também não podia desenvolver suas organizações, sindicatos e portanto as formas mais elementares de luta. Estabelecido o freio ao desenvolvimento das forças produtivas, se dava uma passo adiante, ao criar a imagem de um país subdesenvolvido e pobre, combinava-se o racismo que não apenas distinguia física e racialmente aqueles trabalhadores, mas colocava a gênese de todo aquele fracasso na cor da pele negra. James apresenta essa operação racista:

“O imperialismo na África está falido. Há apenas uma forma de salvar a situação, que é aumentar o padrão de vida, cultura e produtividade dos africanos nativos. O significado do profundo dessa conclusão econômica só pode ser compreendido tendo em vista o pano de fundo político da África (e por civilização europeia essas pessoas entendem, é claro, o imperialismo europeu) depende de um fato: a manutenção dos africanos na posição de inferioridade, segregação, e atraso em que eles realmente se encontram atualmente. Esse raciocínio burguês, ao separar o que é dialeticamente inseparável, chega à conclusão de que, para salvar a civilização na África, é necessário destruí-la.” [1]

Havia a necessidade de “destruir” a civilização africana para “salvá-la”, isto é o imperialismo ao impedir o desenvolvimento das forças produtivas no continente, limita também o desenvolvimento da força de trabalho, em países onde se estabeleceria uma submissão econômica e política desde guerras, invasões e o racismo, manter as massas trabalhadoras apartadas da elevação cultural e produtividade, também foi uma estratégia para conter revoltas e revoluções. Certamente se não fosse a linha derrotista da burocracia stalinista, que defendia se aliar as burguesias nacionais nos processos de independência africanos, a revolução socialista poderia ter sido vitoriosa em todos os países que os trabalhadores se levantaram contra o imperialismo.

A pandemia na África e o racismo

Os apontamentos de James são fundamentais não apenas para compreender o desenvolvimento do capitalismo e do imperialismo na África no século XX, mas continua sendo atual, se observarmos sob essa perspectiva a pandemia no continente. As subnotificações e a retórica de que vírus parece se propagar devagar no continente anda de mãos dadas com iniciativas de inúmeros governos locais em não fornecer o mínimo necessário para salvar vidas, como tratamento adequado, testes, medicamentos e alimentos para os trabalhadores. Na África do Sul as filas por comida chegaram a 4 km, por conta do lockdown que durou mais de 2 meses, muitos trabalhadores ficaram desempregados ou não puderam sair de casa para trabalhar e foram obrigados a ficar em casa sem ter o que comer. Em Uganda, o lockdown impediu que a população fosse ao hospital buscar tratamento, sendo deixada para morrer dentro de casa e sem testes. Além de negar testes e adotar medidas autoritárias e contra o povo nativo, o presidente da Tanzânia, por exemplo, país que tem 0,7 leitos para cada 1.000 habitantes, Jonh Magulufi defendeu que a população deveria rezar para se salvar do vírus, que “não era a hora de máscaras nos rostos” e sim de irem às “igrejas e mesquitas”.

Os trabalhadores da saúde, da linha de frente e a população em diversos países africanos vêm denunciando não só as medidas autoritárias e repressivas dos governos, mas também o negacionismo e a desinformação acerca da doença. No Quênia as pessoas estão evitando os hospitais com medo de serem diagnosticadas com covid-19, o diagnóstico confirmado para o vírus significa que o paciente é obrigada a permanecer em um centro de quarentena oferecido pelo governo. Não bastasse a obrigatoriedade da medida, sem que o povo nativo possa escolher onde quer fazer a quarentena, o governo queniano cobra um valor que pode chegar a 100 dólares por noite nesse centro de quarentena, sendo que o salário mínimo no Quênia é 80 dólares por mês. Por outro lado, os trabalhadores da saúde denunciam que os casos de morte, infectados e quadros de doenças respiratórias não param de subir. Um médico do maior hospital público do Quênia constatou um aumento de quase 40% de doenças respiratórias como tuberculose, pneumonia e asma desde dezembro até o início de março. Na Nigéria também aumentou entre 40% e 45% o número de pacientes com doenças respiratórias nos últimos três meses no país, segundo o professor Musa Baba-Shasi de um hospital na cidade de Kano. Um coveiro que trabalha no cemitério de Abattoir na mesma cidade disse que nunca viu um número de mortes como este desde o surto de cólera há 60 anos atrás. São inúmeros os relatos de trabalhadores da saúde e da linha frente sobre o número crescentes de pacientes com doenças respiratórias, corpos nos necrotérios e mais e mais infectados sem a mínima estrutura para um tratamento adequado [2] .

Os relatos dos trabalhadores e pesquisadores desses países africanos, a falta de testes e as subnotificações, as filas quilométricas de trabalhadores e do povo nativo por comida, o negacionismo e autoritarismo de governos locais, deixam claro que não se trata de um cenário onde o vírus se propague mais lentamente, e por isso a pandemia no continente não tem efeitos devastadores. A destruição de vidas nativas na África está em pleno curso e a todo vapor, apoiados nos governos locais, os países imperialistas submetem diversos países africanos à dívidas externas e ao pagamento da dívida pública, roubando as riquezas produzidas pelos povos nativos e pelos trabalhadores através dessas dívidas fraudulenta e ilegal, e por isso também faltam recursos para se enfrentar com a pandemia, para comprar leitos, respiradores, testes, etc. A dívida externa nigeriana chegou a 27.676.14 milhões de dólares e a dívida pública a 84.053.32 milhões de dólares no ano passado, o Quênia a dívida externa chegou no mesmo ano a 3106.82 bilhões de xelim (aproximadamente 29 milhões de dólares) e a dívida pública chegou a 6116.60 bilhões de xelim (aproximadamente 57 milhões de dólares) [3]. Para retomar o James, na verdade a África se encontra ainda nesse processo de “destruição” por parte dos países imperialistas. O capitalismo destinou àquele continente, não apenas na divisão internacional do trabalho uma distinta posição em relação aos demais países exportando comodities, mas também relegou aos povos nativos e aos trabalhadores africanos uma imagem degradada própria de países subdesenvolvidos marcados pela escravidão negra, assolados pelas guerras que enriquece os capitalistas da indústria bélica internacionais, doenças e pragas nas colheitas, um espectro sub-humano e inferior da humanidade criada no capitalismo. A pandemia vem atacando brutalmente, todos os países sem exceção, mas na lógica do imperialismo não há um problema iminente devastar os países africanos, porque é um continente negro, composto por povos que foram escravizados e raptados por europeus, por diversas religiões antes vistas como simples “crenças” inimigas da fé católica europeia e de Deus, onde a burguesia inglesa, francesa, portuguesa se constitui como classe vendendo e comprando corpos negros, mandando-os em navios para trabalharem como escravos nas colônias. Só é possível uma operação de tamanha magnitude nos dias de hoje, porque não se trata de qualquer continente, se trata da África, por isso é mais fácil que morram africanos aos milhares por conta do coronavírus ao mesmo tempo que mentem sobre a propagação do covid-19 naqueles países, pois se o racismo serviu ao capitalismo para obter força de trabalho sem custo e incentivar o comércio de negros africanos escravizados, hoje ele serve para continuar destruindo o continente africano limitando os recursos para enfrentar o vírus, deixando o povo nativo sem armas para enfrentar o coronavírus, explorando todos os recursos naturais, impedindo o desenvolvimento da tecnologia e do nível cultural entre os trabalhadores, e é claro utilizando os mecanismo possíveis para conter uma revolta negra e anti imperialista no continente.

Conclusão

A luta negra nos EUA vemos centenas de milhares de jovens e trabalhadores se levantarem contra a brutalidade da polícia e o racismo, exigindo justiça a George Floyd, no coração do imperialismo, também em países imperialistas como a França e Inglaterra mostram o caminho para se enfrentar contra o racismo e o capitalismo. Aqui no Brasil a luta antirracista e antifascista contra os assassinatos e mortes de jovens negros como João Pedro que teve sua casa fuzilada e Miguel, filho de empregada doméstica, que caiu do prédio por negligência da patroa de sua mãe, são expressão de uma democracia degrada que nada tem a oferecer ao povo negro e pobre além de mortes pelas balas da polícia ou pela covid-19. As vitórias que a juventude negra e branca vem conquistando nos EUA é um ponto de apoio importante para a luta antirracista e antifascista no Brasil e só tem a favorecer a luta do povo nativo e dos trabalhadores na África. C.L.R. James que combateu fortemente a invasão de Mussolini na Etiópia, defendeu também que essa luta seria em unidade com os trabalhadores europeus, golpeando com um punho só o imperialismo e com independência de classe:

“População etíope, se organizem de maneira independente, e por suas próprias sanções o uso da sua própria força, assiste o povo etíope. A luta dele está somente começando agora [...] Vamos lutar não só contra o Imperialismo italiano, mas contra os outro ladrões e opressores, o imperialismo Francês e Britânico [...] Trabalhadores ingleses, camponeses e trabalhadores africanos, se aproximem para essa e outras lutas…” [4]

James não apenas mostra que a luta antifascista sempre foi uma luta antirracista, mas também que a luta dos negros deve primar pela unidade de todos os setores oprimidos do mundo inteiro que são explorados e oprimidos pela imperialismo estrangeiro ou em seu próprio país. Os EUA vem dando provas que essa luta em unidade é fundamental, a prisão do assassino de Geroge Floyd, o policial Chauvin e dos outros policiais que o ajudaram só foi possível por conta dessa força nas ruas, impulsionando um revolta negra, se não fosse isso esses policiais estariam ainda nas ruas matando outros negros impunemente, como Chauvin fez durante seus anos na polícia de Minessota. Além disso, se abre a possibilidade de frente aos partidos democrata e republicano que não estão a altura de resolver os problemas do povo negro e dos afroamericanos, uma terceira alternativa com independência de classe, antirracista e anti imperialista. No Brasil a unidade dessa luta deve ser encampada por setores da esquerda, dos movimentos de mulheres, movimento negro, movimento de favelas, sindicatos e entidade estudantis pelo Fora Bolsonaro e Mourão, sem nenhuma confiança de que Rodrigo Maia e o STF possa fornecer alguma saída aos negros e aos trabalhadores que são os mais afetados com a pandemia. A rebeldia dos negros em unidade com os brancos, latinos e o povo oprimido nos EUA é um golpe de esperança em todos aqueles que já não aguentam mais as atrocidades que o racismo e o capitalismo criaram, seja no Brasil, na África e todos os países marcados por um dos mais abomináveis horriveis feitos da história da humanidade que foi a escravidão.

Referências
“A revolução e o Negro”, 2ª edição, 2019.
“C.L.R. James: at the rezdenvous of victory”, 1984.


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FOOTNOTES

[1C.L.R. James, “O imperialismo na África.” In.: “A revolução e o Negro”, 2019. p. 139.

[4C.L.R. James, “Is this worth a war? The League’s scheme to rob Abyssinia of its independence.” In.: “C.L.R. James: at the rendezvous of victory”, 1984. p.16.
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Renato Shakur

Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF
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